quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Mesmo nome não é mesma gente

Leandro Silva Júnior era menino pequeno, dois anos no máximo. A mãe esperava o ônibus e obedecia ao celular, que gritava grosso, enquanto o menino girava em torno do poste para ver cidade virar mar. Ela, enorme, de cabelos evangélicos batendo cintura, arrancou o coitado do chão pelo braçote infantil e ralhou, ralhou tanto. Leandro Silva Júnior chorava enquanto a mãe apertava-lhe os nervos e explicava ao telefone, "ele só quer ser tonto, o moleque". 

Quando ela lhe disse "ele quer falar com você", Leandrinho que mal falar sabia em resposta esperneou que "quero não, quero não, sai, vou falar não, quero descer!" e a mulher mais o fazia doer-se. Continuava Leandro Silva Júnior assustado com medo, mas medo de quem? É monstro, papai noel, curupira, assombração? O ônibus não arranjava meio de chegar, a mãe ralhava, o menino esperneava num tanto de bateu com o pequeno pé no celular, que de súbito caiu no chão junto com a voz grossa e temida do pai, o senhor Leandro Silva.

sábado, 24 de setembro de 2011

Quase Idêntico

Ninguém
Viu nem ouviu
Mas houve
Um acidente
                   No ocidente
De seu dente
                   Da frente

Mas apesar
                  (Sem pensar)
                  (Sem penar)
                                    de tudo
Ocê sorri grande
                        (Sem peso)  
                        (Sem medo)
                                          pra gente
Até o raiar de amanhã cedo.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Cidarte

Um dia, espero, serei
Como Carlos Adão
Um dia serei artista
Borrifarei meus amores

Na São paulo nunca mais me perderei
Cada viela ou avenida
Muro parede esquina
Terá um lembrete meu

Como totens no deserto
(Estátuas que só o vento mexe)
Verei sob a luz do dia
Meus caminhos pela noite
Meu mistério terra tinta

Farei arte no escuro
Como os olhos que se fecham para o beijo
Como o anonimato de minha assinatura

Mexam-se os muros!
Abram-se as portas!
Quando eu for Carlos Adão
Saberei minha cidade
Saberei minhas pessoas.

domingo, 18 de setembro de 2011

Lápis sem ponta

Enquanto
tu cantas
eu conto
do encontro
de canto
de olho
com tanto
calor.

Tu andas
Eu corro

Tu cantas
Eu conto

Tu encantas
Eu tonto;
sem ponto
desapontado.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Poema Expresso

Excesso
            seus entes
     Parênteses
Exceto
            semente
Exímia
            semântica
Mímica
            romântica

Resto semínima importância.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Excesso

Advérbio é mentira
Adjetivo objetivo
Um dejeto
               uma ferida
Oração e santo livro.
Substância do sujeito
Não é isso.
Ter um verbo
                    é imprescindível.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A carta

Estava o Doutor Palmeira esticado na rede, não querendo nada como quem, de verdade, não quer nada. Totonho entrou ligeiro, nem se avistou chegar – quando se viu, tava já fechando o trinco do portão. Em passo desmedido de caranguejo, embaraçava as falas enquanto segurava as calças largas.

- Que que é, homem?

Totonho, reparando ter sido percebido, aprumou-se de pronto, arqueou as sobrancelhas de lobato e juntou as mãos, calo roçando com calo. As calças foram ao chão batido mas logo voltaram ao seu devido lugar, ante o arregalo dos olhos do Doutor Palmeira.

- Dotô...
- Eu mesmo, fala.
- ... ó, dotô, é que assim...
- Diz depressa, seu palerma, que eu tô cansaço puro.
Totonho se embolava nos dizeres e, nervoso, começava uma piscaria sem para que mais ainda enervava o sono do Doutor. Sua mão, horta de calos e casca-dura, tinha as unhas no cotoco por causa de suas todas tarefas de um dia seguido do outro. A mesma mão foi quem teve coragem de estirar para o Doutor o motivo, guardado no bolso de trás com devoção.
- Que ocê quer que eu faça?
- Dotô, dotozinho Palmeira que eu tanto estimo... será que por algum acaso, alguma gentileza, coisa assim, o senhor não me ajuda com essa coisa?
- Doutorzinho uma ova, seu Totonho! Fica calmo que eu te leio.

