Isso
aconteceu. E não somente isso aconteceu como também tenho total e
absoluta certeza de que é verdade o acontecido – aconteceu de
verdade –, pois o ouvi não de qualquer um, mas da própria, da
dita cuja, a que fez ocorrer o referido fato, a Velha Duse, que sem
ela nada seria. Não fosse ela a abrir a secura da boca fina para me
contar a verdade, tintim por tintim, eu, certeza, não botava fé.
Não falaria nisso nem para criticar, que não sou gente de dar ibope
para o que não vejo graça. O caso foi sério, seríssimo, e daria
muito o que falar não fosse o jeito quieto de Duse, que não fez
alarde.
Antes
que me chamem de mal-educado, já deixo claro que estava a conversar
com a velha senhora, cheio de bons tratamentos, e quem me falou para
retirar o “Dona” da frente do sujeito, manter o nome como é de
batismo, foi ela mesmo, foi Duse, ou Dona Duse para aqueles que ainda
pensam que não tenho respeito pelos mais idosos.
Quando
soube do caso, tentei recobrar a memória para ver se lembrava de ter
ouvido algo. Afinal, Duse mora na casa ao lado da minha, e por
consequência nos vemos todos os dias ou quase.
Me
mudei para aqui em casa, de onde escrevo e olho através da janela,
há bem uns cinco anos, e de mim mesmo pouco mudou. Deixei metade do
que tinha no lixo, que me parecia tralha demais, e o resto veio
comigo, somente o essencial, para a casa nova, dois andares, vazia.
Duse, que no começo era só uma vizinha, bateu em minha porta para
saber quem eu era. Parecia cordata, bem simpatia, mas imagino que –
com razão – a velha estivesse somente querendo saber se eu, que a
partir daquele momento dividiria paredes com ela, não seria nada de
muito perigoso ou agitador o suficiente para fazê-la acordar de suas
sestas ou de seu leve sono noturno. Sei disso tudo, de seus hábitos
de descanso, por dois motivos, sendo o primeiro o mais indelicado:
ela bem que ronca um pouquinho, coitada. E também porque escolheu
sua casa em arquiteturas altamente iluminadas, com janelas por todos
os lados, voltadas ao quintal. Do segundo andar de meu sobrado, podia
ver todos os seus pontos estratégicos de sono, mas não pensem
besteira não: nunca teve uma vezinha sequer que vi ou tentei ver a
Dona Duse sem roupas. Não sou calhorda a este ponto, vejam bem. Mas
aos poucos, por essas e por outras, passei a conhecer bem aquela
senhora, e durante os cinco anos de estadia pude acompanhar cada
mudança de tom de seus cabelos, que rapidamente esbranqueceram.
Se
eu estivesse em casa, no andar de cima, teria visto. Mas estava em
horário de trabalho, e não vi. Perdi a cena. Dona Duse deixou de
ser Dona no dia seguinte, quando nos encontramos em frente à minha
porta, eu vindo do trabalho tal qual todo dia, ela com o carrinho de
feira lotado de alfaces, couves e cenouras. E um pastel na mão,
penso que de queijo, a velha não é boba nem nada! Perguntei como
ia, ela ia muito bem (ela sempre vai muito bem), alguma novidade?, ah
meu filho novidade é o que não falta!, qual é a nova da vez? E ela
me contou tudo, até arrumou o carrinho na vertical, parado sozinho,
para não gastar os braços segurando o peso todo enquanto me
explicava.
A
véspera tinha sido um dia de altos e baixos. Duse não gostava de
sol, desses sóis fortes que doem os olhos, e também não gostava de
chuva. Quando chove a casa fica toda acinzentada, e somado a isso vem
aquele barulhinho de pingos atrás de pingo no telhado, ou seja:
quando chove Duse dorme o dia inteiro, se sente velha, se sente
inválida, desconfortável, como se estivesse em tempos perdidos. E
depois não dorme de noite. De onde ia tirar mais sono? No dia
anterior o sol havia se aglomerado nos cômodos, de fazer doer até o
corpo, para Duse que já tem suas muitas décadas. E também a chuva
despencara, brutal, tudo no mesmo dia, durante a manhã. Os gatos que
dividiam a casa com ela entraram em situação de alvoroço. Eram
três, todos monocromáticos. E nunca que se aquietavam. Quando o sol
entrou, correram pelo quintal, entre cada uma das lagartixas. Não se
cansavam. Aí veio a chuva, torrencialidade absurda, os gatos
correram para dentro, a saltar janelas até invadir o quarto de Duse,
que em contraponto encostava cada uma das venesianas em seu esforço
idoso de andar pela cada inteira, que aliás era até pequena.
