De
todos os tudos, tantos, os fios da meada, as calças com furo, só um
sempre é que existia, no meio das incertezas. Daí, as dez estrelas,
pouco que seja. Sabia que no céu tinha bem mais que isso, mas as dez
já bastavam, e o resto? Era isso mesmo, era resto, era luxo.
Barbarita era um amor; mas um amor pequeno - e, não obstante, um
amor bem baixo, em comprimento sussurrado. Não que a culpa fosse
dela, que nem mesmo era, ela tampouca, onde já se viu coisa dessas;
pois vivia Barbarita numa vila pequena, na cidade mas não na cidade
em si. Os portões enferrujados eram enferrujados demais e só se
abriam de quando em quando, nas horas exatas em que Zé Mandinga
sentia fome de pão, coisa que nem sempre acontecia.
Zé
Mandinga era; era aliás bem coisudo: a cabeça grande, o pé
engruvinhado. Vivia de saracoteios curtíssimos pelos cantos e
recantos, ele mesmo um desencanto, e nessas e noutras acabava que
ninguém sabia direito o que fazia da vida. É que era Zé Mandinga o
mais velho da vila, que por si só já tinha em suas janelas
apertadas um tanto de anciões que quando mais moços construíram
suas próprias casinhas sobre o chão de terra, e por lá criaram um
apego forte, apertado, que nem aos poucos se desvencilhavam do lugar,
acostumados que estavam à vida monótona e sabida por todos, que era
de todos e a todos pertencia. Zé Mandinga desde sempre fora dos mais
avoados, tratando de construir só – e se desse só – o básico
da casa, mas fez bem feito, arrumado, os tijolinhos mais alinhados
que constelação de noite clara. Na frente tentou plantar um par de
margaridas, e no começo até que deu certo, mas acontece que o
começo foi um tanto grande de tempo antes. Os dois pés de margarida
foram caindo, torteando, até que as pétalas tocaram o chão. A
partir daí, elas todas – tão poucas – viraram também chão.
Também
a partir desse aí foi que ninguém mais partiu da vila, e Zé
Mandinga abriu mão da escassa jardinagem, decidiu por se voltar aos
livros muitos, demais, e se embrenhou nos misticismos. A partir
daquele aí foi também que todos os moradores se adaptaram à
convivência com os insetos, que nem se importavam com a ausência de
plantas quando tinham, em toda casa toda cozinha todo bem-perto,
vasilhames de açúcar ou de coisas com açúcar para matar saudade
do que nem se lembra. E, por fim, a partir daí, um pouco depois, as
mulheres pararam de parir, e só sobrou o nascimento de Barbarita,
impunemente festejado em cada número da vizinhança com uma alegria
pouca, mas um tico maior do que já se tinha por ali.
Daí
Barbarita virou menina e moça ainda não, porém já menina era
quieta em sussuros, um algo além das quietices de menina que não
pode isso nem aquilo nem um nada, não pode nem sonhar com fada nem
brincar de espada. A vila nem tão pequena era, mas nem por chuva de
milagre encontraria ela algum dos senhores com ancas de brincar de
bambolê ou joelhos para correr em pega-pega. Aí ficava Barbarita
quieta, aos cochichos, aos cochilos, cantandinho pelas portas das
casas vizinhas, fingindo não estar atrás dos biscoitos de leite da
Dona Norma ou dos desenhos que o Velho Célio riscava num caderno
antigo de folhas destacáveis, para depois ir na casa do Seu
Mendonça, como quem não quer nada, para pegar emprestada a caixa de
lápis de cor que o homem guardava num caixote de lata azul. Pegava,
pintava na mesa da cozinha e deixava o apontador no outro extremo da
mesa, para se forçar cada vez mais a não quebrar a ponta do lápis
dos outros – tamanho desrespeito diminuir o que já era pequeno,
pensava sem querer a diminutiva Barbarita.
– Ô
seu Zé, seu Zé Mandinga, Zézínho Senhor...
Ele
já dizia não, não mesmo, fora de cogitação, e reclamava das
artrites e artroses e de uma ou outra tosse, e continuava a andar pra
lá e para mais lá ainda por dentro dos portões, pensando na vida,
arrumando torneiras e catando tatu-bolas – isso o que todo mundo
via, que uma parte ele sumia e ninguém entendia nada, essa história
toda de mandinga.
– Mas
seu Zé, seu Zé Mandinga, Zézínho Si'ô, o moço do sorvete acabou
de passar ali na rua, não viu?
