terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Tempos para cá

no começo a gente era bobo
e nem sabia das coisas

hoje a gente é feliz
porque não sabe das coisas

a gente assovia
finge que sabe
e fica sendo feliz
até que o amor (não) acabe.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Infância sem lirismo

a casa em que nasci
não era casa
era apartamento
na Abílio Soares
não-sei-que-número
nem quais andares

acontece que tenho um problema:
todo poeta que se preze
escreve um poema
à primeira casa

mas eu não sou de casa
sou de apartamento
e só depois fui ser de casa
não tinha hortas nem cabras
nem insetos nem goteira
só escadarias e cimento

tenho um problema ainda maior:
não sou poeta
mas tento.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Imortal


Isso aconteceu. E não somente isso aconteceu como também tenho total e absoluta certeza de que é verdade o acontecido – aconteceu de verdade –, pois o ouvi não de qualquer um, mas da própria, da dita cuja, a que fez ocorrer o referido fato, a Velha Duse, que sem ela nada seria. Não fosse ela a abrir a secura da boca fina para me contar a verdade, tintim por tintim, eu, certeza, não botava fé. Não falaria nisso nem para criticar, que não sou gente de dar ibope para o que não vejo graça. O caso foi sério, seríssimo, e daria muito o que falar não fosse o jeito quieto de Duse, que não fez alarde.

Antes que me chamem de mal-educado, já deixo claro que estava a conversar com a velha senhora, cheio de bons tratamentos, e quem me falou para retirar o “Dona” da frente do sujeito, manter o nome como é de batismo, foi ela mesmo, foi Duse, ou Dona Duse para aqueles que ainda pensam que não tenho respeito pelos mais idosos.

Quando soube do caso, tentei recobrar a memória para ver se lembrava de ter ouvido algo. Afinal, Duse mora na casa ao lado da minha, e por consequência nos vemos todos os dias ou quase.

Me mudei para aqui em casa, de onde escrevo e olho através da janela, há bem uns cinco anos, e de mim mesmo pouco mudou. Deixei metade do que tinha no lixo, que me parecia tralha demais, e o resto veio comigo, somente o essencial, para a casa nova, dois andares, vazia. Duse, que no começo era só uma vizinha, bateu em minha porta para saber quem eu era. Parecia cordata, bem simpatia, mas imagino que – com razão – a velha estivesse somente querendo saber se eu, que a partir daquele momento dividiria paredes com ela, não seria nada de muito perigoso ou agitador o suficiente para fazê-la acordar de suas sestas ou de seu leve sono noturno. Sei disso tudo, de seus hábitos de descanso, por dois motivos, sendo o primeiro o mais indelicado: ela bem que ronca um pouquinho, coitada. E também porque escolheu sua casa em arquiteturas altamente iluminadas, com janelas por todos os lados, voltadas ao quintal. Do segundo andar de meu sobrado, podia ver todos os seus pontos estratégicos de sono, mas não pensem besteira não: nunca teve uma vezinha sequer que vi ou tentei ver a Dona Duse sem roupas. Não sou calhorda a este ponto, vejam bem. Mas aos poucos, por essas e por outras, passei a conhecer bem aquela senhora, e durante os cinco anos de estadia pude acompanhar cada mudança de tom de seus cabelos, que rapidamente esbranqueceram.

Se eu estivesse em casa, no andar de cima, teria visto. Mas estava em horário de trabalho, e não vi. Perdi a cena. Dona Duse deixou de ser Dona no dia seguinte, quando nos encontramos em frente à minha porta, eu vindo do trabalho tal qual todo dia, ela com o carrinho de feira lotado de alfaces, couves e cenouras. E um pastel na mão, penso que de queijo, a velha não é boba nem nada! Perguntei como ia, ela ia muito bem (ela sempre vai muito bem), alguma novidade?, ah meu filho novidade é o que não falta!, qual é a nova da vez? E ela me contou tudo, até arrumou o carrinho na vertical, parado sozinho, para não gastar os braços segurando o peso todo enquanto me explicava.

