Podia
ver o céu, podia ver a terra, e os montes, os telhados, as árvores,
os grãos: não tinha explicação. Tudo começou com um nó na
garganta que se desatou no molhar de olhos. Era uma gota graúda,
brilhosa, mal cabia no peito. Nos cílios também não cabia, pois
aos poucos desabou das pálpebras, direto para a pele fina onde se
concentram as olheiras. Matias mal as tinha, por ser demais criança,
mas aquela noite sem dormir deu à sua face redonda o máximo dos
ares adultos que poda a sua vã anatomia. Ali, naquelas bolsinhas de
pele e insônia, deitou-se a lágrima e, por questão de segundos,
recuou no sentido inavançável – lá ficou, parada como quem
espera no sinal vermelho. Depois deu um salto e transcorreu todos os
poros quentes das maçãs morenas de Matias, num ângulo de trinta
graus ao lado esquerdo quando se aproximou das concavidades infantis
daquela bochecha. A lágrima permaneceu intacta. O tempo todo. Passou
pelo rosto como se dançasse em pedra polida, ou se sua tensão
superficial estivesse acima do padrão e não permitisse que aquele
choro se esparramasse. Quando chegou à boca, sentiu a pele fina e os
lábios tão pequenos, da grossura de uma linha, demorou-se mais em
seu caminho e, por fim, acabou por perder-se nos limiares e entrou na
pequena boca. Era uma lágrima aguada, acuada, mal tinha sal. Tocou
as gengivas e sentiu o sangue das escovas de dentes mal utilizadas.
O
mesmo se repetiu todos os anos ou quase, mas aquela, aos oito, foi a
primeira vez, e também o motivo para todas as outras vezes. Era dia
de natal. Matias corria para todos os cantos levando cadeiras,
guardanapos e colheres para ajudar nos preparativos da festa. A
família era grande, enorme na verdade, com um verdadeiro bananal de
primos e tios. Lembrava pouco do ano anterior mas, em compensação e
por malgrados, sabia de cor o decorrer de uma semana específica.
Eles
nem, nesta data, estavam ainda preparados, e a campainha ressoou por
detrás da cozinha. Era o tio mais velho, com a esposa por detrás,
escondida em timidez. O tio mais velho sempre fora assim, motivo
inclusive de chateação: sempre perfeito e de método; sempre o
primeiro a chegar. Quando pequeno, corria direto ao ouvir a mãe
chamando para o almoço. Chegava primeiro e fazia questão de
escolher o lugar, sempre revezando entre canto esquerdo da frente e
canto esquerdo de trás. Desta vez, portanto, não seria diferente, e
já esperava na porta. Matias levou seus pés até o porta-chaves e,
em seguida, ao portão, tudo com passos pesados, cavalares. No fundo,
bem no fundo, achava o tio um pé no saco. Para quê ser certo o
tempo inteiro? Acabava por demonstrar-se sempre inconveniente. Na
família, se marcavam seis horas, é porque o horário de chegar
mesmo seria seis e meia, sete horas, algo assim, e não seis horas em
ponto. O pai de Matias, cada vez mais, botava fôlego em suas pressas
a cada atraso. Bufaria, não fossem as normas de etiqueta, uma bufada
de cansaço e raiva, ambos em uma mistura forte, bem no rosto barbado
do tio. Em compensação:
- Olá,
quanto tempo!
- Quanto
tempo digo eu... você some, Agenor, até parece que nem sente
falta de nós!
- É
que está tudo muito difícil, você sabe. Quando tudo se ajeitar,
o tempo vai render.
- Ah,
eu entendo, Agenor.
Não entendia coisa
nenhuma. Sua perfeição chateante impedia qualquer desvio do padrão
de vida. Não fazia a mínima ideia do que estava muito difícil.
Estava tudo muito difícil desde o ano de antes, da véspera, em que
tudo mudou para pior. O tio voltou à sala, onde a esposa guardava um
lugar no sofá, em frente à tevê aberta e seus filmes de papais
noéis. Matias montava a mesa como se fosse um quebra-cabeça,
detalhe por detalhe, como fazia ano a ano. Quando menor, saía tudo
meio torto, e precisava vir a avó rearrumar cada talher, deixar a
mesa inteira nos trinques. Então já era grandinho e podia fazer
sozinho tal tarefa. Fazia com gosto, provando-se: não era uma
arrumação qualquer de mesa, ainda que de almoços de domingo. Era
mais. Era natal, a data mais importante para crianças depois de seus
próprios aniversários. O segundo dia de casa cheia depois de apagar
velas e cortar bolo recheado.
