terça-feira, 26 de outubro de 2010

Mofo

Eu acá em lábios rachados
E tu aqui em bico de papagaio
Eu acá feito espantalho
Entre intempéries e merda de pássaro
E tu aqui cantando Rosa ao vácuo
Ao meu vácuo, meu pacto com o diabo
Esse diabo que tem a mim como bastardo


Eu morrendo-me em som de bolero e fado
E tua vitrola sendo samba, festa, chocalho
Este chocalho teu de sementes, penas, gingado
Tuas penas atentas de todo meu estrago


Este trevo teu, quatro folhas mais orvalho
E eu, irresponsável, a fincar dedos em cacto
Do cacto, o fato:
Teu otimismo é um saco.

domingo, 17 de outubro de 2010

Monólogo com Interlocutor


à memória de Caio F. Abreu, mesmo que não baste.

Eu estava sentado frente à televisão, enquanto você se banhava. O que assistia não sei, uma bobagem qualquer – prestava mais atenção na envergadura de minhas costas preguiçosas e em minhas ancas devoradas pelo estofado pútrido de pregas que cobria todas as poltronas da sua sala de estar. E você a demorar-se no banho. Talvez não tivesse nem começado-o ainda. Talvez tenha estado todo esse tempo lutando contra suas espinhas adolescentes e mirando-se, inchada, no espelho – ao mesmo tempo eu, aflito e púbere tanto quanto você, duelava com minha espinha dorsal que insistia em envelhecer. Nunca havíamos subidodescido juntos em gangorras ou, rindo em espelhados dentes de leite, roubado pêssegos daqueles bolos bregas e dulcíssimos de vovó. Aliás, vovó nunca foi um grande elo para nós dois, sendo a existência dela o único ponto (assim meio pangéico) em intersecção para eu-e-você. 


A gravata borboleta obrigatória vermelha atijolada me importunava, enlaçando-me em trejeitos além do tradicional pinguim: eu era, ali encarando um apresentador de tevê babaca, uma parede; minha face, incrédula do programa familiar ao qual me submeteram, desbotava o muro que fazia-se meu-corpo e, mais e mais, abotoava por entre sardas e penugens de pré-homem o black tie desaconchegado. Aquele terno era palavra-chave, era como texto grifado, como o sim do matrimônio. Você desnuda sob cachoeira de água quente em seu box três por quatro, e eu aguardando sua demora no outro extremo do apartamento. Tendo afinal que existir naquela situação, comecei a apertar os olhos à decoração exclusiva de sua-mãe-minha-tia na sala de estar. Melhor que acompanhar a língua de cobra da atual moça da tevê sobre divórcios, gravidezes e casamentos entre gente famosa – pois de casamento já me bastava esse tal que me levava àquela casa, com compromisso de acompanhar você. 


Três quadros de coelhos em acrílico saturado emparedavam-se nas texturas amarelas e meio tortas do ambiente. A mesinha de centro contava com bordados e uma espécie de presépio, digamos assim um santuário, todos os bonequinhos de gesso malfeitos involutariamente com o estrabismo em guache e o tempo, desengonçado tempo, já havia arrancado-lhes todos os dedos. Os pés, em compensação, tinham as pontas todas em cores, e me lembro bem de ouvir titia contando em um natal, com os ombros em estralos de tensão, que fora você quem os riscara, à caneta hidrográfica, em tentativa pedicure. Já era hora de sairmos e você lá em seus caprichos despidos. O sol devia estar ardendo lá fora, não tenho certeza porque a cortina milenar de estampas florais e arranjos azuis se adensava em tamanho pó que tornava o translúcido opaco. Lucidez é transparência? O único som audível naquele baú-lar de bajulação vinha das caixas de som televisivas. Os resquícios de barulho do chuveiro em sua cabeça pareciam mais tato que audição, surgia-me até a impressão de fumaça quente de umidade pela sala. De resto, minha mudez. Porque eu penso todo quieto. 


Uma vez, encuquei de ir na terapia, já mirabolava respostas inteligentes para perguntas clássicas e idealizava o modo mais cabível de deitar-se em um divã. Carreguei um de meus cabeceiros livros na bolsa para o caso da necessidade de algum intelecto que não fosse o meu, e antes disso embarcara em eleger meu favorito, drummond ou vinicius. Cheguei lá demarcando cada passo meu para eventuais cronólogos, mas o que ocorreu foi um monólogo: a mulher, altiva e em tom de compreensão pôs-me num sofá e, em perguntas do tamanho do mundo, deixou-me falar e falar e falar e eu não falei nada porque quando penso não falo e foi disso que lembrei quando estático entre as polias daquele apartamento-móbile esperando você, que não saía nunca do banho e ainda precisava atrasar cucos para que fosse possível o vestido, o delineador, o pente, o sapato, a bolsa. 


A casa vazia, só eu, você e a mulher da televisão, e nunca simpatizei muito com nenhuma das duas, talvez com nenhum dos três. Você também sempre me fechava a cara e me largava em monólogos para, desdenhosa, saltitar tremelicando e abraçar o labrador cor de chocolate da vovó. Éramos nós três e os santinhos da mesa de centro. Nós muitos e o telefone que explicitava nosso atraso para o tal casamento de tia distante. Nós milhares sem vontade de convivermos juntos e – o grito. Arrasador, que você manteve desde sua infância de mimos e não queros. Seu grito invadiu a sala e, grossamente agudo, espancou a cortina querendo ganhar mundo, fazendo cair dela todo o pó encrustado. O que fazer, entrar casa adentro, nunca havia vindo aqui, há tempos não falo com essa menina pentelha, por que afinal não tem mais ninguém nessa casa, por que eu aceitei ser chave desse casamento, fui. Mas em passos lerdos, arrastando-me pelo corredor de caro assoalho, no coração daquele apartamento: atrás a sala, aos lados fotografias emolduradas de seus pais em juventude e de seus sorrisos sapecas, algumas desfocadas e sem brilho, uma ou outra com vovó, e de nós não havia nada, pois retrato é daquilo que foi. Nem fomos, nem somos. À frente, a porta, e um feixo de luz em linha reta sob suas madeiras. 


Os gritos se espaçavam mas ainda tinham força, nesta hora – atrasada – não mais com susto mas com um certo pavor, talvez uma pontinha de escárnio. Forcei a maçaneta e abri, meticuloso como pinça. O ruído da porta por instantes chocou se com seu grito e em minha cabeça aquele zumbido todo era som de demolição de casas cinquentonas. Você virou o rosto e tinha os olhos arregalados, irritados com tanta água que caía do teto, seu braço tremelicava com o dedo rijo, apontando. Aquela situação não deixava de ser ridícula. Você esperneando e implorando sem dicionário que eu retirasse da parede azulejada um baratão que nem era tão grande assim mas possuía pernas delgadas e grossas, lembrando até as de jogadores de futebol. Os pelos pareciam ramificações das pernas – seis! –, enraizando a barata naquele cubículo que pertencia a você. Situação ridícula e plausível. Lembro que parei incrédulo no limiar da porta, fantasiado de pinguim sem rosto e um ar de e-agora exalou-se, com um aroma lírico que talvez nenhum banho retirasse, nem nos límpidos rios indígenas. Éramos nós três. 


De um impulso que nunca antes aflorara-me, rasguei-me e, mudo, arranquei com a palma da mão em direção à barata. Num golpe só, acabou-por descascar-se e duas pernas e meia ficaram infiltradas no azulejo alaranjado, enquanto a carcaça boiava em direção ao ralo que não atravessaria. Você me encarou como dizendo por-que-você-fez-isso e eu olhava soluçante para a minha mão aberta em escarro e gozo e morte e meu paletó já continha um mar dentro de si e olhava para seus cabelos como que pensando dizer não-sei-porque-mas-foi-você-que-suplicou. De súbito, você fugiu do box em saltos e tascou sua toalha, deixando-me parado trás a porta de vidro. Assisti a parte de seu desfalecer-se e, enquanto mentalizava o quanto você continuava ridícula como sempre, espiava com os cantos dos olhos esses seus despontes de carne, sua escápula transcorrendo da cortina epiderme e sua face acidentada de pavor e acne, assim limpa e um pouco avermelhada. Acabrunhei-me ao relógio mas este, incompetente, parara de tiquetaquear após tantas águas. Você me encarou, com as costas horizontais e o pé esquerdo sobre a tábua da privada, secando as batatas da perna, como que assumindo em-cinco-minutos-estou-pronta-pode-deixar. Isso era um sai-daqui-já-chega-você-é-insuportável. 


Voltei para a sala rastejando, o corredor com os rastros úmidos de meu terno molhado. Então era a vez da moça do tempo falar das regiões de pancadas fortes de chuva e das temperaturas máximas e mínimas. Eu, pensando quieto e afundado nas poltronas de sua casa durante os exatos cinco minutos em que você se aprontou sem maquiagem nenhuma e em seguida saimos correndo sem olhar um para a cara do outro mas ao mesmo tempo tentando parar um taxi porque a moça da meteorologia estava certa e no verão há pancadas de chuva – eu pensava quieto em seus cabelos desgrenhados com um resto de xampu porque você nunca soube lavá-lo direito, em seus olhos levianos pedindo socorro, em seu dedo em riste tremendo o braço e balançando seus seios por pouco não mais infantis que você tentava esconder enquanto gritava surda em nosso primeiro e único diálogo.


p.s.: sim, eu me utilizei de uma foto de Psycho, do Hitchcock, para uma história totalmente outra, mal aê.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Zarité


Pensa só:
Se balança o lenço
Sem senso
De vento
A dança sem sono
Sem sina
Sendo sonho
Samba o centro
Do açoite
Sentido
Há segundos
Passados,

Se a sombra
Se some,
Se assume
Essa dança
No solo absorto
De sangue
Um sussurro ou outro
Ao Erzuli, loa de
Suor e sossego,

Se a dança semeia
Uma sorte na vida
Um doce sortido
Sacos de café,

Se a dança se revolta
Esmigalha a senzala
De suja cinzês
De certos passados
Que agora tem vez,

Se a dança se solta
Se salta
Se soa
Seu sinal
Sai do sulco
Que sobra
Da servidão,

Se sopra
O sibilo
Da brisa
Da chuva
Da seca,

Acerta-se
Sem sequer
Cerimônia
Como o som
Do sol
Em céu
De sempre,

Pensa só:
Dança só:
Dança soluços
Só dança.

domingo, 3 de outubro de 2010

Gravação


"Não é necessário sair de casa. 
Permaneça em sua mesa e ouça. 
Não apenas ouça, mas espere. 
Não apenas espere, mas fique sozinho em silêncio. 
Então o mundo se apresentará desmascarado. 
Em êxtase, se dobrará sobre os seus pés." (Franz Kafka)


"Nem me venha com essas tuas ladainhas. Bem sabes que te conheço de outros carnavais. (Carnavais antiquíssimos, por sinal.) Se te encaro agora nesta singela mesa de cozinha, assim com sombrancelha e olho formando ponto interrogador, é porque quero saber a pontuação de tua face, os acidentes desdentados dessas doze horas em que, como todo dia estiveste fora, mas das quais não todo dia voltas de olhar machucado e censurado, precisando costura ou conserto.

Tu nem aguentas tomar teu café, estou aqui esguelhamente atenta aos teus bebericos em falso. Pensas que me engana? Descobriste o amargo. É, eu bem notei. Amargo a alguns parece turvo, a alguns é alergia, a alguns é como batalha desigual. Onde já se viu honra em cavaleiro armado tentar duelo com gente nua de ataque e defesa? Café é bom para quem o compensa com prazeres de vida. Na boca destes, café é o próprio prazer, um tipo meio elixírico, meio lírico; café é pedacinho de vida, moído mas com essência incrustada.

Por que teus olhos estão presos nesta xícara de sombra imbebível? Por que não me miras? Por que finges que sou mais uma cadeira da tua cozinha maltrapilha? Mais um gostinho de chá de cadeira, é isso! Chá é como fumaça, a gente capta no ar, a gente bebe fragrância. Chá é incenso líoquido, lembra sabores e dissabores. Dissabores, hm... conta-me a razão de toda esta tua impessoalidade? Esta tua ausência de pessoa. Pela manhã sorrias, lembravas até os sóis de janeiro. Mas agora... agora lembra-me túmulo, uma tumba sem qualquer retumbância - agora arrepias-me. Ajusta teus binóculos reguláveis aqui para nossas redondezas, tu aparentas desfoque, bem como o ato de vestir a miopia que não te pertence. 

Até porque talvez ela não fosse assim a moça certa. Ela mesma, não disfarces! Conheço mais tuas mímicas cerebrais que ti - ainda mais quando perdido em lentes tu estás. Que te passou? Hoje de manhã disseste que a voz dela atendera ao telefone junto com ela toda. Bela voz, todo o país discador sabe. Mas ela esconde levianas desgraças em seu pretexto de secretária eletrônica. 'Sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagem', a tal moça diz todo instante nos milhões de telefones brasileiros, ela ali robótica, repete e repete sem dó nem piedade aos tantos saudosos, desesperados e fofoqueiros por aí, só precisando de trocar palavras com quem não atende.  E aquela voz fria dessa moça que tu tanto amas, mas que nunca recebe tua fala ao telefone, nunca dá-te chance de ouvir viva voz. Já te alertei, e tu nem prestaras atenção: tanto ligaras para esta moça, em tentativa invólucra de ouvir os lábios dela (pois sempre ouvirias, ela em fala ou gravada), e não percebestes que o som só vem dos lábios quando estes são espontâneos. Lábios têm a espontaneidade em cada rachadura, em cada curva dimensionada projetada. Ouviste hoje à mulher ou à mecanização dela? 

Ao primeiro café de cada dia, empolgara o riso confabulando sobre essa senhorita, maravilhosa senhorita, que levara o telefone à orelha e substituíra a própria voz gravada. Conta-me os detalhes, completa-me este álbum de fofoquinhas! Teu almoço foi solitário? Teu olhar devorava só o comercial completo porque era este a única companhia? Não duvido que tenhas salpicado pimenta pelos feijões - esses seus vícios por substituições de prazeres. Esperta-te, e aprende a separar os tons; a humanidade foge quando a repetição se imortaliza: a frase assim, idêntica em voz e tempo, para tantos necessitados de real voz voraz. Não sofre nesses tantos! Beba um copo dágua, inventa pr'ele o sabor que te apraz - beba sim um copo d'alma. 

Mas... que é isso? E só agora eu te percebo em situação calamitosa! Pára com isso, não te revomites ao mundo, isso acaba-te todo! Socorro! É o horror, é o horror! É a dor de um eletrônico fervor! Ó, salva-te à medida que tento te ajudar! Por favor!"

Os olhos revirados, enfiados nos ouvidos, só tinham foco no cérebro, única paisagem definível. A boca, babando escarro em pingos no copo vazio produzia aguardente agudo, desses que cortam gargantas desavisadas. Os lábios, pobres lábios, trancaram-se em sangrenta intersecção de dentes costurando com restos de cílios idosos os pontos de acidentes. Os últimos regozijos de poço esguichavam do rosto daquele homem na forma de espinhas adultas compostas por estresse; o corpo, estirado à cadeira, intacto para reaproveitamentos necrófilos. Um bigode digno de Dalí estampava, em caneta de escritório, as outonais maçãs do rosto.

Dizem os vizinhos que depois ela enlouquecera; que vive de camas, psicólogos e manicômios até os dias de hoje. Mas reumanizara aquele a quem tanto falara. A quem tanto desentendera, desajudara, desesncantara, pobre senhora, gastava horas e horas em tentativas de auxílio àquele desvairado. Era preciso soltá-lo logo, alguém ali perto chamava! Era preciso desamarrar, descosturar, voltar os ohares aos seus devidos lugares! Era preciso desentranhar os sentidos, desestranhar o homem do mundo. Pois não se salva gente sem ajuda dessa gente. A dona senhora catou as mãos baratosas do amigo, tentou desanuviá-lo conduzindo seus dedos pelas encrencas de seu rosto. Não havia tempo; talvez fosse aquela a única chamada, a última das possibilidades, o último vício. "Desmecaniza-te, homem!", bradava ela entre soluços, louca e de subfaces explodindo em artifícios, os braços espalhando-se pela cozinha há horas já ensanguentada, "Não faze-te tal qual a mulher que desprezara-te! Ouve, criatura!"

Dentre restos e carnes, secreções e odores de lágrima, remorsos e hipnoses, as narinas continuavam intactas, na medida do possível. Um cheiro de forno, molho ao sugo, uns toques de parafina e castiçal, toalha rendada. Trejeitos de noite fresca. "Alguém me acuda, alguém me ajuda, não há tempos a perder!" O olfato despertou ao homem movimento próprio, é preciso, é preciso! Subitamente, é preciso! E o desenlaçar-se foi preciso. Tal qual despertar-se. Ainda havia tempo, afinal: O telefone continuava tocando. Bip.