Estávamos
conversando, esses dias, sobre a dependência da criação poética
às experiências pessoais. Decidimos então fazer um desafio:
Helena, mulher branca e feminista, teria que escrever um poema sobre
a causa negra, e Ronaldo, homem negro e anti-racista, faria o mesmo,
mas sobre a opressão por gênero. As trocas de experiência sobre as
opressões que sofremos foram cruciais para que pudéssemos entender
mais e apoiar às causas um do outro e vice-versa. Seguem abaixo os
resultados deste desafio conjunto.
Bastaria uma noite
preta
um chão preto
botas pretas
e olhos fechados,
pensavam os brancos,
para armar na festa
negra
uma farra comedida e
calada
sem incomodar aos
caprichos
e às canecas de leite
de seus vizinhos
brancos:
os que dizem fazer a
ciência
em torno de si,
e fizeram da poesia
um troço branco e
inexato,
poema raro,
armaram mil mecanismos
para arrancar do preto
o que é dele
roubar-lhe a música
os versos e
medicamentos
roubar as salas de aula
os adereços de cabelo
os pequenos endereços
e até o barulho das
festas.
Uma festa muda e
camuflada,
eles pensavam,
para que ninguém
desperte:
nem brancos, em sono de
edifícios
nem pretos, a despertar
todos juntos
sobre si mesmos.
Mal sabiam eles que a
negada
já acordou unida há
tempos.
Não é preciso que
caia a tarde
e chegue a noite
para Mariano começar a
cantar.
Mas nesta noite ele
canta.
A voz sai seca,
coaxando,
e ecoa entre o cimento,
pelas frestas das
lajotas,
rente a cada azulejo
e passa
da festa
ao mundo
e o mundo não passa da
festa dos negros
e mais um pouco,
o pouco dos brancos.
Quando Mariano abre a
boca
até o fundo do seu
próprio céu,
um fim de mundo na
garganta,
canta
as dores de ser
camuflado
ser escondido à
revelia
Mariano, o sapato
furado
mas por pouco tempo,
que fique bem claro.
Cantar o pão velho
não o torna macio
não coloca recheio
presunto nem queijo
mas faz o pão
ainda mais pão,
completamente pão,
duro e coberto de dias,
porém pão.
Canta-se a dor
pois a dor é ainda
mais dor
para doer nos tímpanos
de quem a causa
e fortalecer cada um
dos doloridos.
E vejam que a dor é
muita
para a pouca porção
de pão
mas a festa irá mudar,
vão haver
reviravoltas,
é o que canta Mariano
e que Dona Marta chora
suspira, esfrega os
olhos
calada e de ouvidos
atentos,
o grande corpo de
matrona,
de corajoso ventre,
posicionada em meio à
roda confusa
mas plena de si.
As estrelas medrosas
aparecem,
aos poucos, como gatos
desconfiados,
só para ouvir Mariano
cantar
e ver a festa preta
dançar
nítida,
tremendo o chão da
madrugada.
Ninguém dormiu naquela
noite
e ninguém mais dormirá
até Mariano decidir
se a grande festa já
ganhou
tudo aquilo que queria
e que lhe foi negado
durante toda a vida.
-----------------------
O outro poema está neste link:
http://assimbemdepressa.blogspot.com.br/2013/07/encaminhamento-de-ana.html
-----------------------
O outro poema está neste link:
http://assimbemdepressa.blogspot.com.br/2013/07/encaminhamento-de-ana.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário