quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Janelas

joão
um homem normal
lia jornal
              mas só as manchetes

joão
jogou tudo pro alto
num salto saiu
de seu mundo abstrato

e
  tudo
         virou
                 poesia
                           concreta.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

todo dia ele faz tudo sempre igual

  dívida com
  a vida é
  deixar
de       ver
    pelo
  dever
de     todo dia

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

E se

Eram irmãos siameses
Que muito e muito se amavam
Até que a separação
Os deixou bem de saúde
Os deixou só na saudade.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Tu presencia en las paredes

Os pais não pensavam grande nem pequeno, pensavam na verdade numa simplicidade que não pensa nem nada nem em nada. Mal sabiam eles que se abster da opinião, naqueles tempos, já era o necessário para aceitar e inclusive apoiar. Achavam melhor não se envolver e não pensar no assunto, prosseguir no todo dia de trabalho e mercado e relógio bem ajustado para não dar confusão. O tempo era curto para o pai chegar em casa e qualquer atraso já era uma complicação, justo ele que tentava com todas as forças não se envolver com coisa nenhuma. Vicente esperava o pai, sentado no colo de algodão da mãe, ouvindo-a sussurar medinhos, aquilo tudo todo dia. Não entendia que tantos não-me-toques os adultos tinham todo tempo, mesmo que assim o fossem desde que ele se dá por gente. E não entendia um tanto de coisas, normalidade de seus cinco anos, mas perguntava o tanto de coisas um tanto demais. E não entendia também que mal havia andar na noite da rua, no labirinto largo das ruelas amareladas da cidade.

- Faz mal? É perigoso? É feio?
- Não pode, Vicente.
- Mas e se precisar sair? Se acabar o pão e a gente tiver que sair para jantar?
- Depois do horário não pode, Vicente.

A mãe estalava um beijo na bochecha redonda do pequeno e ele abraçava em resposta, já percebendo que suas tantas perguntas continuariam só perguntas e, além disso, continuariam tantas, tantas demais. Ele pensou e tentou um pouco mais.

- Mãe, mas me explica. Não pode ser perigoso porque, abre a janela e vê lá, tem um monte de guardas na rua! São tantos guardas que não tem como acontecer qualquer coisa ruim com a gente, mesmo sendo de noite.
- Chega desse assunto, agora. Já falei que não pode sair de noite, não falei? Então pronto.

Ela levantou Vicente do colo e, erguendo-o meio desajeitada, arrastou o pequeno até o quarto, meio risos, meio irritada. Mandou que botasse logo o pijama, limpasse os dentes com capricho e se enfiasse direto debaixo dos lençóis, que no dia seguinte tinha aula. O menino estrebuchou de leve, disse que queria esperar o pai chegar mas a mãe disse não, nenhuma palavra a mais ou a menos, nenhum ponto. Ela tinha essa mania, esse jeito de ser um pouco tanto faz, que por isso se expressava na ausência de pontuação em qualquer uma de suas frases, fosse alegre ou fosse triste. Por segurança, preferia manter sempre a mesma expressão de quem não sabe de nada e não quer saber mesmo. Era pena, porque tinha o rosto bonito, de bochechas contidas e nariz bem arranjado. A boca fina e apertada tinha um tom bonito de rosa, como se houvesse acabado de passar batom, mas se calava na maioria das vezes. Apagou a luz do quarto e deixou Vicente dormir, enquanto ia à sala ler suas revistas e esperar o marido que deveria chegar muitíssimo em breve.

Vicente, deitado na cama, o lençol coçando-lhe o queixo, sempre demorava para pegar no sono. Ficava pensando e deixava o tempo rolar, os olhos fechados sem fazer nenhuma força. Nem percebia porque era menininho e porque ninguém de verdade repara nisso, mas seus cílios longos pousavam um sobre o outro como num flerte, como se nada mais houvesse e o país estivesse sorridente. As pálpebras, já acostumadas com o teor das noites, não se moviam nem um átimo de susto quando começava a música. Era baixa, em tom de sussuro, mas ecoava por todo o quarto pequeno de Vicente também pequeno. 

Até pareceria, caso Vicente já houvesse crescido o suficiente para perceber, uma cena de cinema tudo aquilo, quando visto pelas lentes mais adequadas. A maçaneta girava e rangia alto que nem tudo naquela casa meio velha. Que nem tudo naquele governo de ideias velhas, nem um nada condizentes ao tanto de alegria que antes andava o país -- não um pedaço do país, mas o país por dentro, nas entranhas, e por conseguinte também o alrededor do país. O pai dizia boa noite, comestá?, a mãe respondia que "igual, ainda bem" e os dois juntos se calavam para um abraço. Os passos de encontro faziam ranger os tacos do chão em sincronia às músicas da casa ao lado, sem  nem perceber, mas só Vicente, que dormia no quarto da ponta, ouvia tudo. As casas eram germinadas, espelhadas sem querer, ficando a cama estreita de Vicentito meticulosamente simétrica à do vizinho, que mudava todo o tempo. , que ouvia música toda noite antes de dormir.

