quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Longe demais


meu avô usava óculos
bem como minha avó
e minha mãe e meu pai
e minhas tias e eu.

Na minha casa todo mundo é míope
até a cachorra
que sorri de olhos miúdos
e late, late, late
mas não uiva:
ela não consegue ver a lua.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Pensamento novo


que a poesia parou eu já sei
desde a semana passada
quando joguei palavras ao léu
e tudo ficou feio.

Quisera eu
saber trabalhar a poesia
montar vigas, veias e idades
estruturas de sintaxe
cortes, rebusques, simplezas
rimas – que não sejam aquelas
que todos já sabem por adivinhação.

Assim tem sido:
a poesia trancada com chaves
e poucos guardando o segredo.

Melhor de tudo
(ação direta e transmutável)
é pegar os manejos
dos grampos de cabelo
para abrir qualquer porta
ou código de cadeado.

Quero que a poesia volte
mas a quero clandestina;

clandestina e forte.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Sinal aberto

(s)ó
(s)e
(s)em
semáforo:

d e s a f o r o
d e s a b a f o
a fora
alforria
euforia
eu

fúria / folia
folha vazia

e a poesia na ponta da língua.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Procura-se Frederico


_____Quando a gente começou a se falar, Marco era um homem lúcido, repleto de coerências. Tínhamos eu e ele uma diferença bruta de idade, como se aos gritos, e mesmo assim nos falávamos uma vez ao dia, por volta das duas da tarde, que era depois do almoço e depois da sesta dele. No começo, o assunto era amplo e atento, eu sempre botando as vistas no jeito com que Marco lidava com a vida.
_____Ele chegava e se movia como se seu corpo estivesse almofadado com plumas de sofá, e falava manso olhando sempre para a luminária de alumínio no canto da minha pequena sala – ou isso ou era outra coisa que olhava, porém com igual desimportância. A impressão que sempre tive foi a de que o velho Marco até gostava de mim, só que aos poucos, e torto. Em todas as conversas que fizemos, falamos a respeito de hojes e ontens, muitos ontens: ontens de guerras e presidentes, ontens de televisão e cinema, ontens de cabelo, comida, trabalho. Marco, velho, vira passar quase todo o antigo século, o já ido. Mas eu, em contaponto, não tinha como saber se não confiava em mim o bastante para causos mais íntimos – logo ele que mal tinha amigos –, ou se era àquela porção de histórias que se resumia sua vida. Pelo sim, pelo não, preferi não arriscar.
_____Àquela época eu estava desempregado e, como não fosse pouco, também desencontrado, dizimando a mim mesmo por nada. O dinheiro que sobrava do último batente deixou que, por algumas semanas, eu me desse ao luxo de acordar tarde e gastar meu tempo fazendo feijão e couve. Regando as plantas. Limpando janelas limpas. Por isso, as idas e vindas de Marco me eram boas pelo seu tom teórico de me impedir a loucura – pois para ser louco é preciso ter tempo. Eu, desempregado, tinha todas as tardes do mundo para ouvir Marco, ainda que por alguns dias. O bom dele, de seu modo pouco sociável, é que mal se importava se me atrapalhava ou não: chegava porque queria, saía porque queria, mas isso só quando atingimos um estágio mais radical de amizade, que é aquele de se ver todos os dias. Porque, das duas uma, sobre tudo o que penso: ou tive uma vida chata por demais, ou são os outros que inventam detalhes para acrescentar em suas rotinas regadas de tédio. De vez em quando dá para ter um dia genial, coisa-de-louco, desses que se conta tudo no dia seguinte, e isso só de vez em quando. Mas Marco não, Marco era velho e vivido, Marco falava todo dia e, quando já não tinha mais o que falar, repetia algum passado.
_____Eu, que sou mais novo, sempre tive uma vida craseada, desde menino. Acentuava-me aos poucos, de vez em quando, e sempre com dúvidas. Aos oito, ganhei um cão e perdi uma avó. Eram esses os tipos de crase que permeavam meus parágrafos, até que arranjei uma namorada de sobrancelhas finas e olhos largos. Grande coisa: acabou sendo só mais uma fase – ou crase – até mesmo um travessão, que durou três meses e se acabou sem prantos. Hoje, não é que estou triste, não é que acabei. Mas vejo a vida de Marco todos os dias, às vespertinas horas, e me torno contrapontos. Como se tudo o que passei virasse um poema do Mario Quintana, lotado de reticências e com eterno sem-fim.
_____Já ontem, Marco me mostrou uma foto três por quatro de quando beirava os vinte anos, já há mais de meia década. Não era um rapaz exatamente bonito, e na verdade nem um pouco bonito. Tinha um rosto sério e medroso, típico de timidez tamanha que impeça até o cantar durante o banho. Era o rosto de um jovem centrado e, como já dito, repleto de coerências.
_____Levantei os olhos e Marco chorava. Se empapava na mudez das lágrimas e olhava para a ponta de meu nariz (não para mim). Eu ainda não havia percebido, mas desde que acabou-se o ano passado Marco anda distraído, com cara de luar. Ainda assim, apesar de um pouco louco, tentava contar histórias sempre que chegava em minha casa. Ontem, porém, quando vendo a fotografia, não estávamos em meu sofá, na minha sala de estar, mirando meu abajur de alumínio. Estávamos na casa de Marco, uma casa chata e, ao extremo, sem graça. Ele sumira por dois dias, por isso lá fui eu saber que diabos lhe havia acontecido. Vestia pijamas quando eu cheguei, e falava pouco, pouco. Até hoje não sei porque não me contou. A única coisa que sei é que saí para botar o lixo para fora e vi uma crosta de cartazes sobre todos os postes da rua.
_____Frederico sumiu.
_____Frederico era um gato marrom, já com feição de velho, e Marco nunca havia me contado sobre nenhum gato, bem como nenhum romance, nenhuma demonstração de vida – assim como eu. Quando cheguei em visita, choramos juntos, antes até das fotografias. Ele pelo gato, eu por ele, pelo gato e, egoísta confesso, por mim. Não trocamos mais palavras e eu nem quero mais vê-lo.O mês é de chuvas, todos os dias, por muitos milímetros. Chove o dia inteiro e, como que por mágica, os cartazes continuam nos postes, intactos. Como que de propósito, Frederico me encara sempre que saio ao mercado.
_____Desculpa, Marco. Um gato marrom apareceu em meu quintal durante a madrugada. Eu matei, e sinto muito, matei porque tenho tempo livre e sou louco; matei em segredo que nunca contarei. Eu sou um idiota.