O doutor tinha mãos grandes, mas não grandes de rudeza. Eram sim um pouco secas, mas os dedos compridos e finos feito cobra de matagal. Essas tais mãos já se enfiavam no lacre de cola para abrir a carta, quando Totonho atinou e deu um pulo surdo:

- Pode não, Dotô, o senhor endoideceu?
- Eu? Pois saiba que quem endoideceu aqui foi você! E sai já da minha frente, que meu sono tá que tá.
- Do-do-dotô! Não me diz assim - Totonho choramingou - o favor que te peço é importante.
- Mas já falei que leio sua carta!
- Quem disse que o senhor deve ler minha carta? Esse tipo de coisa é par-ti-cu-lar, entendeu? - Totonho silabou todo o discurso e, de peito arfado, prosseguiu metido a importante.
- Que diabos cê quer comigo, seu capeta?

Totonho curvou-se, juntando a cara própria com a do doutor, que recuou e, balançando sempre a rede, chegou mais perto ainda. Uma mão na coceira da cabeça, outra na carta.

- Só queria que o senhor, assim, se der tempo, se não for incômodo, me ensinasse a entender esses escritos.

Doutor Palmeira achou bonito o pedido de Totonho, que não parecia homem de se importar quêsses caprichos. Desfranziu a testa braba e uma risada, debaixo do bigode negro, inevitavizou-se. A mão graciosa desencorajou-se e, coragem que só, firmou-se cúmplice na palma suja de Totonho, no que os dois em seguidinha recuaram, bobos, lembrando do que toda a cidade falaria se visse a cena de alegria. "Cabra que é cabra não tem esses carinhos de demônio, macho que é macho só trata macho feito macho", isso eles repetiam na cachola sem nem pensar a respeito, e sendo uma das cabeças meio oca,  fato já sabido por todos.

- Volta aqui em quarenta minutos, homem.
- Mas dotô e se for coisa importante como aposto que deve ser? O senhor ensina num piscar de olhos, vou embora e não chateio mais.
- Totonho, eu preciso me preparar antes, entende?
- Mas dotô!
- Pare de achar que é sangria desatada, criatura, nem grande coisa deve ser. E ó, já aviso que dois terços de hora é, dos males, o menor.
- Aprender demora, é o que o dotô tá falando?
- É exatamente o que "o dotô" tá falando. Sossega o facho, que vai ser complicado. E vai levar tempo. 

Totonho calou e foi embora. Doutor Palmeira de berro grosso ainda mandou que fechasse o portão. Caiu no cochilo ao som do movimento enferrujado das dobradiças. Era dia de folga. O povo, já sabido, procurava adoecer um pouco menos às quintas-feiras. Não que, se viesse alguma tosse ou pontada, cairiam todos mortos no meio da rua, a coisa era outra. A fila para o segundo médico da cidade triplicava junto com o relógio de espera, por conta da surdez idosa das orelhas peludas do Doutor Rui, o único segundo médico das redondezas. Eram engraçadas as quintas-feiras na praça central, ao redor da capelinha. Todos os passantes de lenços na cabeça cuidando do sol quando o céu limpava, bem agasalhados em caso de frio e vento  ou cobertos em caso de chuvarada ou mesmo garoínha. 

Em compensação, na estrada caminhava Totonho, sem atenções para o que dizia o céu e o tempo dos ares. Segurava a carta firme, duas mãos dez dedos olho apertado para decifrar os escritos - e nadica de nada saía. Desbocou na cidade pela rua Florduardo e, descobrindo ainda faltar meia hora, foi matar tempo no boteco do Seu Camargo. Detrás do balcão de madeira esculpida, entre as poeiras do descuido, quem servira aguardente fora Mariana Camargo, esposa de Seu Camargo. Seu Camargo era branquelo e pequeno, os ossos despontando da pele. Mal cabia nas enormes camisetas brancas de seu armário e não tinha noção alguma do perigo de largar mulher sua servindo os bêbedos. Mariana tinha cara bruta e banhas à vista, mas os homens para cima dela arrastavam asa por conta do exagero de busto, que se avolumava ainda mais com a renda amarelada dos sutiãs. Não apreciava roupa decotada, porém usava vestidos de tecido fino, transparecendo nos peitos o relevo das flores. 

Totonho era besta demais para parar e ficar imaginando safadezas, mais ainda com mulher de aliança no dedo. Empoleirou-se no banquinho de madeira como um galo manco e desandou-se a batucar os dedos no balcão, sua forma de pedir atenção que, mais ainda, juntava sujeiras por baixo das unhas. 