A véspera tinha sido um dia de altos e baixos. Duse não gostava de sol, desses sóis fortes que doem os olhos, e também não gostava de chuva. Quando chove a casa fica toda acinzentada, e somado a isso vem aquele barulhinho de pingos atrás de pingo no telhado, ou seja: quando chove Duse dorme o dia inteiro, se sente velha, se sente inválida, desconfortável, como se estivesse em tempos perdidos. E depois não dorme de noite. De onde ia tirar mais sono? No dia anterior o sol havia se aglomerado nos cômodos, de fazer doer até o corpo, para Duse que já tem suas muitas décadas. E também a chuva despencara, brutal, tudo no mesmo dia, durante a manhã. Os gatos que dividiam a casa com ela entraram em situação de alvoroço. Eram três, todos monocromáticos. E nunca que se aquietavam. Quando o sol entrou, correram pelo quintal, entre cada uma das lagartixas. Não se cansavam. Aí veio a chuva, torrencialidade absurda, os gatos correram para dentro, a saltar janelas até invadir o quarto de Duse, que em contraponto encostava cada uma das venesianas em seu esforço idoso de andar pela cada inteira, que aliás era até pequena. Depois, ela se sentou em sua cadeira de balanço e ficou ali, parada, calada, espiando o movimento dos gatos, que iam de um lado para o outro querendo telhados e besouros. Foram poucos os minutos necessários para que dormisse, a cabeça redonda pendendo para uma angulação torta, diagonal.

A chuva cessou de uma vez, tal como seu início, e o dia continuou acinzentado, porém um pouco mais claro. Duse continuou seu sono, imperceptível que estava às coisas do mundo. Sonhava algo com laços de fita, um baile, cães gigantes, um sonho até que feliz para uma senhora que mal saía de casa para diversões. Sonhava e talvez sorrisse (não há certeza sobre isso, pois quem me contou foi a própria, e a própria dormia), dançava com um e com outro cavalheiro, em rodopios, enquanto os cachorros gigantes integravam o corpo organizativo da festa, se faziam de orquestra, de garçons, de mâitres. Mas isso tudo não importa, se sonhou, se não sonhou, o que havia em seus sonhos de idosa. Só que, se sonhava, embarcava em suas histórias e cada vez mais peso botava sobre seu sono. Não chegou a ouvir a maestria dos gatos ao empurrar a persiana da janela do quarto, assim que os ares secaram. Eles, malucos, saltaram e voltaram ao quintal, onde tinham espaço para serem inquietos e diferentes de todos os outros gatos de velhos, que são sempre dorminhocos e parados.

Depois que a chuva parou, como um fim de explosão, a gravidade puxava tudo para baixo, como sempre puxou. Somado a isso, também havia o mal das águas, que escorria e carregava o que encostasse em seu caminho vertical. Frutos caem no chão, folhas, árvores, fiações e telhados baratos estatelaram-se pela cidade. O que acontece com os insetos voadores quando começa a chuva? Sempre tão pequenos, rápidos, conseguem escapar dos diâmetros das gotas? Ou morrem. Quando cai a tempestade, tudo desaba junto, tudo finge que se acaba, menos os sonhos de Duse, que bailava com um milhão de rapazes diferentes. Os gatos pulavam ao redor da árvore que, fragilizada, semantinha ainda consistente e um pouco mais desfolhada. Eram lindos os gatos. Estavam a se morder, não de briga, mas de brincar, quando dos galhos mais altos e finos da árvore caiu um pardal minúsculo, de poucos tempos, encaixotado em seu ninho. Ou somente no que sobrou dele: o emaranhado de galhos e organicidades estava destruído, torto e fraco por completo. Chegava ao ponto de se esfacelar, misturando-se ao corpo pequeno do pardal imobilizado. Fez um barulho mínimo, o som de um quase nada, mas o suficiente para despertar Duse, que levantou em sua rapidez extremamente lenta.