Depois, ela se sentou em sua cadeira de balanço e ficou ali, parada,
calada, espiando o movimento dos gatos, que iam de um lado para o
outro querendo telhados e besouros. Foram poucos os minutos
necessários para que dormisse, a cabeça redonda pendendo para uma
angulação torta, diagonal.
A
chuva cessou de uma vez, tal como seu início, e o dia continuou
acinzentado, porém um pouco mais claro. Duse continuou seu sono,
imperceptível que estava às coisas do mundo. Sonhava algo com laços
de fita, um baile, cães gigantes, um sonho até que feliz para uma
senhora que mal saía de casa para diversões. Sonhava e talvez
sorrisse (não há certeza sobre isso, pois quem me contou foi a
própria, e a própria dormia), dançava com um e com outro
cavalheiro, em rodopios, enquanto os cachorros gigantes integravam o
corpo organizativo da festa, se faziam de orquestra, de garçons, de
mâitres. Mas isso tudo não importa, se sonhou, se não sonhou, o
que havia em seus sonhos de idosa. Só que, se sonhava, embarcava em
suas histórias e cada vez mais peso botava sobre seu sono. Não
chegou a ouvir a maestria dos gatos ao empurrar a persiana da janela
do quarto, assim que os ares secaram. Eles, malucos, saltaram e
voltaram ao quintal, onde tinham espaço para serem inquietos e
diferentes de todos os outros gatos de velhos, que são sempre
dorminhocos e parados.
Depois
que a chuva parou, como um fim de explosão, a gravidade puxava tudo
para baixo, como sempre puxou. Somado a isso, também havia o mal das
águas, que escorria e carregava o que encostasse em seu caminho
vertical. Frutos caem no chão, folhas, árvores, fiações e
telhados baratos estatelaram-se pela cidade. O que acontece com os
insetos voadores quando começa a chuva? Sempre tão pequenos,
rápidos, conseguem escapar dos diâmetros das gotas? Ou morrem.
Quando cai a tempestade, tudo desaba junto, tudo finge que se acaba,
menos os sonhos de Duse, que bailava com um milhão de rapazes
diferentes. Os gatos pulavam ao redor da árvore que, fragilizada,
semantinha ainda consistente e um pouco mais desfolhada. Eram lindos
os gatos. Estavam a se morder, não de briga, mas de brincar, quando
dos galhos mais altos e finos da árvore caiu um pardal minúsculo,
de poucos tempos, encaixotado em seu ninho. Ou somente no que sobrou
dele: o emaranhado de galhos e organicidades estava destruído, torto
e fraco por completo. Chegava ao ponto de se esfacelar, misturando-se
ao corpo pequeno do pardal imobilizado. Fez um barulho mínimo, o som
de um quase nada, mas o suficiente para despertar Duse, que levantou
em sua rapidez extremamente lenta.
O
gato, um deles, num salto abocanhou o bichinho e correu em fuga até
o outro lado do quintal. Sua boca era pequena, mal cabia o pardal
inteiro; mais um pouco e vomitava. Aguentava firme, mas não sabia o
que fazer, como direito fazer. Começou a morder de leve, e o pássaro
foi cessando. Não podia se debater por muito tempo, e parou. O gato
forçava um dente, forçava outro, forçou todo seu sistema bucal
contra o pequeno animal que se derramava sobre sua língua áspera.
Ao mesmo tempo, almofadava com as gengivas e o céu da boca ao dorso
do pássaro, e quase o cuspiu fora, assim que o sentiu imobilizado.
