sábado, 25 de dezembro de 2010

Parentada

à Maria Fulô, nossa árvore-de-natal-cabide que eu nominei mandacaru

Não sei se é culpa das tais novas tecnologias ou se tal situação é inversamente proporcional ao meu crescimento (neste ano me tornei mais alta que minha mãe, gente!). Talvez também seja pelo estilo meio chita de correr o tempo neste ano tão rápido. Só sei que cada vez mais sobra espaço na casa, que antes lotava durante o natal. Eram bonitos os natáis daqui de casa -- pela noite, a casa inteira virava uma suculenta mijadra (prato árabe típico de vovó) de filhos, primos, tios, avós, tios-avós, primos-tios, filhos-netos, todas essas confusões dignas de novela mexicana e vez em quando até vizinhos tinham presença garantida. Talvez o espaço superlotado se dividisse em três: parentes, comilança e presentes. Hoje em dia, cadê? A criançada cresceu e não ganha mais bicicleta. Nem caixas gigantescas de bonecas medonhas e trilíngues. Nem os envenenados carros de fricção maiores que cabeça de criança. Tudo pequeno (digamos minimalista, que atualmente é um termo que está na moda), a gente ganha celular, dinheiro, emepetrês, livro ou devedê. Acho ótimo, pois meu saldo desse ano foi Walden, A Esperança e ainda posso tomar a liberdade de usufruir d'O Caçador de Pipas, Outra Vez (do Che) e cedês da Elis e do Bosco, tudo presente que parentes mais próximos ganharam. 

A esposa de meu tio tem família no Paraná, e lá foram eles comemorar o natal, levando junto a Maria Júlia e o João, os pequininíssimos que ainda esperavam a chegada de Papai Noel com um saco cheio de presentes, entrando pela porta da sala. Eu mesma vi Papai Noel poucas vezes. O de verdade, digo, pois desde pequena já havia sido alertada por mamãe que Papai Noel de shopping é de mentirinha. Como a família não possuía as tais vestes vermelhas, sempre chegavam com uma história de que "Papai Noel não sabia que o natal ia ser aqui em casa, passou na casa da vovó antes e deixou os presentes lá. Tó o seu!" Esse ano, meu pai, exibicionista como sempre, decidiu esculachar com a imagem do bom velhinho e saiu pela casa se vestindo toscamente com o paletó vermelho e a barba sintética. "Eu enganei todos vocês! O Papai Noel que subiu no telhado da casa da vovó naquele natal era eu!", gritava meu pai em alegrias para mim e todos meus primos. Há quem tenha soltado risos de canto com tal graça, mas um ar de dúvida surgiu no ar. Meu priminho, o mais novo no recinto, ainda tinha esperanças nos presentes pedidos via cartinha, diretamente para o Pólo Norte, entregues direto pelas mãos do velho. Aprendeu as verdades da vida num baque de segundo. 

Há um tempinho atrás, na hora da ceia tão esperada -- pelos adultos por motivos óbvios e pelas crianças porque o fim da ceia era equivalente a abrir presentes --, os mais velhos sentavam-se à toalha florida de comidas rebuscadas enquanto as crianças se acomodavam no sofá, junto à programação comemorativa -- horrenda -- da tevê aberta, ao mesmo tempo em que, estabanadas, derrubavam arrozes e pedaços mal cortados daquelas carnes que ninguém sabe direito o que é. Ontem, com a ajuda de alguns bancos improvisados a mais, não duvido da possibilidade de sentarmos todos juntos à mesa para devorar loucamente a comida quando nem fome sentimos direito, em meio a milhões de assuntos paralelos muito diferentes entre si que, às vezes, se entrelaçam e confundem a mesa inteira. A partir daí, inicia-se outro assunto totalmente outro, e assim vai até a pausa para todos se atentarem à hora da sobremesa. Rabanada, rabanada... Se não fosse a presença de uma amiga de mamãe -- cozinheira por excelência -- não teríamos rabanada!

Poderia agora finalizar a crônica com lamúrias e saudosismos que de nada valeriam. Dizendo que doismiledez teve natal mais melancólico, faltando hipérboles, vovô Ivan, Icleia (viúva do meu finado vô que, espalhafatosa, fazia-se engraçada e extrememente brigável), tio Guto e as crianças (que já contei terem viajado), Tiquinha e Juju que só vem no vintecinco, tio Leo para encrencar com o mundo inteiro e aquele monte de criança pentelha correndo por todos os cantos. Mas acho que está bom assim. Não minto, pois foi também natal de alegrias e presentes emocionantes, aquele ditado dos pequenos frascos que todo mundo já está cansado de saber. Acabo este registro ao mesmo tempo em que, veja só!, o disco da Elis também se acaba -- "Pois vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação". O almoço do dia vinte e cinco (com os restos da fartura de ontem) me espera, com também uma certa parentada. Um beijo, bye bye, até logo e, sempre, "quaquaraquaquá", minha gente!

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Poesia em parapeito

A prosa desperta, desponta,
Abre a janela,
Narra a poesia e se conta.

Poema se enlaça entre velas
Ou num sol-fevereiro
Se esbanja em camélias;
Poema é a arte dos pacientes.

sábado, 18 de dezembro de 2010

(Sê)rmão

De "se" a "se", não há
Ser humano ou sombra disso
"Se" é hipótese covarde: Sê, isso sim.

Sê teus próprios impropérios
Improvérbios, magistérios internos
Tudo que se seja.

Sê o balcão o amendoim a cerveja
O passo falso decadente
Sê a fraqueza de teu fígado insaciável.

Sê os cílios de tua filha
Vislumbrados com um cão
Que rosna. (e tu nem vês nada)

Sê a luz do poste falho
Vista em óculos de teu amigo ao lado
E te atenta que essa fonte não é luar.

Sê sem roubar dramas alheios
Sê sempre a prática ideológica
De bandeira teórica e própria.

Sê essa chuva rala
Que não-se-vê, não-se-vê
Mas goteja na pele e na ponta do nariz.