Uns anos atrás lá vivia um brasileiro esquisito, que com o tempo e o decorrer das  coisas sumiu de vista, foi-se embora para outro país dessas latinoaméricas. Seu Juci era um velho orelhudo que passava um tanto de tempo fora de casa. Dizia um espanhol duro, carcomido, coisa comum de quem não se acostuma a trocar de língua assim tão de repente. Não que falasse muito, porque preferia não. Morava sozinho na casa ao lado, ouvia música durante a noite e não tinha mulher nem empregada, por isso Vicente ouvia pelos corredores de ouvido gordo a mãe já falando que era muito esquisito o vizinho, que não tinha ninguém consigo, que com certeza vivia de erradagens com revistas de homem e malandragens politiqueiras. Dizia isso a mãe, sem nem saber direito do que falava, e logo ruborizava, ao contrário do menino, que achava aquilo tudo muito engraçado, mas ai!, ai dele se risse! 


Depois que Seu Juci foi embora a casa ficou um tempo vazia, todo mundo achando que ele ainda morava lá, enfurnado em seus livros por causa do novo regime, na verdade todo mundo num misto de desconfiamento e deixares para lá. Uma velha em seguida mudou-se para lá, mas foi embora muito depressa. Dizem por aí que era neurótica por limpeza e, já com o bolso mais ou menos garantido, passava o dia com panos e vassouras pelos cômodos da casa, solitária. Encontrara um ou outro papel suspeito pela casa, por entre os móveis pesados, e na semana seguinte preferiu morar na casa da filha, no outro lado da cidade, sem contar para ninguém -- só para a vizinha da frente que, faladeira que só ela, contou tudo para cada morador que visse passar em frente ao seu portão. Depois, foi a vez de Florencio, quarentão das esquerdas secretas, que ouvia músicas proibidas antes de dormir, bem no quarto grudado ao de Vicentito.


O menino, aliás, nunca fez questão de mostrar a Florencio que suas noites não eram tão sozinhas assim e, além disso, que sua resistência não era tão mistério, porque uma simples parede delatava seus gostos desgostados pelos homens que escoltavam não a rua, mas o país. Aquela noite Florencio esqueceu o rádio ligado e adormeceu. Vicente, ainda sem o sono dos que nada querem, ouviu no taco do chão um barulho grosso, algo como um livro caindo. Um calhamaço pesadíssimo de palavras talvez clandestinamente serifadas ou somente, clandestina sem destinação -- feitas depois frases feias, desgracentas --, mas no íntimo de uma beleza lúcida, flamejante, como se cada letra representasse a voz vedada das ideologias proibidas, movimentadas, esse livro mesmo evidenciava o sono pelo qual Florencio se deixara fechar os olhos e cair a vasta leitura no chão. O som foi mais alto que as vozes da cantoria, numa altura que pai e mãe com certeza devem ter ouvido mas não se importavam, fosse livro ou fosse tiro. Pensavam, tão tolos, que não pensavam em nada naquilo, e que tanto fazia -- fosse livro fosse tiro --, que afinal a casa já estava completa de família, mãe pai filho todos jantados e no horário certo, que do outro lado da porta tanto fazia, eles tão tolos como se tal posição coubesse no país. 


O dia seguinte acordou mudando de música, quando a mãe de Vicente foi acordá-lo com o uniforme escolar bem dobrado sobre seu braço alvo.


- Vicente, acorda.
- Deixa eu não ir hoje, mãe?
- Claro que não, você está doente por acaso?
- Não, mas, mãe.
- Mas o quê, menino? Não está doente, vai à escola. Levanta já!
- Talvez eu esteja doente sim, nossa, me deu uma dor de cabeça, não consigo nem pensar direito...
- Pare já de drama, agora além de tudo deu para ser mentiroso?
- Não, mãe, mas.
- Toma aqui seu uniforme.
- Só hoje, mãe!
- Nada disso! Ninguém manda você passar a noite deitado pensando na morte da bezerra. Depois fica com sono e joga os estudos para o lado. Tome sua linha!
- Mas mãe, a escola é chata e só ensinam coisas chatas lá, não quero ir.
- Não adianta, você vai à escola hoje, amanhã, depois de amanhã, até que tome rumo na vida. 
- Mas mãe, eu não gosto daquele professor.
- Nem me venha fazendo drama. Se você leva castigo na escola é porque faz coisas que não deve. Se não for à escola, vai acabar sem fazer nada da vida que nem o vizinho, aquele safado que acha que fazer coisas escondido e levar gente para conversas sem fim na casa dele é fazer alguma coisa da vida. 


