A senhorinha se esgueira para fuçar as horas no relógio de pulso alheio, belo relógio aliás!, o vizinho tinha um idêntico, mas tenho reparado que seus braços andam meio nus, o que será que houve com o relógio do vizinho? - e, percebendo seu atraso, sai andando em tictictic mais ligeiro, senhorinha ratinha. Foi um atraso meio necessário. Imprescindível, digamos assim. Pois passou pela rua do charmoso Café des Deux Moulins, onde em belos tempos trabalhara e que, agora descobrira, estava fechado. Mas na caixa do correio havia um cartão postal, com a fotografia estampada de um bebê gargalhando, num eheheheh! quase audível, sinestesia pura, se me permite. Era um convite, primeiro aniversário, destinado à avó da criança, Georgette, antigamente a fogosa caixa do Café e amiga cujo endereço, puxa vida!, ainda se recordava. Conhecendo Georgette como conhecia, sabia que a desvairada não iria checar a caixa amarela dos correios a tempo. Aproveitaria ainda para bebericar um chá e conversar de novidades arregalantes e reparar em cada quadro colorido que enfeita as estreitas paredes de Georgette. (E assim o fez.)
A senhorinha vai à quitanda. E pode muito bem, no caminho, prestar atenção nas pessoas sérias que andam por aí, mais precisamente nas pessoas sérias que usam meias coloridas ou de ursinhos bordados. E quando encontra essas canelas, solta uma risadinha discreta, leve como ela toda, um sorriso em vermelha meia-lua, fazendo assim da boca a parte do rosto com menos rugas. E com esse jeitinho, a cabeça se joga para a frente - ela, com idade tão grande como nossa feiúra em fotos três-por-quatro, já treme toda por si só - e nesse suave balanço feliz, os óculos se jogam para a ponta do nariz. A escuridão das lentes se torna ridícula perto daquelas grandes e negras jabuticabas que riem, agora visíveis.
A senhorinha volta a armação elegante ao lugar com as pontas dos dedos, francesa como é, e vai se chegando à quitanda. As jabuticabas se alegram ao ver tanto tomate vermelhíssimo, e bananas, e abacaxis, e maçãs e afins. E a senhorinha cumprimenta o Seu Lucien, que cuida da épicerie com a mesma boa vontade de sempre - e mesmo estabanamento, não neguemos. Mas o faz direito, sem o tardiamente falecido Monsieur Collignon ao lado feito sombra-pesadelo. Seu Lucien, pelo menos, também percebe que beringelas também têm sentimentos. A senhorinha compra meio quilo do mais vermelho tomate para fazê-lo seco no forno, especialidade que sempre torna os dias do calvo Nino, namorado de sempre, mais prazerosos, diria até mais deliciosos. A senhorinha dá um último sorriso a Lucien, vira-se ao sentido oposto e os cabelos brancos curtíssimos, à luz do sol mais forte do clima temperado francês, fazem seu batom aparentar-se mais e mais vermelho, rouge outro, velha moça.
A senhorinha Amélie atravessa a rua com força nos braços esguios, carregando suas sacolas de prazeres da quitanda. O anão de seu jardim está por aí, rodando mundo.
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ResponderExcluirnossa me apaixonei por esse texto serio.
voce escreve muito muito muito bem!