Matias até que estava
feliz, mas nem tanto. Mudara muito no decorrer do último ano. Em
trezentos dias para menos, havia assumido mais que tarefas: denunciou
a si mesmo cada um de seus sentimentos, em um processo difícil, que
machuca, rala, coagula. Foi assim que cresceu, não que seja esta a
única forma de crescer, com tristezas e baques. Existe tempo feliz,
bem como existe ar e terra e existe cada peça de porcelana da mesa
de natal. Não podia dizer que existe pai, ou avó, ou tio. Esses
todos acabam. E junto acabam os abraços e os colos, acabam os filmes
no fim da tarde. Às vezes, sem nem querer, voava em sua cabeça
novamente a imagem da morte de sua mãe. Esquisito para uma criança
ver assim a morte. É a idade em que se cresce vários centímetros
por mês, é preciso trocar sapatos e o tempo passa rápido. Mas de
quê importa o tempo? É a idade em que não se imagina ficando
velho, sequer adulto. Como se pairasse.
Um ano atrás, Matias já
ia à escola e ia bem, por sinal. Tirava boas notas e muitas dúvidas
em sala de aula. Consolidara um trio de meninos que brincavam sempre
juntos, todos morando em ruas paralelas: Matias na Rua dos Rojões,
André na Rua Ibisco e Márcio na Doutor Paulo. Conforme suas pernas
finas se firmassem no chão – e cada vez mais se esforçassem no
futebol – ambos passaram a voltar para casa em conjunto, falando
sem parar sobre desenhos, jogos e atividades em sala. O pai de Márcio
trabalhava durante a noite e, com sua disponibilidade de tempo, era o
responsável por esperá-los no portão da escola. Geralmente
demorava a chegar, para mais ou para menos, quinze minutos depois da
aula, o tempo de os meninos brincarem mais um pouco. Brincar, naquela
idade, parecia ser a coisa mais saudável de se fazer, mais
importante ainda que as aulas básicas. Era o que os fazia correr,
falar, soltar risadarias e entender o que é criar laços. Em casa já
sabiam bem, não com essa palavra propriamente dita, mas com as horas
de paz familiar. Assim, era rumo a suas casas que iam, os quatro,
andando. Não era muito longe, bastavam quinze minutos. A primeira
casa era a de André. Depois deixavam Matias em casa e voltavam um
pouco o caminho até a do Márcio.
Matias tocou a
campainha. A mãe sempre aparecia na janela e, depois, destrancava o
portão. Do lado de fora podia ver as luzes do quarto acesas: havia
gente em casa. Tocou a campainha mais uma vez. Ela poderia não ter
ouvido somente; mais um toque e apareceria na janela. Olhou para
trás, em um giro brusco de pescoço, mas Márcio e seu pai, de mãos
semi-dadas, já haviam sumido na dobra da esquina, em exatos noventa
graus. À sua frente, Dona Maria estava sentada como todas as tardes.
Pois Dona Maria era uma senhora de muita idade e, paralelamente,
muita doença. Gostava de criança e fazia gracejos a Matias desde
que passou a morar na casa em frente à dele, falando coisas vez ou
outra ininteligíveis aos ouvidos pouco treinados do pequeno menino.
Um dia, sumiu e parou de aparecer no portão para olhar a rua. A
doença se agravara, não podia mais passear ou carregar peso; e, de
qualquer evento que fosse, por advento, se esquecia. Ficava mal por
esquecer-se, a Dona Maria, em uma espécie de vergonha, como se,
depois de tantos anos de vivências, se tornasse uma criatura
irresponsável. Por isso sumiu, e assim ficou por alguns cinco meses,
até que reapareceu detrás do novo portão – construído
especialmente para ela, que não o queria e nem imaginava ser o
motivo detal instalação. Estava como sempre bem sentada em seu
banco de madeira, sem encosto nem almofada, mas desta vez não
praticava seu crochê e tinha ao seu lado uma cuidadora muito nova,
de cabelos esparsos, que podia muito bem ser sua neta, mas obviamente
não era. Não havia nenhum traço comum entre elas, ainda por cima
após todo este tempo de envelhecimento pelo qual sofreu Dona Maria.
Era a primeira vez que reaparecia, com o fim do inverno, mas não
podia ajudar em nada. Matias, de longe, balançou a mão em largo
aceno, mas já sabia: ela não podia ajudar em nada. Não podia
ajudar em nada porque não podia sequer ajudar a si mesma – sua
cuidadora já se encarregava desta missão.