Vicente parou quieto e esfregou os olhos cheios de remela de criança. Estendeu a mão, pegou o uniforme monocromático e virou-se de costas para a mãe enquanto despia-se do calção de pijama. Ela também parou de falar e a música de Florencio continuava resistindo, ecoando em volume maior que os roncos perdidos do homem, que recuperava sem querer todo o atraso de seu sono. A calça estava já ficando apertada de tanto que o menino espichava em sua terna fase de crescimento. O quarto ficou mudo sem querer para a mãe escutar os dizeres do rádio de Florencio, por entre os chiados dos péssimos e desprecavidos auto-falantes.


- Podem me prender, podem me bater, podem até deixar-me sem comer, que eu não mudo de opinião... que eu não mudo de opinião.


Ela arregalou os olhos e esticou o pescoço para o lado, tentando decifrar a língua portuguesa da voz tão filhote que cantava palavras com certeza proibidas, tanto lá quanto cá. Saiu do quarto chamando o marido, afobada e ainda tonta, crédula de que chamar militar para "só dar uma olhada, meu bem" ainda fazia parte de não tomar partido. O menino não entendia aquele português tão-brasileiro que se repetia e repetia, aflitivamente limpo, até se acabar baixinho, a voz se diminuindo de pouco em muito pouco. Sabia que português e espanhol eram muito parecidos, mas só pôde concluir da música que ela falava de coisas que não se podia falar, ainda que, não houvesse muita lógica em proibir o que alguém diz se não se sabe o que alguém fala. Os pais conversavam com vozes ligeiras enquanto tomavam o café e o pai sozinho se aprumava para ir trocar uma e outra ideia com os guardas que passavam pela avenida ao lado todas as manhãs em vistoria e olho duro. 


Vicentito passava, lento sonolento, o creme na ponta do pente para manter intactos os cabelos arrumados para o lado. A música mudava mais uma vez e começava de um baque, sem medo, com o sotaque chileno que Vicente conhecia desde sempre e nunca outro conhecera. Foi ao banheiro lavar a cara e quando voltou o rádio chiava que 


- Con septiembre ardió de sangre la ciudad que ya no tienes, con la espera se hizo sombra tu presencia en las paredes.


O menino, um pouco sem entender nada, ficou na dúvida se aquilo tudo de palavras era para ele ou se dele era para Florencio, com quem nunca trocara nem meia palavra, nem meio batuque na parede. Dava o nó dos sapatos pretos e a música continuava escancarando as amarguras do país, os machucados do país e o chiado torturante na voz do Chile. A respiração cresceu mas logo as mãos pequenas calaram o fungar de seu nariz, que chorava calado de olhos cerrados encostado à parede, sem saber se a ausência tão doída viria a ser a de Florencio ou a dele que cumplicitava em ouvir canções proibidas todas as noites e, não obstante, a partir daquele dia também pelas manhãs. Como se despertasse ilegal e passasse o dia assim, marcado, para depois, ilegalizado, adormecer nas belas vozes da América. Sentiu mais medo por sobre o já medo e deitou-se na cama virado de lado, com calma para não amassar o uniforme. Deu três toques na própria parede e portanto na de Florencio, apostando que o velho dormisse na mesma posição que ele próprio, com os pés apontando a janela. Antes de deixar o quarto, ainda ouviu o rangido das molas da cama e o sonido curto, rasteiro, do botão do rádio se calando. Molhou de chorinho o pão do café ouvindo na cabeça os versos do rádio, entrementes a mãe olhava pela janela o pai que conversava com um dos muitos guardas da cidade.


- Tal vez un día te tuve, tal vez te perdí sin verte, tal vez nunca abrí tu puerta, o tal vez jamás la cierre. 

Quando voltou da escola, não sabia de Florencio, como única nos outros dias soubera por aqueles horários. Jantou emudecido e cantando, deitou umedecido de rosto e, na falta do homem com o rádio (que, à revelia calado e desaparecido, nunca mais deu notícias) passou a noite de olho acordado. No dia seguinte, Vicentito piscava duro de sono, resultado insônio da falta de música. Ainda deitado, não quis ir à escola e, de rosto esticado para baixo, puxou a mão da mãe até sua testa, que cada vez mais esquentava. Ardia-se todo, coitado, na febre esquisita da resistência.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Imobiliárias

Aluga-se
              ajuda
              alívios
              alices
              lugares além.

Aluga-se
              a lua
              e aquela
                 estrela
                           que
                           um
                           dia
                           foi
                           tua.