Se ordenam que eu me seja
Assim de bom grado serei;
Assim de bom grado sereu.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Personificação

Para o Ive , o meu tal amigo-Poema

Macabéa era estrela
Alice, curiosa
Pedro Bala foi herói
Sierva María, paixão contagiosa;

Capitu tinha olhos singulares
Zarité, o melhor dos gingados
Mr. Hyde era fração humana
E Gregorio, por mutar-se, acusado;

Quincas morreu em primeira página
Tal como a barata de G.H.
E o pai de Pedro Páramo
E o irmão de Holden Caulfield;

Mas quem nasce agora, personagem
E renasce a todo instante
É poema inteiro de coragem
A um amigo, codinome Poema:

Conheci não lembro como
Talvez em páginas mais líricas
De juventude, estudos, mímica
Amizade em tom autônomo;

É um Poema tão galante
De sorriso que se alarga
Com abraço que não tarda
E atravessa o coração-semblante;

Tal Poema é meu amigo
Pois resguarda boa-vontade
Graça, mimo e bondade
Junto à chatice e às besteiras de menino;

Meu Poema que é tão moço
Tem bigode de penugem
Mal cresceu, é cor ferrugem
Aparenta ser esboço;

É Poema bem mineiro
Que até fala com sotaque
E se pega em xeque-mate
Em discussões sem argumento;

É Poema-personagem
É poesia literária musicada
Em cada verso de seus risos e entoadas
Antologia de amizade e molecagem.

(Leio, e leio para conhecer pessoas
Dançar toda nossa humanidade
Transmutar meus amigos em pássaro que voa
Que é pra não me morrer de saudade.)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Camaleônico


"Com desperdício de cores
Selo o fim dos meus amores"
(Thiago de Mello)

I
Sob o sol meu olho é verde
Em dilúvio ele se azula
Ao te ver ele se perde

Cai a tarde, vira anil
Em milímetros de poente
É um carmim que ninguém viu

Em invernos é magenta
Aos holofotes, encastanha
A teus trejeitos se atenta

Em casa de vó é pura turquesa
Pelo trânsito se acinzenta
Se te mira, és tu minha presa

Com abajur é todo preto
Em luar-pérola, cor de mel
De olho fechado eu te vejo.

II
A insensatez ainda é oblíqua
Pois a miopia impera:
O que o olho mira em mim não fica

Basta!, tanta ladainha me horripila
Meus próprios olhos eu não vejo
Prefiro enxergar mundo, tua íris e pupila.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Assassinato de pequenas causas



A: Você viu a vítima?
A: Veio lá da vastidão
A: Vagueando entre veludos!

B: Era velho, vil ou vândalo?
B: Quem o viu, o vigilante?
B: Vim aqui ver os vestígios!

A: Verdureiro venerado,
A: Dos cultivos vitalícios.
A: Prova viva é o vigário!

B: Quem seria vil à vida
B: De um varão tão bem visto?
B: Evoque já as viaturas!

A: O que viram é duvidoso
A: Se verdade, é uma vergonha...
A: Quem o vela é a viúva.

B: Verbalize tal vacilo
B: E veloz virá a verdade.
B: Quando vem a ser o velório?

A: Violaram-no em veneno
A: Varejando sua cabeça
A: Contra as vozes da varanda.

B: A viravolta já me veio
B: Não vazou-me quem foi o violento
B: Cuja várzea varreremos.

A: Quem vingou com valentia
A: O vaso de verdugos esverdeados
A: Sem vacilos ou vexames foi...

B: Vocifere tua voz, sem vetos a cada verbo!
B: A vilania ainda é vindoura
B: E viajaremos de véspera ao velório!

A: Quem soltou o sangue violáceo
A: Em vitupério e violência
A: Foi uma invejosa violeta
A: Da varanda vergastada. 

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Carta ao meu verdadeiro lar


"Está escurecendo. Tenho que voltar pras minhas terras, tenho que encontrar minha bella casinha. Mas como faço pra levar todas essas bugigangas que deixei aqui? São também fração de mim. Aceita-me como todos esses meus apêndices? Estou voltando, mas não tenho como bater à porta porque minhas mãos estão ocupadas com essas minhas tralhas. Abra-se pra mim? Semana passada o calor imperava, aposto que você sentiu também. Quase rapávamos careca de tanta quentura na cachola. O ar mantinha-se fresco, dançando entre moléculas. Nós pulando, nós em bellas gargalhadas, os pés sentindo a areia úmida à beira do mar. Ah, Mar, és também meu lar! Teus rebolados me instigam os caminhos... pra ti me vou, mas em ti serei nômade: aqui tenho meus álbuns de fotografia e minha casinha que tanto me bem-guarda. 


Pois Recife é também meu lar, mas só o é por ser Vida para minha casa. Minha casinha, a passos ansiosos, me levou até Recife, mesmo com alguns atropelos e pausas no caminho. Foi-se o tempo em que corríamos para tudo quanto é canto do mundo - porque afinal, para crianças, um ou dois centímetros já são gigantes mundos. Agora a gente tem fome. Fome de mundo, fome de dias, fome de êssencia, fome daquele tempero verdadeiro, que não precisa de sal: já se gusta por si só. Mas preciso da minha casinha por perto, pois ela passeia comigo. Às vezes se enraiza, é certo. Mas costuma acompanhar-me. É de muito belleza minha casinha. Toda amarela, com estrelas vermelhas em alguns cantos, meu lar vezenquando se camufla, mas isso é só porque é uma casa no campo. Está ficando escuro e o vento frio se achegando, abre a porta pra mim? Sinto falta de teus ideais, do sofá que guardas para mim, da escarola que me serves à contragosto. Sinto falta de tuas birras, porém mais ainda sinto falta de tuas andanças cantantes, quando acompanho teus caminhos por nossa janela. 