- Que quer hoje, Totonho?
- Faça o favor de encher o copo, senhora.
- De senhora só tenho o anel no dedo e o nome Camargo de meu marido. Pare já de bobagem, seu Totonho... Ser senhora é coisa de velha!
- Pois se chamo senhorita, teu homem me bate, e se chamo senhora, você me briga. E se chamo de você, como fiz agora, sou tido maleducado.
- Mariana, criatura, é o que lhe digo toda vez! E bebe calmo, qual a pressa?
- A pressa, depende. Quais são as horas?
- Espera, vou ver. Três e meia.

Totonho começou a fazer contas e precisou de muitos dedos. Desesperado, levou o copo da mão aos dentes e contava e se cafundia todo. Mariana olhava tudo num rir-para-não-chorar e ajudou nas contagens. 

- Viu, essa é a pressa. Devo estar em casa de Doutor Palmeira em questão de cinte minutos. Pões mais um pouco. Por favor.
- Adoentou-se, você? Sabe que o Doutor Rui está na cidade atendendo.
- Tenho saúde e muita, dona Mariana. Meu assunto com doutor é outro.

Totonho arfava o peito e, já meio embebedado, quase foi-se ao chão, direto dos bancos compridos. Mariana interessou-se pelos segredinhos e, já mirabolando mil histórias em sua cabeçica de cuíca, tratou de encher-lhe o copo o máximo possível.

- Outro, é? Explica direito, Totonho...
- Arre, dona Mariana! É que a senhora, digo, senhorita... vo-você. Ou prefere tu?
- Prefiro você. Continua.
- Você bem sabe como o dotô é cheio de inteligências...
- Inteligência? Sei, sei. Mas ele entende de coisa de médico, não é? De outras inteligências eu não sabia não.
- O dotô entende de muito tipo de coisa! A senh... Você-dona-mariana não me venha desmerecer o dotô na minha frente!
- Não falei nada, longe de mim! Você está nervoso, Totonho. Bebe mais um pouco e te sossega. Mas então, você gosta bastante do Doutor, não é?
- O dotô merece admiação por demais, ainda mais agora que ele me vai prestar favor. Que horas são? Não posso me atrasar.
- Já já dá sua hora, Totonho. Mas é uma pena você não poder ficar nem mais cinco minutinhos.

Mariana deu a volta e sentou-se em frente a Totonho, deixando o balcão vazio. Suas pernas gordas encostavam o joelho ingênuo do homem que nem bêbado fazia besteira com mulher alheia porque era todo meio bobalhão. Ela prosseguiu:

- Só cinco... são importantes seus afazeres com na casa do doutor?
- São sim, ah se são.
- E você não quer me contar do que se trata?
- O dotô vai me ensinar a ler.
- Por que não falou antes? Ai, sei também fazer isso, de bom grado eu ensinava. Quer? Mas pensando bem, se prefere estar com o doutor, não posso fazer nada. Paga e vai embora.
- Vou embora e depois pago, senhora.


Totonho quase tropeçou nos próprios pés, cambaleando ligeiro rumo à estradiça. Quase quebrou a portinhola, mas pelo menos chegou. O doutor ainda cochilava forte na rede, em posição idêntica à de quando Totonho saiu. Um cutuquinho no ombro e nada. Um belisque no braço e nada além de um ronco. Totonho agachou-se e, mesma altura de cabeças, chamava o doutor em tom fanático de reza, no que o coitado acordou atormentado e por um triz não caiu da rede.


- Despirocou, Totonho?

Os dedos de Totonho apontavam o relógio de pulso do doutor, em ilegíveis números romanos. Ler hora não sabia, mas tinha certeza da própria pontualidade. Ainda sob efeito da bebida, falava lento, porém não tanto quanto o sonolento Doutor Palmeira. Nessa tal lentidão, pode ter se passado tempo comprido, que a nuvem ao leste já migrara bem pra cima da cabeça com seu formato de cabrito.
Então o nariz do doutor se aguçou, glutão - era o maior adjetivo praquele homem que, apesar do estômago saco sem fundo, era magro, magro de ruim mesmo. O relevo das costelas só não lhe era mais evidente porque o matagal de pelos no peito era um tanto denso. Suas bochechas se envergavam para dentro, tal qual fisionomia de caveira. Em compensação, nunca adoecia, coisa que as faladeiras do povo invejavam horrores, arrematando, "isso é tudo praga de médico metido". A grisalha Durcila, limpando as mãos no avental engordurado, postou-se submissa no limiar da porta, de onde anunciou a nova fornada de pão doce, já farejada pelo doutor. De súbito, o sono todo dissipou-se e deu lugar à rotineira gulodice. Entraram todos na espaçosa casa, Totonho ainda bem cambaleando, o alcool exagerando sua admiração na primeira visita à residência do tão digno Doutor Palmeira. Sentiu-se imponente por entre os móveis de madeira maciça, como se fosse convidado especial, especialíssimo, enquanto metia as mãos rudes, quase tentaculares, no brilho dos pequeninos quadros a óleo, dispostos com milimetria simétrica na prateleira acima do imperioso rádio. Após uma disfarçada devastação estética, deixou-se cair em uma das cadeiras em torno da mesa principal. 