Tocou mais uma vez a
campainha, a última vez antes que desistisse. Arregaçou as orelhas
para ouvir o soar agitado que tilintaria direto da cozinha. E não
tinha problema nenhum, fizera o mesmo barulho de todos os dias.
Cecília devia ter ido ao mercado, ou ao banco, a mãe devia ter
feito isso mesmo, era só para isso que saía. Ou então estava
debaixo do chuveiro, logo ela que gostava de cantar durante o banho,
e só durante o banho porque no resto do tempo sentia uma vergonha
absurda do esposo, do filho, da mãe. Se cantasse não teria ouvido
suficiente para atentar-se à campainha. Em dez minutos sairia do
vapor quente que envolvia as janelas fechadas do banheiro e abriria a
porta. Foi sentar-se a única opção plausível para o meninote
Matias, ao lado da lancheira vazia que aplaudia à sua fome de
almoço. Já o medo o envolvia como uma toalha encharcada. E pingava
cada vez mais água gelada sobre suas pernas que nunca antes haviam
passado por nada como aquilo. As mesmas luzes seguiam acesas,
enquanto Dona Maria continuava sentada ao lado de sua cuidadora.
Assim ficariam as duas até mais tarde, imaginava Matias com
conforto. Elas eram um mínimo de segurança a quem nunca esteve
sozinho, completamente sozinho, no mundo dos asfaltos. A cuidadora
levantou-se sem pressa – do que poderia ter pressa, se levava uma
vida de idosa? – e para matias, que via tudo com muito mais
grandeza do que meus olhos crescidos, ela já era muito adulta, de
seios saltados e cabelos amarrados. Mas bonita não havia de ser, nem
para mim, que tenho a vista viciada pelo que os homens dizem ser
belo, nem para Matias, que era criança e não tinha razão para ver
beleza ou teor estético em qualquer gente maior. Ela estendeu o
braço, e era fino o braço, para Dona Maria fazer força e
levantar-se. Saíram juntas rumo à porta da sala, um passo, outro
passo, mais um passo, com calma. Fecharam a porta. Do lado de dentro,
sobre os tacos apodrecidos e úmidos pelas recentes chuvas, a rua
inteira – era pequena – podia ouvir os passos mancos de Dona
Maria, que mal se podia em pé.
Algum tempo se passou
quando o Ford cinza do pai de Matias apareceu na esquina. Duas
buzinadas breves se seguiram à pergunta.
– O que diabos você
faz aqui fora, menino?
– Mamãe não me abre
a porta.
– Que é que você
aprontou?
– Mas não fiz nada!
Ela sumiu, não apareceu nem na janela.
O pai já xingava. Como
podia ela ser tão irresponsável? Sair sem avisá-lo? E, ainda por
cima, deixando as luzes da sala acesa? Questionava a si mesmo e
estava, acima de tudo, pocesso. Caçou o molho de chaves na mala e
abriu o portão de zinco. O portão era horrível, mas com ele
pensava se proteger das maldades do mundo. Mal sabia ele o tanto que
fazia dentro de sua própria casa. Matias saiu a correr até a porta
da sala, chacoalhando sua lancheira, o estômago a rugir de fome.
Sentia uma mescla de alegria por entrar em casa, junto à chateação
de ver o pai irritadiço com a mãe. Na certa, já sabia, haveria
choro durante a noite. E hematomas escondidos sob as roupas.
Girou a maçaneta com
força e fulgor, com um tanto até de amor, e gritava pela mãe aos
ventos (que não existiam porque o dia estava mais abafado que
nunca), e chamava. Poderia estar cochilando. O braço empurrou com
força a porta enquanto o pai fechava o portão. Matias era tão
pequeno, não tinha porque ver uma coisa dessas. Seus olhos se
arregalaram e o espanto foi tanto que deu meia volta e agarrou-se às
pernas do pai, com uma força que ninguém sabia que tinha. Nem ele
mesmo. A visão da mãe morta, estatelada no chão, não lhe saía da
cabeça, e gritava. Agenor correu, deixando Matias sozinho junto ao
portão, e parou no limiar da porta. Por um instante ficou atônito,
aturdido, e não sabia quê fazer. Em seguida, chorou absurdamente,
gritando e aos prantos. Tomou o filho nos braços com um abraço
envolvido, e lembrança de algo semelhante a isto não havia na
memória. Esperneavam juntos, bem como juntos caíram ao chão a
olhar com olhos fixos o declínio da Cecília, boa mãe e boa esposa,
que se suicidara com a pistola da gaveta do marido. Agenor lembrou-se
que era pai, e de súbito ergueu-se junto ao filho e saiu pelo
portão. Tocou a campainha de Dona Maria e quem abriu foi a
cuidadora.