E
não, não mesmo, fora de cogitação, “ô menina caspulenta” e
ela reticenciava com um risinho breve semibreve mínimo quase
semínimo mas nem tanto assim porque tinha que ganhar confiança de
Zé Mandinga.
– E
não por quê?
Ela
perguntava quase que em sopros, envergonhada, na tentativa final e
ganhar uma fração de dia. Mas não, que ele já havia feito as
compras e ela não tinha nem porquê nem autorização de sair.
Barbarita não insistia; dava meia-volta, volta-e-meia ia dar, e
calava a própria voz rouca, meio arranhada de quase nunca falar. Os
velhos ficavam diatodo quietos, pairando entre cortinas, e as flores
falavam baixo demais para Barbarita ouvir; os únicos que respondiam
eram os gatos vira-lata, matusquelas e quebradiços, que ora
brincavam ora soltavam só resmungo ou camundongo na porta da casa, e
assustavam mesmo que sem querer, sem ferir.
A
noite caiu cedo e o barulho emudeceu como de costume, ao paradoxo
contrário da cidade pisca-pisca: tudo se apagava na vila, e
ressonava com cuidado de não acordar os outros, e do lado de lá do
portão os postes de rua iniciavam sua brancura de abajur, que de
longe se enfileiravam, na ideia de que uma só lua não bastava para
contentamento geral. Dormir parecia um impropério, desperdício,
despertável, navegável, mas a janela fechada da pequena, que se
abria (quando aberta) para o muro arrastivo, não dexava passar nem
os tais dos gatos, que cantavam e pediam e repetiam do lado de fora,
em coro desaforo pelo menos para espantar maus agouros. Daí ela
dormia cochilando, sempre cochilando, cochichando sua rouquidão.
Zé
Mandinga acordava mais cedo que todos para ficar pensando muito sobre
as coisas do mundo, os tijolos, os cadeados, as calçadas mal
projetadas, o resto de erva daninha que insiste em sempre infernizar
do lado de fora, bem na porta do portão, o que se passa com Dona
Luzia que anda meio louca e ruim e moeda, e o que se passa com os
escombros do Haiti e com o que lê no jornal por conta própria. Na
verdade Zé Mandinga é respeitado por todos os moradores da vila e
na verdade de verdade é assim meio mal-visto, meio tido por
ridículo, por se encafuar por aí, por pensar um bem tiquinho, por
sumir e ser mistério e ser dos moradores o mais sério e velho e
inquieto e por ter construído o próprio teto sem uma goteira sequer
nunca na vida. Pois o homem entendia tanto que quando amanheceu saiu
voltou como que ressucitado, citando cantoria de modinha antiga,
trouxe pão e coisa dos que pediram tal favor, esperou dona Marícia
voltar de algum lugar e fechou as velhas grades de novo à chave.
Sentou no banco de sua varanda e esperou, separando feijão.
Complicada
essa técnica de separar o feijão – demanda olho e frieza, mão
rígida e desatrapalho para não tirar nem deixar de mais, o que faz
mal e o que é só meio feinho. Zé Mandinga durante o separo do
feijão não só pensava: raciocinava, tinindo, atinando, e tudo que
saía dependia do dia: às vezes feijão problemático de menos, à
vezes demais problematizado. Quando Barbarita acordou e saiu da porta
fininha de sua casa, do lado mais pra lá, sentiu o ar friorento,
desventado, voltou-se e revoltou-se sem rebeldias, aturando a suave
gelidez. Andava lenta, apertada em si mesma, e foi chegando até a
soleira de Zé Mandinga com uns fiapos de tecido colorido para se
distrair. Ele de pronto entregou um envelope branco, feito de papel
grampeado, e de lá ela retirou com olhos baixos um folheto bem
chinfrim, em preto e branco e papel jornal, do circo do litoral, que
chegava para temporada.
– Eles já montaram tudo, a lona e tal e coisa.
– É
de dia?
– De
noite, lá pro comecinho, mas já noite.
Barbarita
ficou quieta, roçando os mindinhos nos feijões já escolhidos.
Olharam uma pro outro, outro pra uma, uma pro feijão, feijão pro
outro, feijão e todos e o feijão podre escondido sem olhar para
ninguém. Zé Mandinga ficou impassível como sempre, os pêlos da
sobrancelha beirando tocar os cílios, enquanto a menina visivelmente
fechava a cara. Os labiozinhos inocentes, sem nem saber o que é
lábia, labuta ou máfia, se trancaram enquanto o olho baixo se
encaixava em outro ponto sem importância alguma, em fuga muda.