O doutor estava atento à crocância do pão dourado, que se divinizava em conjunto ao miolo macio, fofo que só, parecendo até massa de bolo. Desviava os olhos, enquanto mastigava, preparando suas surpresadas aulas. O alfabeto inteiro, com direito até à cedilha. Melhor seria começar pela bastão maiúscula, aí passar para a minúscula e, em seguida, cursiva, pensava o doutor. Mas logo tirava a ideia da cabeça, lembrando que carta é sempre escrita em cursiva, em remetentes, corpos e cabeçalhos. E, além disso, todos esses tipos de letra significariam mais um tanto de tardes dando aulas para aquele homem.

- Senta, criatura.
- Hmn?
- Na cadeira, Totonho!
- Sentei já, dotô.
- Então olhe para mim aí começamos. Tá vendo isso? É um tê. Junta a letra tê com outras letras e vai fomrar totonho. 
- Ahn.
- Então pela lógica, que letra é essa?
- Consigo não.
- Pensa um pouco.
- Consigo não.
- Tenta, homem!
- Consigo não, dotô!
- Pensa só. Totonho. To-to-nho. Tôtônhô. A próxima é o ó, essa bolinha aqui, que é uma vogal, sabe o que é vogal?
- Ô dotô, não exagera pra cima de mim! Sou vagal não, arre.
- Totonho, você tá mais besta que o normal. Você não presta mesmo, tenho certeza que foi todo correndo encher a cara.
- Foi só questão de uns copo e mais outro, nada demais...
- Totonho, cê tá quase dormindo na mesa, homem. Vai jogar uma água no rosto, pelo menos, seu capeta.
- Hmrn.
- Se em cinco minutos você não estiver aqui sentado e sóbrio e de cara lavada, não te ensino mais porcaria nenhuma. Vai logo.
- Tou indo, dotô...
- Vai já, estou contando no relógio!
O lado deve de estar frio, mas juro que vou lá, doutorzim.
- Está maluco, é? O banheiro é ali do lado.

Nisso o moribundo, metade capenguice e metade boa vontade, já tinha saído porta afora e o cão latia, correndo atrás e Durcila olhava na janela, lavando a fôrma de pão, e só podia pensar, ai esse mundo está maluco, e perguntar, muda para si mesma, que diabos faz esse homem estranho por aqui? Totonho quase tropeçou numa moita mal localizada – a culpa é da planta afinal – e em menos de dois minutos chegou no lago, caminho que demoraria uns três mais, se não corresse como corria, jeito que parecia até de touro brabo. Afobado, agitado, ansioso como sempre, jogou-se no lago cheio de lodo e folhas mortas. Seus pés tocaram o fundo e a cabeça ainda bem bebum se esquecera de apertar com os grandes dedos as narinas que, muito largas, deram uma fugada animalesca. O homem se debatia na água opaca, em vão sacudia os brações, as pernas, tudo em vão, em vaga lembrança de nado ou, palerma do jeito que era, lembrança de nada mesmo.

Doutor Palmeira já havia largado o pão pela metade, a manteiga esparramada, toda livre e amarelenta, na superfície carboidrata. Andava a passos largos, arfando, a camisa cada vez mais molhada debaixo dos braços flácidos. Chegou à beira do lago e era tudo calmaria. Uns canários afinavam sua vozes e o céu era impecável. Se abrisse bem as orelhas e tirasse um pouco da cera que tapava os ouvidos, poderia ouvir o som das nuvens andando molengas, mudando de forma de acordo com a imaginação de suas cabecinhas de vento. No fundo escuro do lago, as forças de Totonho se acabavam, mas iam-se indo pouco a pouco, bem pouco. Ele então pensou que ia morrer, que não conseguiria jamais sair daquelas águas, águas aliás que permaneceriam intactas, dras, não fosse todo seu estardalhaço. Ele então pensou de novo que ia morrer, pensou mais um pouco, atinou, ficou nervoso e começou a soltar verdadeiros rojões, que é o que fazia quando enervava, coitado.