– Preciso que cuide.
Moro na casa da frente, e é muito urgente. Cuide que coma alguma
coisa, qualquer coisa, e volto aí em duas horas. Obrigado, obrigado
mesmo.
Matias, na casa de Dona
Maria, chorava mais do que seu organismo podia. Ela o olhava, sorria,
tentava levantar e a cuidadora dizia que não, que dissesse o que
queria, e Dona Maria: “aqueles biscoitos de mel para o menininho.”
Ele tentou voltar para casa, mas era impossível. Não havia ninguém
que passasse pelas grades daquele portão. Enquanto isso, Agenor
ligava a polícia, jogado sobre o sangue já viscoso de Cecília Sua
Esposa, espiando de tudo a procura de resquícios. Não havia
bilhetes, sequer erros de cotidiano. A feira havia sido feita, o
almoço esfriara nas panelas, e ela estendida, estendida e vermelha,
estorvando a rotina da casa.
A partir deste dia,
Matias passou a visitar a avó muito mais vezes do que no passado,
primeiro por não ter com quem estar quanto a ausência do pai
impera, e segundo para amaciar a tristeza da avó, que a partir da
lastimosa data, nunca mais trocou palavras com Agenor. Via nele a
culpa de tudo, a pressão e a regra, de onde veio o suicídio como
exceção. Voltaram a trocar palavras somente naquele natal, o
primeiro depois de tudo, e o fizeram não por si, mas por Matias. Era
o primeiro natal sem Cecília, a mãe, a filha e esposa. Ela fazia de
um tudo para o dia, embrenhada o dia inteiro na cozinha. Provável é,
na verdade, que odiasse tudo isso, mas nunca disse nada a ninguém
porque, se pudesse, teria vergonha até de falar. Os outros
convidados chegavam, todos de parte paterna, e Matias abria a porta a
todos. O andar de baixo da casa se amontoava de pessoas, mas sequer
Matias tinha primos que o entretesse. Juntou-se à avó e com ela,
sem perceber, iniciou seu estado de braveza ante todos aqueles que
mal se importavam. Ficaram um ao lado do outro, calados, como Dona
Maria e sua cuidadeira, porém, desta vez, ambos se cuidando.
A hora da ceia se
aproximava quando aquele primeiro tio a chegar levantou-se do sofá
e, desatento, esbarrou na estante de madeira escura que, sem chamar
muito as vistas, acolhia um vaso bonito, em cintilâncias de amarelo.
O cotovelo malcriado passou violento e o vaso, na mais limpa
porcelana, caiu como as lágrimas de Matias. No chão, esparramada,
estava Cecília, nos minúsculos pedaços de cinzas que eram o único
que havia sobrado dela. O pequeno Matias, num pulo, agarrou o tio
pelas pernas e o derrubou ao chão. Subiu correndo as escadas e
chorou seu choro agudo até o resto da noite. A avó, com pá e
vassoura, juntou o que pode em um canto da sala, mas já estava tudo
destruído. As poeiras da multidão se uniram em grandes flocos às
cinzas; aquilo não era mais nada de Cecília. Montou ao neto um
prato com todas as comidas que ele gostava e subiu vagarosa, em
passos de muita idade. Chorou junto, encostada sobre seus baixos
ombros. Enquanto isso, o andar de baixo não hesitava em fazer
barulho e rir, rir muito, como se fosse de propósito. Agenor entrou
no quarto muito quieto para dar um beijo no filho, mas não se
demorou muito. Assim que desceu, Matias em seu quarto pôde ouvir o
riso grosso e largo de seu pai. Por dentro de si, junto ao que lhe
sobrava do coração de criança, sentia que a mãe não merecia tudo
aquilo. Não, ela não merecia nada daquilo, e então se pôs
novamente a chorar até dormir de cansaço. No dia seguinte, uniu-se
à avó no ato simbólico de nunca mais falar com o pai, e assim o
fez até o próximo natal, quando chorou, de novo, a noite inteira,
como se a cada instante visse novamente a mãe morta pelas próprias
mãos e pela pistola assassina do pai.
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