segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O sintoma

Sorrindo tem um homem na frente do outro homem, completamente paralelos os dois. Sorri porque saiu de casa, andou até o ponto de ônibus, parou. Havia um homem em sua frente, o mesmo homem para o qual agora ele sorri, amarelado, não porque é feliz, mas porque, das chances que tinha de desviar falsamente, e assim ir para o mesmo lado do outro homem, e essas chances equivaliam a cinquenta por cento, nem mais nem menos, ambos quase se trombaram. Agora quase se trombam de novo. Sorriso. A linha cruzada saiu de seu limiar e extravasou na ruptura cotidiana de dois homens, um para cada lado. 

Às seis horas cumprem o horário, chegam em casa às sete. Depois do banho, se olham em seus espelhos na procura de fios de barba a despontar pelo rosto. Mas o rosto, desde o banal encontro, havia sido trocado, e assim permanece, como o reflexo do sol na água. Eles gritam, apavorados. Mas ninguém nota qualquer diferença, mínima que seja, a ser digna de reparo. O homem sério, sem vontade alguma, sorri com os dentes amarelos que não lhe pertencem, e sente medo da sua própria face.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Poema sem pulso

Quantos passarinhos é preciso trazer-te
para que me tenha ao seu lado?
Dez, cem, mil?
Ou será que um origami
no papel de jornal velho?
Talvez dois canários
talvez uma pomba suja.
Mal sei o número de passos
que devo dar, inequívoca,
até te alcançar
mesmo em braços esticados
pontas dos dedos.
Sei quantos posso por mim
não sei quantos você
me permite.

Criar sacrifícios e provas de amor
falsificar simulacros
entre os astros do universo,
gigantesco universo
que ninguém conhece o fim.
Os fins dos romances já sabemos
está escrito na última página.
Mas dentre tudo isso, que dizer
do fim de nós dois?

Esse fim se resguarda, à espreita,
guardado nos confins dos bons organismos
não como um vírus da gripe
mas uma doença fatal e rara
de poucos estudos e maus tratamentos
onde se guardam
nossos sublimes segredos
que nos tornam
apenas
a essência do que somos.
Sumo.

Quero que acredite em mim
como acreditou não em minha voz
não minhas cordas vocais ou gengivas
mas acreditou em meus lábios.
E acreditou, piamente, e quase chorou
naquele romance de mortes
que leu no mês passado, sozinho,
mas repetiu para mim,
deitados na grama
esperando o ônibus,
as suas frases favoritas.
Um romance de mortos
para um homem vivo,
dotado e detido na angústia e
raiva
que palpita de suas orelhas
pelas fendas que te chegam no cérebro
e do cérebro invade o sangue
até explodir em bomba o coração.

Odeio usar a palavra coração.
Coração Coração Coração.
Me parece que a palavra coração carrega
sugestões de filmes estúpidos
rimas fracas, publicitárias
e a tosca perfeição de um amor
em olhos azuis.
No entanto seguimos aqui.
Estamos vivos.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Relato do amor invisível

Eu amo esta criatura enquanto ser vivo e sobrevivente, como célula de resistência, e ao mesmo tempo posso nutrir amor como a pessoa que é, completamente humana. Desta soma, imersa na mesma criatura, resulta que amo e que não tenho capacidade nem vontade de amar agora e desta forma a ninguém além deste único organismo. 

De repente fiquei cego. Não tão instantâneo foi o processo mas alguns poucos meses parecem horas se comparados a toda uma vida de vista. E ainda mais esta vida. Não quero assegurar que minha dor tenha maior valor ou que seja eu o único resumo vivo do sofrimento. Embacei gradativamente, um pé depois do outro, e uma vista cansada normalíssima para a meia idade então se transformou no mais imenso infinito. Garoas se transformam em tempestades. Parece, porém, que todas as galáxias dormem, quase hibernam. E eu ando, ando, ando mais, mas não encontro o lugar de encruzilhada entre o conhecido e o nada. O espaço do nada, denso, flúido, flácido, plasma, duro, não se sabe, deve ser lindo, tanto inimaginável que até agora parece ser impossível - onde possa encontrar qualquer coisa diferente da treva tátil, ultrassonora, aos quais meus sentidos me submeteram. Ouço espirros que antes os ouvidos não alcançavam e tenho então a leve sensação de que o mundo está um pouco mais resfriado. Não é o mundo, sou eu, que vivia do contraste e da luz e sombra. Me lembro inclusive de andar pelas ruas e, ao início da noite, quando as luzes dos postes se acendem, me lembro do medo ridículo que tinha da minha própria sombra. Hoje a sombra é geral. Fez-se a luz ao meu redor, em todos os possíveis ângulos. Misteriosamente, o resultado não foi a claridade total, como se esperava, e sim o breu da sombra espalhada como um oceano ao redor da ilha. A ilha sou eu.