Daí que lá de cima Doutor Palmeira forçava a vista atrás de Totonho e Totonho? Nada. Totonho nada nada. Já pensava em dar meia-volta, vai que por acaso Totonho não voltara e já estava à mesa comendo o tal do pão? Girou os joelhos esféricos e a cabeça já ia junto quando reparou nas milhares de bolhas concentradas um pouco ao lado de lá, não muito longe da margem. Teria percebido mais rápido, com certeza, caso não fosse a água um obstáculo no caminho do cheiro à narina. De pronto adivinhou a origem do fenômeno e pulou na água sem dó sem piedade (ou então só na pura piedade), num salto bonito que chacoalhou seus projetos de barriga, aquele magrelo. Arrancara Totonho da água de súbito, dramatizando a cena que poderia ter sido muito heróica, não fosse o ridículo da situação. Nadou com firmeza inesperada para seu mais ou menos meio século e o resgate foi rápido, nos últimos trizes. Saíram da água pingando, demolindo-se um sobre o outro, uma nojeira só. Totonho prometeu que nunca mais voltaria a bar nenhum, veja só! Passaram bem alguma boa fração de hora deitados no gramado falho, os cães rondando alegria e baba. Voltaram quietos, aos pingos, tranquilos apesar do tabefe no cume da cabeça que Totonho levou, para parar de ser inconsequente, ora essa.

- Que é inconsequente, dotô?
-
Doutor preferiu nem abrir mais a boca, preferiu caminhar lento, silencioso. O pão já esfriara e Durcila estava certa da maluquez do patrão. Mariana, coitada, nunca mais saiu de trás do balcão para cliente algum. Cada vez mais, empedrecera aos carinhos do marido, não conseguia pensar em muita coisa além de seus sonhos atrasados de menina. Nem a batata da perna arrepiava mais com o toque do dedão do pé do marido debaixo das cobertas. Pensava em nada mais além da inexplicável rejeição. Antes ele rejeitasse e, pensava ela, nunca mais aparecesse! Mas o desgraçado, todo tonto e sem cumprir promessa própria, o imbecil prosseguia viciado em ir ao bar, olhar na sua face desprezada e fingir, tal qual artista, que nem sabia de nada, que coincidência essa, brincariam aqueles que sabem a história na íntegra. Ela não sabia, logo ela, tão romântica, num amor tão caligraficamente platônico, ai ai ai. O rancor não durou tanto, ainda bem, pois fazia despencar a economia do bar, que a cada dia depressivo fechava mais cedo. Chegou a ter vez até que Mariana fechou o portão na cara dos clientes numa sexta-feira bem no horário que o trabalho acaba. O marido não percebeu nada, nem o começo nem o fim, nem as encrencas do recheio. Com o tempo voltaram ao normal os dois, e para Mariana aquela sua vontade de amor se desmanchando pouco a pouco, suave e lenta, como fizeram na água de lodo as letras perfeitas do papel de carta. E foi desse jeitinho assim, nesta medida mesmo: um pouco amante, um pouco virgem.  

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Aquilos que nos são triviais

Às vezes me pego a imaginar
Como eu seria
Se fosse outra

Não outra Helena
Não de outro sobrenome
-- Ainda meu resto de Itália
Meia e última porção de Turquia

Que eu fosse assim
Desse jeito exatamente
Uma ou outra diferença

Que eu fosse assim
Um assim bem só no básico
O castanho dos cachos, o nariz de batata
As unhas redondas e o pé trinta e sete

Que eu me fosse Guiomar
Ainda o castanho
Ainda a batata
Mesma curva e mesmo número
Talvez com pintura nos olhos
Talvez com pulseira e relógio

Fosse eu a Ariel
Um coque amarrado
Um tique nos cílios
Os braços com maciez de algodoal

E se me chamasse Rita
Um sotaque escancarado
O cabelo de promessa
A piscadela ligeira
O jeitinho de formiga

Dobrada a esquina
Incerteza no passo de pano molhado
Depois da chuva vespertina
Uma moça mediana de pé trinta e sete
Nem tão-linda nem bem-feia
Espera o minuto do semáforo
Ela atravessa
Eu viro a rua Oriente
Ela olha sem querer e vai embora
Ninguém sabe o nome dela
Quem é, quem fora
Como sorri e como chora.

sábado, 3 de setembro de 2011

Era madrugada e vi uma borboleta

Foi linda festança
Chegança de mundo
Pegadas da dança:

A menina mansa
Criança da noite
(Se) pensa em silêncio
Dispensa mesuras

Sussurra mas canta
Recanto relance
Se cansa do tanto
Se lança sem pranto
Da cortina branca
E vira bom vento
E vira lembrança.