Mas Duse já estava a abrir a porta de seu quarto, sabia que algo
acontecia, mas o quê, levava susto fácil e precisava checar o que
era. Se Duse visse o bicho cuspido, o gato lambendo, mordendo,
arrancando penas e carnes, não sobraria para ninguém, aí é que
seria um deus nos acuda e o gato sabia disso, Duse disse que os gatos
entendem bastante bem as normas de convivência da casa. Olhava para
os lados e não sabia onde esconder seu novo tesouro. Guardou o
corpinho defunto dentro da boca e deitou-se na grama, atrás das
árvores, como se fosse mais um dos frutos caídos da estação. Como
se não tivesse matado o pardal com as pontas dos dentes. Duse
percorreu o quintal inteiro e tinha certeza: algo estava errado –
fora de sintonia. Olhou para o canto do quintal e lá estava o gato,
separado dos outros, que a tudo ignoravam. Ele correu em disparada,
aos trupicões, mas foi encurralado perto do portão alto e fechado.
Deveria ter aberto a boca antes, largado o bicho morto na terra,
soterrado, para ser esquecido e degradado. Mas tempo não tinha mais.
Sua boca sangrava de leve, aquele sangue típico de gato que apronta,
e vinha direto dos machucados que levou no atrito interno com o bico
do pardal. Duse abriu a boca do gato, as mãos também já
avermelhadas, escorrendo, e de lá arrancou o filhote antes que
levasse uma mordida ou um arranhão, não por mal, mas por falta de
opções. Deu meia-volta e o gato ficou ali mesmo, parado, muito bem
sentado no chão de ladrilhos. Seus olhos acompanhavam cada passo da
senhora que fazia seu máximo para chegar à lavanderia.
O pássaro,
mortinho da silva, se aninhava em suas mãos de grandes nódulos e
veias saltadas. Mais parado que ele, não existia nada, edifício
algum que ganhasse de sua imobilidade mórbida. Ela o posicionou
sobre um tapete velho, na pia da lavanderia, e se transformou em uma
pessoa mais serena do que qualquer lenda de deuses. Tocou com as
almofadas dos dedos, bem nas pontas, ao peito murcho do pardal. Não
se mexia, definitivamente. E guardou o choro para depois, restando
somente o escorrer de lágrimas que se expandia sem balbúrdia, com a
leveza de quem respira. Apertou o que havia de músculo no bichinho,
tocando não em peles ou pedaços, mas sim em pontos-chave, pequenos
botões do corpo que se escondiam pelos tecidos e órgãos. O pardal
estava morto e o gato não daria as caras por mais uma meia dúzia de
horas. Duse seguiu, chegou perto do peito meio depenado, apertou-o
nas costas como a uma marionete delicada. Parecia que sua operação
tinha base em um abraço tátil, na proporção dos dedos, e as mãos
sendo um segundo corpo inteiro, pleno. Um abraço cirúrgico,
estratégico, cuidadoso. O coração voltou a bater depois da
infinidade dos segundos, um ecoar imenso se orquestrava na
lavanderia, conjunção entre o pulso fraco e velho de Duse e o peito
fraco e infante do pardal, que um pouquinho depois abriu os olhos.
Que
a morte existe, a gente sabe, a gente já viu, a gente já sentiu no
estatelar de algum parente. A morte está por aí, rondando, e matou
o passarinho. Duse, sabe-se lá como, o ressucitou. Não acredito em
Deus, não acredito em milagres, não acredito em magia, mas Duse,
para mim, é um caso a parte. O passarinho já sumiu, deve ter ido
embora para o mundo. Mas está vivo, assim como Dona Duse, a Duse,
que ressona sua sesta e permanece em vida há muito tempo. Mês que
vem fará cem anos.
tou imaginando a dona duse sentindo o coraçãozinho do pardal bater de novo e penso na Amélie achando a caixinha de brinquedos no banheiro da casa dela, coisa que só o primeiro homem a entrar na tumba de tutankamon sabe o que é. aposto que ela arregalou os olhos
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