Me apaixonei quando vi que aquele corpo era completamente único; não só aquele como todos. Mas então já era tarde, o caminho agridoce da vida conjunta já nos tinha unido e nos feito trocar toques. Depois, em tempo recorde, amei. Agora me lembro, chorando, que éramos visualmente a beleza, e assim nos reproduzíamos em nós, de manhã, de tarde e de noite. Na madrugada nos encarávamos nos olhos falando da rotina. A última semana foi inteira uma aflição sobre a retina, e o globo ocular, membranas, nervos ópticos.

- Hoje no trabalho ouvi coisas engraçadas nas fofocas do chefe; Hoje para mim foi um pouco mais chato, o serviço estava vazio, o tédio reinando… - e por aí ia. 

Hoje eu estou em um leito até que confortável, nos primeiros dias de recuperação após o baque da cegueira total. Amanhã cedo irei para casa, sentir os cheiros específicos do meu lar e de meus sabonetes, minhas plantinhas em vaso, a bosta amanhecida dos cães no quintal, todo esse conjunto é lindo. Agora tenho em minha diagonal a pessoa que me ama, a qual eu amo/desejo/quero/jogo-me de volta. Não chega a roncar, é apenas um sussuro sonâmbulo, penso agora de forma dócil. Esta nova cegueira está me colocando uma poesia nos poros que chega a ser ridícula. Já deve ser de madrugada. Só acordará amanhã, me trazendo nas mãos um copo de café ou coisa do gênero. Penso agora que poderia, não fossem meus olhos a atrapalhar, estar na cama comigo, a de casa, o corpo macio estirado ao meu lado. Sinto saudade desse corpo, já, e choro apenas de pensar que nunca mais verei suas peculiaridades e formas tortas, sua pele fria e seus pelos espalhados. Sinto que ver o teor deste corpo será uma magia de sentidos em falta. É claro que as mãos, as bocas, as narinas e o encostar de meu corpo ao outro, há isso tudo, e há a lembrança e a capacidade de rememoração, o desejo de ter olhos bons só para ver os olhares e sorrisos do ser que amo, e que desta forma muito me dizia em momentos de silêncio. Fica na cabeça o retrato de quando começamos a namorar, bem como de meu último aniversário, e criamos rugas. O corpo é forte, e pulsa forte, e mastiga forte, digere, processa, sente dores de passagem e retorna ao equilíbrio. Parte da cabeça de pouco cabelo, desce aos olhos, ao nariz apontado como flecha, ao pescoço curto, os ombros, o peito e barriga, a cintura, coxas e pés.

Os pés, quando o corpo não dorme, vestem sempre botas de couro, e me guiarão amanhã quando acordarem, um passeio, ir ao banheiro, até que eu, como um bebê que engatinha, aprenda de novo a andar em um mundo recém possuído. Por enquanto eu não tenho mais nada. Não tenho o poder de ver o chão que me carrega, a pessoa que me guia, não posso saber nem se meu lençol está sujo. Em compensação, sinto mais força no vento que me baterá no rosto quando encarar a cidade novamente, daqui a mais ou menos três horas. O vento ninguém vê. A dança das folhas talvez, mas apenas os mais desavisados. Não tenho alcance às coisas que tenho, pois não vejo onde estão. Não tenho projetos, me desiludi. Não tenho sequer o corpo de quem amo/desejo/quero/jogo-me, mas nisso não há problema. Nós nos vemos todos os dias e agora mesmo, e nos conhecemos de cor e salteado. Largura da testa, bundas pequenas, dedos tortos nas mãos e unhas meticulosamente cortadas uma vez por semana, as particularidades do ser humano nada impedem de tornar-se, a minha cegueira, um pouco mais feliz. O médico bate na porta. Finalmente iremos para casa, contemplando a paisagem.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Eternas ameixas

Mais ou menos sei da vida.
aprendi menina em trilhos
do trem que não tomei
mas que vi partir meu pai
à jornada sem retorno
até a guerra, em terras frias.
Vencemos,
vencemos!
e um buraco negro desmanchando
nos lençóis de minha mãe,
a forma de seus olhos transformando-se
em ameixas
inchadas, prestes a explodir
no melancólico.

O trem seguinte
muito mal adormecido
repetia-se na procissão:
a vida segue,
e toda aquela história
do rodar da Lusitana
uma Lusitana
duas Lusitanas.
Quem é essa, com tal nome?
Eu nunca nem ouvi falar
mas pelo nome de florista
deve ser boa mulher.

Pelos trilhos corria Zuquim, irmão meu
pequeno sem carnes
a cabeça desnuda
pronta para os sóis de futebol.
Por um fio de sapato ficou preso,
e então o pé inteiro
e o corpo
enjaulado na prisão
que prende ao chão de terra
e não coube tempo –
de lá afundou-se no solo
qual destino, tragédia levara
e juntos levamos, nós
por um fio sem nó do sapato.

Hoje já estou velha
a pele fina a recordar papel de seda
amassado.
Durmo cedo.
Mas toda noite abro os olhos
uma vez para ir ao banheiro
outra para esperar
que se acabe o tremer da terra
que me treme a casa,
que me treme a cama
e a cabeça, e os porta-retratos
os dedos e minha vista cansada
quando sinto que o trem passa.