Barbarita se subiu numa raiva enorme e roxa, por completo ilustrada,
maquinando maquinando maquinando na cabeça pequena de pessoa pequena
que era e seria por mais um bom tempo. Ergueu a mão num lance rápido
– num átimo – e fez jorrar os feijões já selecionados direto
ao chão, em mistura mais-que-pura aos grãos podres e renegados. Zé
Mandinga não estava de todo perplexo; no íntimo sim, embora por
fora se forrasse sem foco na velha cara de máscara, parada,
idosamente desvairada e também um pouco caída nos lados. Prosseguiu
sentado enquanto a menina se levantava e arrumava a velha saia de
veludo que se engruvinhava à aridez da meia desfiapada.
Ela
se sentou no canto mais longe, na ponta dos longos degraus, onde
ficou se remoendo na mudez matutina, matutando enrouquecida. Achava
um absurdo aquilo tudo, a pensar que aquele Zé Mandinga era mesmo um
homem ruim, ruim de todo, pois porque mostrar o tal papel se de nada
serviria, se ela não poderia ir ao circo nem de dia e imagine só
durante a noite, e se ele que podia deixá-la sair não deixava
nunca. Era mesmo um sujeito ruim, só podia ser, para fazer piada
assim da cara dela, onde já se viu pior humor em cima de criança
menina, que nem ao circo podia ir nesta vida?
O
resto do dia se arrastou feito vestido de noiva abandonada no altar.
Desse modo, arrastado e arrasado, se esvaiu na noite que dormia cedo.
Barbarita desde aquela hora não trocou sequer palavra com Zé
Mandinga, que ficou só olhando de longe enquanto fazia suas
aividades do dia: distribuía mantimentos pelas casas, trocava ideias
com a vizinhança e com a sua nova muda de azaleia no jardim,
consertava um fogão uma pia um motor de motocicleta e sumia por aí
– bem mais aí que se encontra por lá – com um plural de livros
por baixo dos braços esqueléticos.
Durante
a noite, as luzes da vila se apagaram e não adiantou nada. O resto
da cidade estava inteiro acordado para ver o que ia acontecer no
circo, que nunca antes havia aparecido por aquelas desconhecidas –
quase sumidas – bandas. Mas nem tudo ainda estava pronto, um
corre-corre ao redor da lona estendida evidenciava todos os artistas
em si mesmos, ensimesmados em conjunto, limpos de maquiagens e
figurinos coloridos, atrás de escadas e fios e fitas e paetês e
mais uma porção de cacarecos que ninguém além do mágico sabia
direito para quê servia. Barbarita de sua janela não via nada, mas
pelas frestas de sobre o muro um pouco de luz e burburinho chegavam.
Dormiu rápido, num tris tristonho, de angústia recatada, e não
falou para ninguém nem da graça desgraçada de Zé Mandinga, a quem
a partir daí ela iniciou uma missão de mau-humor, nem do circo que
chegava. Parecia até que tinha vontade de sair há tempos vários
antes, e pisar em cocô de cachorro alheio, e soprar dentes-de-leão
nascidos no canto das calçadas, e atravessar a rua de mãos dadas e
ver por acaso o instante exato da noite em que os postes de luz se
iluminam. Essa vontade, porém, só apareceu em seus olhos naquela
tarde passada. Já tinha visto o circo na tevê, não o circo
propriamente dito – o símbolo, o ser, o estar do circo em circo,
circo em si –, mas um ou outro malabarista nos programas de
domingo, ou num filme desses de cachorro que passam durante a tarde.
Tanto
faz como acordou e como passou o dia, pois continuou como estava
antes, descontinuada e contida, descontaminada de um quê que ninguém
sabe – ninguém lembra. O importante é que deixou Zé Mandinga de
lado, e só o viu quando o tal tocou sua campainha para entregar o
pão de sua mãe. Ela pegou o saco, soltou um murmúrio de obrigada e
fechou a porta sem nem tempo de respostas. Depois o dia se acabou e
os barulhos do circo, mais fortes do que a véspera, pareciam
esperar-se para a chegança de Barbarita, com um tanto de alegria que
não tinha. Dava para ver do lado de dentro do portão, sentada na
soleira da casa, do outro lado as crianças passando com o pai a mãe
a avó o avô ou quiçá a vizinha carente, todos de roupa de domingo
que Barbarita só usava nas rezas dentro de casa, porque de lá não
saíam nem para a igreja cujo menino santo a mãe tanto estimava
desde que a mãe dela a ensinou a estimar.
