sábado, 8 de agosto de 2015

Registros fotográficos

Não é necessário relatar o caminho, muito menos o que aconteceu depois. Chovia e errávamos o caminho. Eu tinha certeza, mas oscilava pela também certeza das outras. Éramos três, mais meu irmão que, não tendo com quem passar a tarde, veio junto. Não falava muito, estava ligeiramente intimidado pelos assuntos que não lhe pertenciam, mas também não tinha feições de quem acha o passeio insuportável, de quem preferiria estar em casa.

Virei o rosto, andando na frente, e disse às meninas que lembrara o caminho. Que era fácil, em minutos estaríamos lá. Quando vi, já estávamos.

Não era nosso destino real, mas estávamos já dentro de um saguão, protegidas da chuva. Era como a entrada de um prédio, toda de madeira, com sofazinhos elegantes e algumas luminárias de metal. Sentamos para olhar a chuva pela janela. Não sabíamos como chegamos ali, mas isso não era o que nos intrigava. Na verdade, quase parecia normal, como se pessoas trocassem de espaços sem a necessidade de entrar ou sair. Como se houvesse uma dinâmica diferente na ordem das coisas, e tudo bem que fosse assim. A sala era escura, as luminárias não conseguiam dar conta de acender um dia nublado com lâmpadas amarelas e evidentemente gastas. Atrás de um dos sofás saía um corredor estreito, ainda mais escuro, de onde, assim imaginávamos, se abriam e fechavam os elevadores. Estávamos por demais absortas na janela e no mundo que caía lá fora para pensar em explorar o espaço. Não era momento para investigações, preferimos responder àquele realismo fantástico com contemplação. Contemplávamos a chuva, os prédios em volta do saguão, a ausência absoluta de pessoas e guarda-chuvas pelas ruas, os ângulos tortos das curvas nas ruas, como de um parque. Contemplávamos o vidro muito limpo da janela fechada e a armação de metal dourado que estruturava os vidros. Contemplávamos a falta de portões e porteiros e de quaisquer medidas de segurança criadas pelo nosso mundo de propriedades privadas e medos inventados.

Demoramos alguns bons segundos para notar que uma senhora havia descido de seu apartamento mas, já ali embaixo, decidira esperar as gotas de chuva se afinarem. Sentada, bem arrumada com um paletó vermelho, estava de costas para nós, encarando a porta principal, cuja existência até então não havíamos reparado. Seu modo de sentar me pareceu familiar, as costas um pouco curvas como uma vírgula tímida. Voltei os olhos para as meninas. Quando fui indicar com a discrição dos olhos, a presença da senhora de vermelho, vimos que mais uma senhora também havia chegado como nós: não entrou por lugar nenhum, não seguiu qualquer passagem, não veio da porta principal e nem do final do corredor, onde supomos existir elevadores. A senhora me olhou e vi: era a minha avó. Sentou-se ao lado da outra senhora no sofá, porque tinha uma dor nos joelhos que não a deixava ficar de pé por muito tempo, apesar de ser muito forte.

A senhora de vermelho virou-se para dar bom dia e as duas se encararam. Eram estranhamente semelhantes. Tinham o mesmo rosto, a feição obviamente migrante, do norte do país, e o mesmo corte de cabelo. Vovó usava há anos aquele cabelo curto, penteado para o lado, que nunca chegou a ficar branco, apenas acinzentado. Era muito cuidadosa, e só deixou de cuidar de si - em todos os sentidos - quando se perdeu, acometida por um câncer repentino. A senhora de vermelho tinha os cabelos mais escuros, bem pretos, como era minha avó nos anos noventa, quando eu era pequena e passava as tardes comendo o seu mingau de aveia. Com a tranquilidade que sempre teve, vovó se levantou e a senhora de vermelho se levantou junto. De pé, continuaram se olhando, enquanto demonstravam pequenos sorrisos. Assim, pudemos ver que a senhora de vermelho era uns bons quinze centímetros mais alta. Não se tratava, portanto, de um espelho, de uma duplicação, de um reencontro perdido no espaço-tempo. O dia era de intempéries e transparências. Eu e as meninas também nos víamos de outro jeito, e parecíamos mais semelhantes do que realmente somos, mas aquilo que acontecia era especial. Um ano depois de levarmos vovó para o hospital, reencontrá-la não era motivo de efusividade, de grito, de choro. Tudo parecia tão natural como há tempos o mundo não aparenta. As duas senhoras também viam tudo sem medo. Felizes, se abraçavam e pediam uma foto, para que o momento não se perdesse nas falhas memórias de velhice.

Meu irmão, que só olhava tudo, bateu a foto em uma câmera ruinzinha que vovó levava consigo (eu me lembro, foi presente de minha tia há uns já quatro anos). Estava confuso. Olhou para mim e perguntou, mas a vovó já não morreu? Ele também não tinha medo, sabia que vovó não traria pesadelos, mas não entendia nada daquilo que transcorria com tanta normalidade. Também me confundi. Esqueci qual era a memória correta, se o câncer havia levado vovó, inconsciente e sem dores, em agosto de 2013, se estaria ela ainda um pouco debilitada, mas viva na cama de hospital, ou se finalmente havia se recuperado. Vê-la saudável, rindo frente a mim, me embaralhou as lembranças e me fez esquecer de todas as vezes que chorei de saudade e que sonhei com a presença dela em parques de diversões, quartos de hospital, jantares simples em casa ou durante a campanha da nossa presidenta que ela sempre acreditou. Vovó estava ali. E a outra senhora, que desconhecemos nome origem e registro de identidade, também. Minha tia desceu pelas escadas. Eu não sabia o que ela fazia ali, mas ela está sempre em tantos lugares ao mesmo tempo que não estranhei. Saiu pelo corredor e nós ouvimos a porta batendo de leve. Respondeu ao meu irmão que vovó estava morta, de certa forma, mas que também estava viva. Minha tia sempre soube explicar as coisas da vida ao meu irmão, também por ser a única que ele realmente ouvia.

A chuva continuava absurda e o espaço-tempo não colaborava em nossas crenças tão ateias. Passamos a acreditar na eternidade.



Helena Zelic

8/8/15