segunda-feira, 28 de junho de 2010

Desmemórias de uma terça-feira finalizada.


Não posso mais escrever sobre meu fim de tarde porque agora já não mais é fim de tarde, embora para alguns ainda seja. Só sei que foi belo, e me lembrarei dele com carinho – belo fim de tarde aquele do dia que não sei qual é, e que não me importa, pois foi de uma terça-feira boa, e isso me basta. Não posso mais falar do ônibus vazio, as cadeiras frias de ninguém, o mundo em sincronia com as armas de caça de Beirut, e somente com estas e nenhuma mais, porque outras seriam excesso fora do conto. Não posso mais contar de moleques correndo eufóricos com o bater do sinal da escola, do balão parado no meio da calçada feia. Sim, eu diria que havia um balão pairando no ar, preso não se sabe como ao chão. Chão este ao qual ninguém quer se prender, porque é áspero e duro. Meu balão é como a rosa de Drummond, mas não furou o asfalto. Só está lá, em calma de silêncio, no meio da calçada, planando quieto no ar. Eu diria que vi os olhos de uma mulher, olhos de gato acordado, no reflexo da grande janela do ônibus – e que a mulher trazia uma flor de pano na cabeça, que acochegava só de olhar. Eu contaria sobre o homem da tapioca, em sua barraquinha que cruza meu caminho, homem de barba rala, que veio da Bahia e olhava o céu laranja ao cheiro amarelo de queijo derretido. E contaria sobre um pequeno bem-te-vi parado no chão, sem medos e pequenices, ignorando meus brutos passos. Eu contaria sobre o céu laranja e rosa. Mas é que tem coisas que são grandes demais para nos apoderarmos assim delas. Contaria sobre meu céu não mais céu, meu céu espelho, no retrovisor de um fusca branco, que de olhar para frente, se via também atrás, meu azul e laranja, cores opostas separadas, o laranja no espelho sujo. Mas não posso contar, porque agora é noite, e esta minha história não tem fotografias. Agora é noite, de azul que se apoderou do céu quando destranquei o portão para entrar em casa. O que posso contar é que agora não é mais daquela cor, agora tem outro sorriso dentro de si. Então faço meu texto duro e triste, deixo-o texto sem tempo. Feio, aquilo que poderia ser mas passou do prazo. Então eu deixo o meu céu ser só um belo céu, que pertenceu a uma bela terça-feira, que por sua vez pertenceu a mim e ao Homem da Tapioca.

Canto do desejo


Ninguém nunca viu uma flor de caqui. Ela também não. Tenho certeza, e boto minha mão no fogo, que todos têm um desejo, qualquer que seja, inexplicável como os que têm as grávidas, daqueles que florescem do nada, que brotam em meio ao concreto, vindos diretamente das lembranças mais profundas de nossos tempos de moleques perguntadeiros. O dela era este. Pois se há fruto, há flor. Se há flor, há-se. E se há-se, ela pode ver. Não só pode como deseja todos os dias, em ideias curiosas, agora também de meninas-moças. Meninas-moças querem a vida. Ela, tão menina-moça quanto qualquer outra, sabe que toda menina-moça é uma, uma diferente. Ela, menina-moça, quer sentir uma flor de caqui. Em sua cabeça apaixonada e vírgula, sua flor de caqui sofre de crescer, madura mesmo em florescer, colorida de manhãs alegres do existir e só.

Já buscou em livros mil, mas para ela, eles quase diziam, na ausência de existência, que direto floresce o caqui. Não é, ela sabe que não. Há-se. Os pais sabiam, mas não lembravam; fizeram-se esquecer do motivo de tantos livros empoeirados, de solidão e biologia, espalhados pelo quarto de menina da menina-moça-menina deles. É certo, ela nunca foi de falar muito sobre seus subjetivos. É certo, ela sempre foi meio difícil, mas também é certo que todo mundo é um meio difícil. E seus olhos de gude diziam por si só, pediam mesmo quando o ela que não é tão ela não lembrava mais do assunto. “Flor, flor, caqui, caqui”. O problema é que pediam em língua outra, língua de quem vê os olhos, língua de quem mergulha e entende sem saber. Língua que só os loucos e sonhadores entendiam. Ela sabia, mesmo sem pensar – porque para isso não precisava pensar – que os tempos são difíceis para os sonhadores. Mas todo mundo é um pouco difícil.

Corria aos parques e jardins, onde conseguia soltar palavras para perguntar, e perguntar mais e mais, e enviar cartas a especialistas, mesmo estas nunca sendo respondidas, e convencer seus olhos mendigos que era tudo erro do correio. Onde há?, pois se há fruto, há flor. Não soltava era o seu desejo, que cantava sussurros em terno desespero pelo olhar.

Um dia, veio, como folhas amarelas do outono. Folhas amarelas do outono, secas, frágeis e quietas de solidão marrom e leve, leve só porque o ar conduz. Seus olhos de menina-moça se fixaram em cada pétala, no caule, no descheiro que para ela existia. Ela não percebeu que, quando a flor chegou em suas mãos, não tinha as cores dos dias alegres. Não percebeu que seus olhos se confundiam, queriam ver quem pertencia as mãos vividas que tocavam as suas, entregando a flor, queriam querê-lo mais e mais, olhar em seus olhos que poderiam também querê-la. Poderiam, ela não sabe por que não via, porque repreendia seus olhos que brilhavam dias mais aflitos que alegres. Os olhos subiam, ela arrastava-os à flor, somente à flor, aquelas mãos deveriam se tornar desimportantes. Havia sim percebido que a flor não era assim tão bela, não tinha cores de dias alegres, mas não poderia dar o braço a torcer, era ou não era o que ela sempre quis? E era. Enrubescida, gaguejou um obrigada, disse seu nome, foi embora em rodopios de dúvida. Aquele mistério resolvera-se. Desabrochou um outro, intenso e de cores de dias sentidos. Não sabia quem, por instantes de milênios, amou. Não sabia se devia estar feliz ou triste. Ou alguma outra coisa, sem nome nem definição, só sentindo só.

(Nov/2009)

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Preta Pomba da Paz

A pomba,
cheia de pompa,
pombeia,
catando pingos de pão.

Pé laranja e olho preto,
pomba pica a mula,
pega vento e se avoa.
Antes pinta branco
presente-bomba, excreto,
do céu do poste.
Pimba!

Pomba pirata apedrejada,
Pomba bambeia pros cantos,
pomba parada
no piche da alameda presa,
pomba pombeia e pondera.
Pois o passo do carro pesa por cima.
Pois o peso do carro passa por cima.
(Pomba,
bum!, pobre pomba perdeu-se na paz.)

Ponto.