– Bárbara!
– Hum?
– Jantar,
vem.
– Tá.
E ia.
Ia indo, gerundioso passo a passo rastejante porém de pronto ali,
quando virou para trás e viu a bicicleta amarela, que há um quarto
de hora havia passado reto pela rua, voltando e parando bem na frente
do portão, encostada e visivelmente bem-cuidada (como dava) por um
rapaz alto, de ossos opacos ante a pele, meio desarrumado, com ar de
desamarrado. Não tinha bochecha quase, de tanto esfomeamento
acumulado, daquela hora que chega que, de tanto vazio na barriga, a
fome desiste e passa como coisa simples, como chuva de verão, e
assim se segue a vida vivendo, vivendo, vendo, indo. A coisa foi
rápida, o tempo pouquíssimo de o tal do moço parar, deixar um
papel entre as grades frias do portão, tocar a campainha uma vez
duas vezes e sair direto, sem nem para trás olhar. A história ia
ser de amor, Barbarita a pulular até o portão velho, acabado, e
pegar o papel onde estariam muito bem caligrafadas as palavras de
algum poema belo e platônico de doer os olhos, cada letra mais
redonda que a outra, respeitando a margem da folha de carta muito da
bem pautada. Ia ia ia iria ninguém ria porque ninguém estava por
ali naquele instante oportuno. Quieta saiu correndo, quieta voltou,
desacalmada, com o papelito dobrado na mão. A mãe, àquela altura,
cansara-se de chamar e fora até a porta descobrir o que acontecia
que a filha ora bolas nunca foi de muito atraso, sempre veio em hora
exata. De forma que Barbarita só o que pôde fazer foi soltar sem
querer um soluço de angustia pareceu um arroto suave de certo modo –
ou de falta de modos que tanto a mãe implicava. Não podia encostar
os cotovelos na mesa, que coisa feia, e assim de mãos sob a mesa foi
que abriu o papel e não passava de mais um chamado ao Circo do
Litoral, dessa vez oficial, e o tanto de tons de cinza economicamente
mal impressos dava a entender que ao vivo as cores seriam muitas. A
mãe não estranhou, e logo mandou que a filha fosse dormir. Ela ia
de qualquer jeito, que a vergonha não a permitia abusos de pedidos,
e ainda mais para o durante a noite! O céu estava frio naquele tempo
escuro, encurvado, quase turvo. Mas do lado de fora, ah! do lado de
fora. Do lado de fora não era nada que um gorro na cabeça não
arrematasse. Não era frio de matar nem morrer, isso sim muito menos,
mas na sozinha vila incomodava talvez bastante além do que no resto
da cidade. Deitou e esperou o sono, as persianas de madeira abertas e
o vento beijando o vidro em logo primeiro encontro direto. Do sono
não vinham nem os carneiros. Deitou e esperou os gatos, nem unzinho
chegou. Deitou e esperou o beijo da mãe como se tivesse beijo além
da benção no pé da sala. Piscou e piscou mais lento, brincando de
ver chegarem os cílios frente aos seus olhos opacos, fortefracos
como caco de vidro. Aí começou a música e apareceram por cima do
muro as dez estrelas de cores amarelas, vermelhas e roxas, rodando
pela refração torta da janela. Só acordou no dia seguinte e não
contou para ninguém. Não fez questão de falar com Zé Mandinga,
mas sentou em sua soleira para olhar sem parar o portão, até que a
chuva largou seus primeiros pingos. Se assim continuasse, seria a
próxima noite uma solidão sem estrelas, nem uma duas dez. A noite
que se seguiu dormiu rápido, desmantelada, antes de o circo se
arranjar e estrelar. O céu, um papel molhado, caindo pedaço.
**
Já
na última apresentação da semana, o portão enferrujado se abriu
de leve depois das oito da noite, mas abriu bem pouco, o suficiente
para passar escondido, depois de uma ou outra conversa, o corpo
magricela de Zé Mandinga seguido da pequeninice de Barbarita, de
roupa bonita para ver de perto as dez estrelas e o riso de dentes e a
pipoca desdentada e quem sabe até ver de longe o tal rapaz daquele
dia, em segredo absoluto. Mas dele último só achou a bicicleta
amarela, num canto molhada, esperando rouca e quieta, a olhar para as
luzes restantes do lado de fora da lona, na cidade inexplorada.
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