Casinha tão bella, de margaridas em parapeito, e veranesca paixão, só queria de avisar que gosto de, pela nossa janela, olhar o teu andar que se faz nosso, por entre política, gastronomia, cinema e futilidade. Pensa só, Casinha que tanto amo: agora o inverno já foi-se, por enquanto é tempo de Sol, Saias Rodadas, Dilma, Olinda - Tu Tão Linda. E se ainda não for tal época, se atranquila, a nossa estação há de chegar logo. Pois verão é tempo de janelas abertas, portas destrancadas, passeios na praça, pipoca e sorvete. Tempo de férias, tempo de comemorar novos anos em viagem (essa tal viagem de sempre que, pode parecer ingenuidade, mas tem pezinhos andarilhos por entre tantos mares, tantas ervas-daninhas. Por entre tanta orquídea, por entre o cão risonho da maior negritude que acompanha o passo do tal "eu e você-minha-amiga"). Temporada de Casa no Campo. Onde, como já diz Elis, eu possa plantar meus amigos, meus discos e livros e nada mais. Isabella, obrigada por me abrigar sempre, por ser assim "a certeza dos amigos do peito e nada mais". As margaridas que me perdoem, mas minha Casa no Campo é recheada de mandacarus. Talvez eu tenha sumido em algumas estações, mas o inverno e o outono são sempre um pouco mais complicados, e acho que você partilha da mesma opinião. Acho que preciso visitar mais - muito mais! - minha Casa no Campo, tão linda e charmosa que ela é! Obrigada por tudo e feliz aniversário." 


(12/11/2010)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Resina

Violino, tal qual meu amor
Talvez com traços violetas
Ante aquele verniz-madeira

Violino assim rasgado
Uma nota, som afinado
Nos fiapos dó-ré-mi

Violino, vi-o-lindo
E sofro em curvas de agudeza
Cordas apertadas que se ecoam só para si

Violino, artefato esconderijo
Cujo arco sinestésico
Toca o corpo e incita voz

Violino, quatro cordas
Quarto e vozes em sussurros
Vinho e tato em solidão

Violino, tão sofrido
Violino resguardado
A cabeça sua voluta, aguardando mil volúpias

Violino é meu amor
Que se faz em fricção
Em meus sonhos, utopia da mais pura ficção

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Pedras


 - Qual será a de hoje?
 - Blowin' in the Wind.

E nenhuma palavra mais. Roger começou sua cantoria junto ao inseparável violão vermelho enquanto a tal moça escutava de olhos atentos às unhas sujas que se movimentavam em piscares pelas cordas e casas. A princípio era uma relação um tanto quanto bizarra: A moça caminhava pela grande avenida de metrôs, cinemas e bancas de jornal, enquanto Roger conversava com um senhor pedinte de pernas amputadas. De um salto, esqueceu-se do velho deficiente físico e, inflando o peito fraco com o máximo de garbo, apresentou-se:

 - Roger, O Músico De Rua. Prazer!

Ela, em gestos bruscos de quem fora pega desprecavida, soltava monossílabos avulsos, porém cabíveis. (Monossílabos, por mais que sem grandezas, guardam as maiores profundidades do ser humano. Resta a cada um escolher se o seu guardar é mostrado ou omitido.) Roger, O Músico De Rua, perguntava em insistência frenética que música a moça gostaria de ouvir – qual, qual, qual - deixando claro que pedia por ouvidos e não moedas. Em (como sempre) atrapalhada tentativa de mistério, a confusa moça deixou à escolha do homem. Ele que descubra, se é tão músico assim como diz. Sem meias palavras, fugiram da caixa do violão alguns acordes conhecidos, start spreading the news, I'm leaving today, I want to be a part of it, New York, New York. Observando os dentes daquela criatura, cada um com um ângulo diferente (imagine só: um mapa de senos e cossenos, diversos círculos trigonométricos, nesta boca infeliz!), seu pensamentos se voltaram à voz do homem que já beirava uns trinta anos. 


Pois não é que a moça, diante de Roger O Músico De Rua, o lendário desconhecido, o conhecedor de mundos cuja São Paulo não faz a menor ideia de quem seja, este mesmo; diante dele, a moça de cabelos sujos pelos ventos poluídos ouvia a apresentação única e exclusiva de Dylan cantando Sinatra. Roger O Músico De Rua não é algo tão distante de Bob Dylan O Músico De Vagões De Trem. A moça, em auge de miçangas e juventudes, foi-se embora antes que Roger começasse a já proposta segunda e última música do primeiro dia – mal sabiam dos próximos que viriam -, não sem antes bater palminhas com uma mescla de satisfação, simpatia e descompasso (descompasso este oposto às sabedorias musicais de Roger mas proporcional aos trilhos tortos de seus dentes amarelados.)

 - Obrigado pelo carinho e pela atenção. Nos vemos dias desses pelos aquis. - ele concluiu em ares joviais de certos pingos de rebeldia, as fuças aprumadas para sorrisos retribuíveis, transparecendo companheirismos. Ela, em passos largos de interrogações, absorta em entender a bizarrice dos ares que a mantiveram em sincronia amiga a um músico de rua de voz nasalada totalmente perdido no tempo.

Pois em outros dias de andanças e divagações se cruzaram novamente e ela, sem pestanejar, exigiu The Hurricane, cujos palpitares ecoaram ao mesmo tempo que seus conflitos internos da época, essas tais besteiras que importam, cujos mares não cabe a mim navegar. Dylan esteve novamente encarnado ao seu lado. Aplausos; sílabas; adeus; adeus não, eu diria até logo; se é assim, então até; sorrisos solitários de memória recente. Se encontravam pela hora do almoço (eles que nunca tinham hora certa para refeições), e a moça um tanto quanto sensata (talvez até um pouco demais) nunca permitira que Roger se ecoasse por mais de uma canção, em recuos e semáforos de anseio. 


Agora, frente a um pedido que conhecia e esperava, Roger O Músico De Rua, o bom, o ídolo único, o cara estranho, este mesmo; ele errara as notas, errara a letra, a tal resposta ficou pairando no vento sujo da cidade podre e ele não tentara tocar, não levantara um dedo para acalmar as trilhardárias perguntas da tal moça. Não, Roger Músico de Rua, um beijo aproveitador não ajudaria; esqueça. Tentara abandonar a canção e trocá-la por um Raul qualquer, sem ver que este não fazia jus àquela específica calçada movimentada onde estavam os dois sentados, intocáveis. Roger, para você não há como caçar respostas porque não perguntas nada. Agora nesta tentativa afobada, adivinhara errado o som que me cabe, e assim vemos que nossas desatinadas afinidades são bastante desafinadas. Ainda se sua saída fosse “don't think twice, it's all right”, ou qualquer merda do gênero. Mas não viste nada, assim com o olhos encovardados atrás de opacos óculos. Fácil olhar nos olhos dos outros quando eles não podem chegar aos teus. Pois eu mesma não acredito nem nunca acreditei em adivinhações. O que há não é nem sintonia; é, isso sim, sincronia. Diante tantas monodiscursos escuros mentais, a moça de nome desconhecido e desnecessário joga os cabelos como um lençol vermelho no varal e adeus:

- The times, they are a-changin. Sei bem, sei sempre a todo instante dessa avenida em pisca-pisca. Porém... it's all over now, Baby Blue.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Mofo

Eu acá em lábios rachados
E tu aqui em bico de papagaio
Eu acá feito espantalho
Entre intempéries e merda de pássaro
E tu aqui cantando Rosa ao vácuo
Ao meu vácuo, meu pacto com o diabo
Esse diabo que tem a mim como bastardo


Eu morrendo-me em som de bolero e fado
E tua vitrola sendo samba, festa, chocalho
Este chocalho teu de sementes, penas, gingado
Tuas penas atentas de todo meu estrago


Este trevo teu, quatro folhas mais orvalho
E eu, irresponsável, a fincar dedos em cacto
Do cacto, o fato:
Teu otimismo é um saco.

domingo, 17 de outubro de 2010

Monólogo com Interlocutor


à memória de Caio F. Abreu, mesmo que não baste.

Eu estava sentado frente à televisão, enquanto você se banhava. O que assistia não sei, uma bobagem qualquer – prestava mais atenção na envergadura de minhas costas preguiçosas e em minhas ancas devoradas pelo estofado pútrido de pregas que cobria todas as poltronas da sua sala de estar. E você a demorar-se no banho. Talvez não tivesse nem começado-o ainda. Talvez tenha estado todo esse tempo lutando contra suas espinhas adolescentes e mirando-se, inchada, no espelho – ao mesmo tempo eu, aflito e púbere tanto quanto você, duelava com minha espinha dorsal que insistia em envelhecer. Nunca havíamos subidodescido juntos em gangorras ou, rindo em espelhados dentes de leite, roubado pêssegos daqueles bolos bregas e dulcíssimos de vovó. Aliás, vovó nunca foi um grande elo para nós dois, sendo a existência dela o único ponto (assim meio pangéico) em intersecção para eu-e-você. 


A gravata borboleta obrigatória vermelha atijolada me importunava, enlaçando-me em trejeitos além do tradicional pinguim: eu era, ali encarando um apresentador de tevê babaca, uma parede; minha face, incrédula do programa familiar ao qual me submeteram, desbotava o muro que fazia-se meu-corpo e, mais e mais, abotoava por entre sardas e penugens de pré-homem o black tie desaconchegado. Aquele terno era palavra-chave, era como texto grifado, como o sim do matrimônio. Você desnuda sob cachoeira de água quente em seu box três por quatro, e eu aguardando sua demora no outro extremo do apartamento. Tendo afinal que existir naquela situação, comecei a apertar os olhos à decoração exclusiva de sua-mãe-minha-tia na sala de estar. Melhor que acompanhar a língua de cobra da atual moça da tevê sobre divórcios, gravidezes e casamentos entre gente famosa – pois de casamento já me bastava esse tal que me levava àquela casa, com compromisso de acompanhar você. 


Três quadros de coelhos em acrílico saturado emparedavam-se nas texturas amarelas e meio tortas do ambiente. A mesinha de centro contava com bordados e uma espécie de presépio, digamos assim um santuário, todos os bonequinhos de gesso malfeitos involutariamente com o estrabismo em guache e o tempo, desengonçado tempo, já havia arrancado-lhes todos os dedos. Os pés, em compensação, tinham as pontas todas em cores, e me lembro bem de ouvir titia contando em um natal, com os ombros em estralos de tensão, que fora você quem os riscara, à caneta hidrográfica, em tentativa pedicure. Já era hora de sairmos e você lá em seus caprichos despidos. O sol devia estar ardendo lá fora, não tenho certeza porque a cortina milenar de estampas florais e arranjos azuis se adensava em tamanho pó que tornava o translúcido opaco. Lucidez é transparência? O único som audível naquele baú-lar de bajulação vinha das caixas de som televisivas. Os resquícios de barulho do chuveiro em sua cabeça pareciam mais tato que audição, surgia-me até a impressão de fumaça quente de umidade pela sala. De resto, minha mudez. Porque eu penso todo quieto. 


Uma vez, encuquei de ir na terapia, já mirabolava respostas inteligentes para perguntas clássicas e idealizava o modo mais cabível de deitar-se em um divã. Carreguei um de meus cabeceiros livros na bolsa para o caso da necessidade de algum intelecto que não fosse o meu, e antes disso embarcara em eleger meu favorito, drummond ou vinicius. Cheguei lá demarcando cada passo meu para eventuais cronólogos, mas o que ocorreu foi um monólogo: a mulher, altiva e em tom de compreensão pôs-me num sofá e, em perguntas do tamanho do mundo, deixou-me falar e falar e falar e eu não falei nada porque quando penso não falo e foi disso que lembrei quando estático entre as polias daquele apartamento-móbile esperando você, que não saía nunca do banho e ainda precisava atrasar cucos para que fosse possível o vestido, o delineador, o pente, o sapato, a bolsa. 


A casa vazia, só eu, você e a mulher da televisão, e nunca simpatizei muito com nenhuma das duas, talvez com nenhum dos três. Você também sempre me fechava a cara e me largava em monólogos para, desdenhosa, saltitar tremelicando e abraçar o labrador cor de chocolate da vovó. Éramos nós três e os santinhos da mesa de centro. Nós muitos e o telefone que explicitava nosso atraso para o tal casamento de tia distante. Nós milhares sem vontade de convivermos juntos e – o grito. Arrasador, que você manteve desde sua infância de mimos e não queros. Seu grito invadiu a sala e, grossamente agudo, espancou a cortina querendo ganhar mundo, fazendo cair dela todo o pó encrustado. O que fazer, entrar casa adentro, nunca havia vindo aqui, há tempos não falo com essa menina pentelha, por que afinal não tem mais ninguém nessa casa, por que eu aceitei ser chave desse casamento, fui. Mas em passos lerdos, arrastando-me pelo corredor de caro assoalho, no coração daquele apartamento: atrás a sala, aos lados fotografias emolduradas de seus pais em juventude e de seus sorrisos sapecas, algumas desfocadas e sem brilho, uma ou outra com vovó, e de nós não havia nada, pois retrato é daquilo que foi. Nem fomos, nem somos. À frente, a porta, e um feixo de luz em linha reta sob suas madeiras. 


Os gritos se espaçavam mas ainda tinham força, nesta hora – atrasada – não mais com susto mas com um certo pavor, talvez uma pontinha de escárnio. Forcei a maçaneta e abri, meticuloso como pinça. O ruído da porta por instantes chocou se com seu grito e em minha cabeça aquele zumbido todo era som de demolição de casas cinquentonas. Você virou o rosto e tinha os olhos arregalados, irritados com tanta água que caía do teto, seu braço tremelicava com o dedo rijo, apontando. Aquela situação não deixava de ser ridícula. Você esperneando e implorando sem dicionário que eu retirasse da parede azulejada um baratão que nem era tão grande assim mas possuía pernas delgadas e grossas, lembrando até as de jogadores de futebol. Os pelos pareciam ramificações das pernas – seis! –, enraizando a barata naquele cubículo que pertencia a você. Situação ridícula e plausível. Lembro que parei incrédulo no limiar da porta, fantasiado de pinguim sem rosto e um ar de e-agora exalou-se, com um aroma lírico que talvez nenhum banho retirasse, nem nos límpidos rios indígenas. Éramos nós três. 


De um impulso que nunca antes aflorara-me, rasguei-me e, mudo, arranquei com a palma da mão em direção à barata. Num golpe só, acabou-por descascar-se e duas pernas e meia ficaram infiltradas no azulejo alaranjado, enquanto a carcaça boiava em direção ao ralo que não atravessaria. Você me encarou como dizendo por-que-você-fez-isso e eu olhava soluçante para a minha mão aberta em escarro e gozo e morte e meu paletó já continha um mar dentro de si e olhava para seus cabelos como que pensando dizer não-sei-porque-mas-foi-você-que-suplicou. De súbito, você fugiu do box em saltos e tascou sua toalha, deixando-me parado trás a porta de vidro. Assisti a parte de seu desfalecer-se e, enquanto mentalizava o quanto você continuava ridícula como sempre, espiava com os cantos dos olhos esses seus despontes de carne, sua escápula transcorrendo da cortina epiderme e sua face acidentada de pavor e acne, assim limpa e um pouco avermelhada. Acabrunhei-me ao relógio mas este, incompetente, parara de tiquetaquear após tantas águas. Você me encarou, com as costas horizontais e o pé esquerdo sobre a tábua da privada, secando as batatas da perna, como que assumindo em-cinco-minutos-estou-pronta-pode-deixar. Isso era um sai-daqui-já-chega-você-é-insuportável. 


Voltei para a sala rastejando, o corredor com os rastros úmidos de meu terno molhado. Então era a vez da moça do tempo falar das regiões de pancadas fortes de chuva e das temperaturas máximas e mínimas. Eu, pensando quieto e afundado nas poltronas de sua casa durante os exatos cinco minutos em que você se aprontou sem maquiagem nenhuma e em seguida saimos correndo sem olhar um para a cara do outro mas ao mesmo tempo tentando parar um taxi porque a moça da meteorologia estava certa e no verão há pancadas de chuva – eu pensava quieto em seus cabelos desgrenhados com um resto de xampu porque você nunca soube lavá-lo direito, em seus olhos levianos pedindo socorro, em seu dedo em riste tremendo o braço e balançando seus seios por pouco não mais infantis que você tentava esconder enquanto gritava surda em nosso primeiro e único diálogo.


p.s.: sim, eu me utilizei de uma foto de Psycho, do Hitchcock, para uma história totalmente outra, mal aê.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Zarité


Pensa só:
Se balança o lenço
Sem senso
De vento
A dança sem sono
Sem sina
Sendo sonho
Samba o centro
Do açoite
Sentido
Há segundos
Passados,

Se a sombra
Se some,
Se assume
Essa dança
No solo absorto
De sangue
Um sussurro ou outro
Ao Erzuli, loa de
Suor e sossego,

Se a dança semeia
Uma sorte na vida
Um doce sortido
Sacos de café,

Se a dança se revolta
Esmigalha a senzala
De suja cinzês
De certos passados
Que agora tem vez,

Se a dança se solta
Se salta
Se soa
Seu sinal
Sai do sulco
Que sobra
Da servidão,

Se sopra
O sibilo
Da brisa
Da chuva
Da seca,

Acerta-se
Sem sequer
Cerimônia
Como o som
Do sol
Em céu
De sempre,

Pensa só:
Dança só:
Dança soluços
Só dança.

domingo, 3 de outubro de 2010

Gravação


"Não é necessário sair de casa. 
Permaneça em sua mesa e ouça. 
Não apenas ouça, mas espere. 
Não apenas espere, mas fique sozinho em silêncio. 
Então o mundo se apresentará desmascarado. 
Em êxtase, se dobrará sobre os seus pés." (Franz Kafka)


"Nem me venha com essas tuas ladainhas. Bem sabes que te conheço de outros carnavais. (Carnavais antiquíssimos, por sinal.) Se te encaro agora nesta singela mesa de cozinha, assim com sombrancelha e olho formando ponto interrogador, é porque quero saber a pontuação de tua face, os acidentes desdentados dessas doze horas em que, como todo dia estiveste fora, mas das quais não todo dia voltas de olhar machucado e censurado, precisando costura ou conserto.

Tu nem aguentas tomar teu café, estou aqui esguelhamente atenta aos teus bebericos em falso. Pensas que me engana? Descobriste o amargo. É, eu bem notei. Amargo a alguns parece turvo, a alguns é alergia, a alguns é como batalha desigual. Onde já se viu honra em cavaleiro armado tentar duelo com gente nua de ataque e defesa? Café é bom para quem o compensa com prazeres de vida. Na boca destes, café é o próprio prazer, um tipo meio elixírico, meio lírico; café é pedacinho de vida, moído mas com essência incrustada.

Por que teus olhos estão presos nesta xícara de sombra imbebível? Por que não me miras? Por que finges que sou mais uma cadeira da tua cozinha maltrapilha? Mais um gostinho de chá de cadeira, é isso! Chá é como fumaça, a gente capta no ar, a gente bebe fragrância. Chá é incenso líoquido, lembra sabores e dissabores. Dissabores, hm... conta-me a razão de toda esta tua impessoalidade? Esta tua ausência de pessoa. Pela manhã sorrias, lembravas até os sóis de janeiro. Mas agora... agora lembra-me túmulo, uma tumba sem qualquer retumbância - agora arrepias-me. Ajusta teus binóculos reguláveis aqui para nossas redondezas, tu aparentas desfoque, bem como o ato de vestir a miopia que não te pertence. 

Até porque talvez ela não fosse assim a moça certa. Ela mesma, não disfarces! Conheço mais tuas mímicas cerebrais que ti - ainda mais quando perdido em lentes tu estás. Que te passou? Hoje de manhã disseste que a voz dela atendera ao telefone junto com ela toda. Bela voz, todo o país discador sabe. Mas ela esconde levianas desgraças em seu pretexto de secretária eletrônica. 'Sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagem', a tal moça diz todo instante nos milhões de telefones brasileiros, ela ali robótica, repete e repete sem dó nem piedade aos tantos saudosos, desesperados e fofoqueiros por aí, só precisando de trocar palavras com quem não atende.  E aquela voz fria dessa moça que tu tanto amas, mas que nunca recebe tua fala ao telefone, nunca dá-te chance de ouvir viva voz. Já te alertei, e tu nem prestaras atenção: tanto ligaras para esta moça, em tentativa invólucra de ouvir os lábios dela (pois sempre ouvirias, ela em fala ou gravada), e não percebestes que o som só vem dos lábios quando estes são espontâneos. Lábios têm a espontaneidade em cada rachadura, em cada curva dimensionada projetada. Ouviste hoje à mulher ou à mecanização dela? 

Ao primeiro café de cada dia, empolgara o riso confabulando sobre essa senhorita, maravilhosa senhorita, que levara o telefone à orelha e substituíra a própria voz gravada. Conta-me os detalhes, completa-me este álbum de fofoquinhas! Teu almoço foi solitário? Teu olhar devorava só o comercial completo porque era este a única companhia? Não duvido que tenhas salpicado pimenta pelos feijões - esses seus vícios por substituições de prazeres. Esperta-te, e aprende a separar os tons; a humanidade foge quando a repetição se imortaliza: a frase assim, idêntica em voz e tempo, para tantos necessitados de real voz voraz. Não sofre nesses tantos! Beba um copo dágua, inventa pr'ele o sabor que te apraz - beba sim um copo d'alma. 

Mas... que é isso? E só agora eu te percebo em situação calamitosa! Pára com isso, não te revomites ao mundo, isso acaba-te todo! Socorro! É o horror, é o horror! É a dor de um eletrônico fervor! Ó, salva-te à medida que tento te ajudar! Por favor!"

Os olhos revirados, enfiados nos ouvidos, só tinham foco no cérebro, única paisagem definível. A boca, babando escarro em pingos no copo vazio produzia aguardente agudo, desses que cortam gargantas desavisadas. Os lábios, pobres lábios, trancaram-se em sangrenta intersecção de dentes costurando com restos de cílios idosos os pontos de acidentes. Os últimos regozijos de poço esguichavam do rosto daquele homem na forma de espinhas adultas compostas por estresse; o corpo, estirado à cadeira, intacto para reaproveitamentos necrófilos. Um bigode digno de Dalí estampava, em caneta de escritório, as outonais maçãs do rosto.

Dizem os vizinhos que depois ela enlouquecera; que vive de camas, psicólogos e manicômios até os dias de hoje. Mas reumanizara aquele a quem tanto falara. A quem tanto desentendera, desajudara, desesncantara, pobre senhora, gastava horas e horas em tentativas de auxílio àquele desvairado. Era preciso soltá-lo logo, alguém ali perto chamava! Era preciso desamarrar, descosturar, voltar os ohares aos seus devidos lugares! Era preciso desentranhar os sentidos, desestranhar o homem do mundo. Pois não se salva gente sem ajuda dessa gente. A dona senhora catou as mãos baratosas do amigo, tentou desanuviá-lo conduzindo seus dedos pelas encrencas de seu rosto. Não havia tempo; talvez fosse aquela a única chamada, a última das possibilidades, o último vício. "Desmecaniza-te, homem!", bradava ela entre soluços, louca e de subfaces explodindo em artifícios, os braços espalhando-se pela cozinha há horas já ensanguentada, "Não faze-te tal qual a mulher que desprezara-te! Ouve, criatura!"

Dentre restos e carnes, secreções e odores de lágrima, remorsos e hipnoses, as narinas continuavam intactas, na medida do possível. Um cheiro de forno, molho ao sugo, uns toques de parafina e castiçal, toalha rendada. Trejeitos de noite fresca. "Alguém me acuda, alguém me ajuda, não há tempos a perder!" O olfato despertou ao homem movimento próprio, é preciso, é preciso! Subitamente, é preciso! E o desenlaçar-se foi preciso. Tal qual despertar-se. Ainda havia tempo, afinal: O telefone continuava tocando. Bip.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Sarau


(um presentinho de aniversário bem simplezinho pra Nicoletta.)

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Bandidagem


Tlic. Tlec.
- Vó, acabou a luz.
- ;
Tlictlectlictlec.
- Ô vó!
- ...hm?
- Cabô a luz...
Tlictlectlictlec.
- Viu?
- Hoje saiu a lua, querido. Assim grandona. A lua não tem chama, ela é de frieza brilhante, toma os flashes emprestados e fica lá bonita, só chamando a gente. De onde você acha que ela rouba a luz?
- ;
- Abra a janela, vá lá.
- Pra quê, vó?
- Não queres luz? Vá lá e pegue um pouco emprestado. Guarda nos olhos um reflexo de mundo, que assim você vive por mais tempos.
Nhec. Janela emperrada é de desuso. Pó; trincas com trejeitos de envelope.
Abriu. Cartas são coisa de beleza cursiva, beleza de fibra.
(A lua é uma rosa branca, dessas que desabrocham que nem curiosidade de menino. É jaboticaba, tal qual curiosidade de menino, que pela manhã macaqueia na árvore de raiz noturna, uma raiz gigantesca que cobre o céu e forma um ninho. Esse mundo-ninho, mundo-moinho.)
- E quando a luz volta, vó?
- Logo pela manhã, tem sol por essas bandas, iluminando casa, rua e pálpebra. Afinal, com aquele calor todo, quem você acha que assa nossos pãezinhos toda manhã até deixá-los dourados?

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Do nosso sertão rosado


A saturação cresceu. As folhas secas de mentira carregam, mascaradas, mais poeira concentrada. Isso tudo não passa de falsa pigmentação. E o céu, ah céu!, de limpeza ancestral, azul desnuveado, desnudo. Justo hoje, dia pós. Pós-fogo, pós-bichos, pós-estrela, pós-causo, pós-causa, pós-coisa, pós-chapéu, pós-gado, pós-pó - eu bem sabia que esse sertão tinha algo de ressurreição. Pós-pretérito, pré-São-Paulo . Agora, esse agora tão falado, esse mesmo, agora já foi: já foi vãn, já foi cantoria, já foi saltimbanco, já foi de leite, já foi cão, já foi alpercata, já foi charminho, já foi maçã. Na-na-não. Descobri no fundo de minha mochila sertaneja uma última maçã, vermelha feito sangue de tiro jagunço, que eu catara para uma última vereda, uma andança final nas estradiças de Cordisburgo, em algum lugar desse pontinho cartográfico que é o coração. 

Sentei-me eu meu chão de tacos paulistanos empapados de verniz (estar à burguesa cama parece agora ainda mais impossível). Cá eu rasgo dentadas de onça em minha maçã-resquicio, que sobrou de alguma trilha sem fomes. Já algumas escuridões invadiram-na, já umas sombras chafurdaram a velhice (Rosa, presente em meu fruto, já completou centenário). Mas é boa, assim dessas que dão gosto gastar mandíbula. A maçã, resquício das terras empoeiradas que tanto amei, encroquece o céu da boca, sem qualquer trejeito de areia, essas coisas que odeio mastigar. A maçã é mar em cor do sertão. Naveguemos no mar mineiro, agora já, nessa São Paulo que me devora e alimenta, edifica-me. 

Se fizeres um esforço, dá pra ver a olho nu, lá pros bandos da semente: eis que, nesse oceano do mais fresco pó, o calado homem do bote, outrora de sentidos vendados, desdiz-se, desdói-se, e descobre onde está, enquanto cantarola com grossa garganta, em tom de berrante: "Ninguém de mim, ninguém de mim, tem compaixão, tem compaixão." O bote não passa de viola; resta seguir as cordas afinadas para achar os tais caminhos. A maçã acabou e se desengoliu, enquanto a semente eterniza-se comigo, acá junto de minhas palavras de brasa, nessa tal terceira margem. O resto, a gente intui.

(07/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)


quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Berço


Tlim-tlim-tlim.
Ouve, menina
Ouve, miguilim
Essa cintilância doce
Brilhante assim
Dos penduricalhos infalhos
Em meu berço jardim


A fogueira, tua manta
Nosso manto envolvente.
Nina com a digital marcada
Dedos de céu no rosto quente
Mas não afoga-te em sol sal seu
Bóia no céu, penduricalho cadente
Abóia estrela nos fios-teia
Móbile enfim móvel, sente?


Tlim-tlim-tlim
Pisca, menina
Pisca, miguilim
O céu móbile rodando mundo
Ciclo círculo sem fim
Se queres, és tantos bichos
Avoa junto, passarim!


Ser passarim é
Dar passo no ar,
Do maior altar
Poder bisoiar o mar.
Antes de partir, passarim
Venha cá me abraçar


(07/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Natalie

Aqui comigo do meu lado tem uma menina beirando a década, uma só. Uma menina bonita, um nome bonito, uma dupla de olhos que é boniteza só. É cor de tronco, mas carrega o mar, em formato de onda. Dedo na boca, maçãs rosadas. Esses dedinhos gordinhos, de unhas luar, mudam a idade, não sei se pra mais ou pra menos. Ela olha com os cantos dos olhos pr'essa gente esquisita que anda comigo, esboçando sorrisos envergonhados, caipirescos como ela mesma. Mexa esses teus pezinhos de unhas tutti-frutti - adereço de criança - e senta aqui comigo na varanda!, vamos juntas combinar as brincadeiras e bambolês pros minutos do agora-já, nessa tarde que se achega e aconchega.

(06/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Limbo não é vácuo

"Dorme a cidade / Resta um coração Misterioso Faz uma ilusão Soletra um verso Lavra a melodia Singelamente Dolorosamente Doce a música Silenciosa Larga o meu peito Solta-se no espaço Faz-se a certeza Minha canção Réstia de luz onde Dorme o meu irmão"


O sol desmaiou. Daqui a pouco ele volta, é só esperar mais umas dez, onze horas. Enquanto isso, tem outras faíscas por aí, para entreter e manter. No tronco em chamas, choros, histórias; no queijo abrasado, desses mineiros mesmo; no cobertor xadrez e nas mãos maternas. Nos cabelos dessa gente bonita minha. Enquanto isso as infantes moçoilas, outrora rodopiando entre frescores e grama, limpam os pés no tapete de entrada - "Bem vindo!" - e falam sem parar, entre um baralho ou outro, entre mínimos tecos de doce furtadinhos de pouco em pouco. 

Agora é tempo de rede, mas alguns ainda estão a janelar - sempre é tempo de janelar, convenhamos. Essa gente aqui gosta de contar suas histórias, ainda mais de cotovelos ao poente rural. Agora não é amarelo nem azul, agora é coisa do mais verdadeiro diabo (só pode ser), nem fotografia guarda porque os focos são múltiplos, são abertos, são a difusão de um horizonte. Espera um pouquinho, oras. Pois o fogo é feito em turnos, mas o do tal agora não atrasa, não - Sol, fogueira, humanidade. Qualquer coisinha, é só isso: a gente se agarra e vira fogo mútuo, ê amizade. O agora tem céu degradê, mas ainda esquenta. Aproveita o céu de agora, que daqui a pouco ele se esvai, o vento leva (esse vento insiste em levar prazeres, ideias, lembretes, pois é). Não te preocupes, bela moça. Do nosso fogo, esse fogo bonito e solidário, desse mesmo: fazes parte dos próximos turnos.




(06/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)

domingo, 12 de setembro de 2010

Maquiné


Só se ouve o farfalhar das patas no solo estável. (Estável é palavra que devia ter significado oposto, pois o que está não é sempre, só fica sendo frações de momentos.) No breu sem falsas luzes vagueia um cão. E elefantes. Águas-vivas, abutres, formigas, dinossauros, porcos, lobos, dromedários. Andam todos em maneiras sibilosas, sigilosas, feito cobra ou pingo d'água. A acústica é cadeia, mas de certos furos, convenhamos. Se é subterrâneo acá é porque é outro mundo. Gruta, furta fruta das gentes lá do térreo. Noutro mundo não se impões o próprio - credo. As noites na gruta eram festança, num jeitinho meio eterno de aprontar as coisas. 

Um minutinho aqui, um instantinho acolá, cadê os bichos desse mundo marmoso? E o burrinho destas pedras nossas (afirmo-me bicho das antigas também, agora), onde está ele? As resinas luxuriosas, a bebida do lago, o céu no mar, amar, o sabor suave de doce de abóbora? Fugiram todos e fiquei aqui onisciente. Os bichos sentiram medo, apego, em seguida apego ao medo, e encrustaram-se à parede - para quê roubar nosso canto, bigodudos sem questionamentos? Gruta, entrega-te a Rosas e àqueles que, como rosas, entregam-se a ti. 

Na gruta, a sombra dos bichos existe no silêncio escuro. O mar de mármore, no teto, nervoso, aquietou-se para acobertar os bichos, quando eles se esconderam dos invasores descoraçados e se tornaram animais. Há vida quando se exclama ou pinga. Os animais agora parecem eternidade, camuflados de pedra, fazendo-se coluna e muro - morte? Vez ou outra, quando não há gentes despetaladas em volta, os animais dão uma piscadela, ou pingam resina de desejo. Bichos. Os bichos da Gruta do Maquiné, pura interpretação do ser concreto. Tem quem veja e entenda, é vero, essas fantasias da humanidade, pensam outros.

É, tenho minhas dúvidas sobre a eternidade, aparenta grande por demais, do tamanho da grande gruta, mas na verdade, metida a besta: eterno se superficializa, dessas mil camadas (pois é, camarada).




(05/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)

sábado, 11 de setembro de 2010

Nascer


De olhar muito pro céu azulento, em densa gradação, os pés meio que esquecem do tchoctchoc de tocar no chão terroso, meio que trupicam nos pedregulhos descaminhados, meio que fazem avoar a boca. E é assim que se dá a luz ao sorriso.


O sol é sorriso puro, e a lua é aprendiz, dessas que pegam aspas emprestadas. E a gente aqui: dia, caminhando contra a secura dourada; noite, emplastrados na grama cor de prata, reflexo de lua e estrelas maternais. E a gente aqui: sorriso branco que reflete a luz folhada. molhada. mas de quê, uai, se o ar é de pó?


(05/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Fora da refestança


"Nessa estrada canto e gemo de verdade." O sol se põe em roldanas, com contrapeso de poeira cor de passado que, em devaneios, se integra feito molécula ao ar mineiro desse aqui aventureiro.

Fomos. Empacotados em uma van de empecilhos em vão, sem espaço para meros caprichos: uma festa regional nos esperava, alegre e amarela. Ou melhor dizendo, esperávamos chegar à tal humilde festança, entre trancos e barrancos (e escuridão noturna e torpor e receio de atravessar um raso rio sobre pneus). Forró, bandeirinhas volpianas carregando cores para a iluminação do evento, mandioca, reza desenfreada de rugas atentas (...rogais por nós, pecadores...). O retorno era garantia de sopa, banho, água, colcha, bolo de laranja. Só restava retornar, que assim fosse. Mesma direção e sentido oposto, o caminho desconhecera-se de nós, luneta com tampa, bússola desnorteada entre as tantas bifurcações de estrada. E nós, idiotas, ali sem nem conhecimento de nortes pelas estrelas - aquelas muitas e muitas estrelas da noite mineira. Os únicos vestígios do bom eram o som chacoalhado da gaita do nosso mestre, e o cochilo aos ombros amigos. Mas é que, pensemos, o bom de perder é achar em seguida. Achar-se, melhor ainda.

(04/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)