O gato, um deles, num salto abocanhou o bichinho e correu em fuga até o outro lado do quintal. Sua boca era pequena, mal cabia o pardal inteiro; mais um pouco e vomitava. Aguentava firme, mas não sabia o que fazer, como direito fazer. Começou a morder de leve, e o pássaro foi cessando. Não podia se debater por muito tempo, e parou. O gato forçava um dente, forçava outro, forçou todo seu sistema bucal contra o pequeno animal que se derramava sobre sua língua áspera. Ao mesmo tempo, almofadava com as gengivas e o céu da boca ao dorso do pássaro, e quase o cuspiu fora, assim que o sentiu imobilizado. Mas Duse já estava a abrir a porta de seu quarto, sabia que algo acontecia, mas o quê, levava susto fácil e precisava checar o que era. Se Duse visse o bicho cuspido, o gato lambendo, mordendo, arrancando penas e carnes, não sobraria para ninguém, aí é que seria um deus nos acuda e o gato sabia disso, Duse disse que os gatos entendem bastante bem as normas de convivência da casa. Olhava para os lados e não sabia onde esconder seu novo tesouro. Guardou o corpinho defunto dentro da boca e deitou-se na grama, atrás das árvores, como se fosse mais um dos frutos caídos da estação. Como se não tivesse matado o pardal com as pontas dos dentes. Duse percorreu o quintal inteiro e tinha certeza: algo estava errado – fora de sintonia. Olhou para o canto do quintal e lá estava o gato, separado dos outros, que a tudo ignoravam. Ele correu em disparada, aos trupicões, mas foi encurralado perto do portão alto e fechado. Deveria ter aberto a boca antes, largado o bicho morto na terra, soterrado, para ser esquecido e degradado. Mas tempo não tinha mais. Sua boca sangrava de leve, aquele sangue típico de gato que apronta, e vinha direto dos machucados que levou no atrito interno com o bico do pardal. Duse abriu a boca do gato, as mãos também já avermelhadas, escorrendo, e de lá arrancou o filhote antes que levasse uma mordida ou um arranhão, não por mal, mas por falta de opções. Deu meia-volta e o gato ficou ali mesmo, parado, muito bem sentado no chão de ladrilhos. Seus olhos acompanhavam cada passo da senhora que fazia seu máximo para chegar à lavanderia. 

O pássaro, mortinho da silva, se aninhava em suas mãos de grandes nódulos e veias saltadas. Mais parado que ele, não existia nada, edifício algum que ganhasse de sua imobilidade mórbida. Ela o posicionou sobre um tapete velho, na pia da lavanderia, e se transformou em uma pessoa mais serena do que qualquer lenda de deuses. Tocou com as almofadas dos dedos, bem nas pontas, ao peito murcho do pardal. Não se mexia, definitivamente. E guardou o choro para depois, restando somente o escorrer de lágrimas que se expandia sem balbúrdia, com a leveza de quem respira. Apertou o que havia de músculo no bichinho, tocando não em peles ou pedaços, mas sim em pontos-chave, pequenos botões do corpo que se escondiam pelos tecidos e órgãos. O pardal estava morto e o gato não daria as caras por mais uma meia dúzia de horas. Duse seguiu, chegou perto do peito meio depenado, apertou-o nas costas como a uma marionete delicada. Parecia que sua operação tinha base em um abraço tátil, na proporção dos dedos, e as mãos sendo um segundo corpo inteiro, pleno. Um abraço cirúrgico, estratégico, cuidadoso. O coração voltou a bater depois da infinidade dos segundos, um ecoar imenso se orquestrava na lavanderia, conjunção entre o pulso fraco e velho de Duse e o peito fraco e infante do pardal, que um pouquinho depois abriu os olhos.

Que a morte existe, a gente sabe, a gente já viu, a gente já sentiu no estatelar de algum parente. A morte está por aí, rondando, e matou o passarinho. Duse, sabe-se lá como, o ressucitou. Não acredito em Deus, não acredito em milagres, não acredito em magia, mas Duse, para mim, é um caso a parte. O passarinho já sumiu, deve ter ido embora para o mundo. Mas está vivo, assim como Dona Duse, a Duse, que ressona sua sesta e permanece em vida há muito tempo. Mês que vem fará cem anos.

sábado, 1 de dezembro de 2012

São Paulo

Maria bonita
ou meio sem-sal
Maria custódia
Maria nariz largo da batata
Maria paulista
medo da polícia
malícia (nos olhos
de quem vê
w x y z)
pelas ruas frias
(e batatas fritas)
onde passa
não qualquer outras
mas essa maria
sofrida
desvazia
mas não rasa.

Maria vive todo dia
em constante
afogamento:
não achou ainda
possível fuga
pro fogo que a inflama por dentro.