segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Assassinato de pequenas causas



A: Você viu a vítima?
A: Veio lá da vastidão
A: Vagueando entre veludos!

B: Era velho, vil ou vândalo?
B: Quem o viu, o vigilante?
B: Vim aqui ver os vestígios!

A: Verdureiro venerado,
A: Dos cultivos vitalícios.
A: Prova viva é o vigário!

B: Quem seria vil à vida
B: De um varão tão bem visto?
B: Evoque já as viaturas!

A: O que viram é duvidoso
A: Se verdade, é uma vergonha...
A: Quem o vela é a viúva.

B: Verbalize tal vacilo
B: E veloz virá a verdade.
B: Quando vem a ser o velório?

A: Violaram-no em veneno
A: Varejando sua cabeça
A: Contra as vozes da varanda.

B: A viravolta já me veio
B: Não vazou-me quem foi o violento
B: Cuja várzea varreremos.

A: Quem vingou com valentia
A: O vaso de verdugos esverdeados
A: Sem vacilos ou vexames foi...

B: Vocifere tua voz, sem vetos a cada verbo!
B: A vilania ainda é vindoura
B: E viajaremos de véspera ao velório!

A: Quem soltou o sangue violáceo
A: Em vitupério e violência
A: Foi uma invejosa violeta
A: Da varanda vergastada. 

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Carta ao meu verdadeiro lar


"Está escurecendo. Tenho que voltar pras minhas terras, tenho que encontrar minha bella casinha. Mas como faço pra levar todas essas bugigangas que deixei aqui? São também fração de mim. Aceita-me como todos esses meus apêndices? Estou voltando, mas não tenho como bater à porta porque minhas mãos estão ocupadas com essas minhas tralhas. Abra-se pra mim? Semana passada o calor imperava, aposto que você sentiu também. Quase rapávamos careca de tanta quentura na cachola. O ar mantinha-se fresco, dançando entre moléculas. Nós pulando, nós em bellas gargalhadas, os pés sentindo a areia úmida à beira do mar. Ah, Mar, és também meu lar! Teus rebolados me instigam os caminhos... pra ti me vou, mas em ti serei nômade: aqui tenho meus álbuns de fotografia e minha casinha que tanto me bem-guarda. 


Pois Recife é também meu lar, mas só o é por ser Vida para minha casa. Minha casinha, a passos ansiosos, me levou até Recife, mesmo com alguns atropelos e pausas no caminho. Foi-se o tempo em que corríamos para tudo quanto é canto do mundo - porque afinal, para crianças, um ou dois centímetros já são gigantes mundos. Agora a gente tem fome. Fome de mundo, fome de dias, fome de êssencia, fome daquele tempero verdadeiro, que não precisa de sal: já se gusta por si só. Mas preciso da minha casinha por perto, pois ela passeia comigo. Às vezes se enraiza, é certo. Mas costuma acompanhar-me. É de muito belleza minha casinha. Toda amarela, com estrelas vermelhas em alguns cantos, meu lar vezenquando se camufla, mas isso é só porque é uma casa no campo. Está ficando escuro e o vento frio se achegando, abre a porta pra mim? Sinto falta de teus ideais, do sofá que guardas para mim, da escarola que me serves à contragosto. Sinto falta de tuas birras, porém mais ainda sinto falta de tuas andanças cantantes, quando acompanho teus caminhos por nossa janela. 


Casinha tão bella, de margaridas em parapeito, e veranesca paixão, só queria de avisar que gosto de, pela nossa janela, olhar o teu andar que se faz nosso, por entre política, gastronomia, cinema e futilidade. Pensa só, Casinha que tanto amo: agora o inverno já foi-se, por enquanto é tempo de Sol, Saias Rodadas, Dilma, Olinda - Tu Tão Linda. E se ainda não for tal época, se atranquila, a nossa estação há de chegar logo. Pois verão é tempo de janelas abertas, portas destrancadas, passeios na praça, pipoca e sorvete. Tempo de férias, tempo de comemorar novos anos em viagem (essa tal viagem de sempre que, pode parecer ingenuidade, mas tem pezinhos andarilhos por entre tantos mares, tantas ervas-daninhas. Por entre tanta orquídea, por entre o cão risonho da maior negritude que acompanha o passo do tal "eu e você-minha-amiga"). Temporada de Casa no Campo. Onde, como já diz Elis, eu possa plantar meus amigos, meus discos e livros e nada mais. Isabella, obrigada por me abrigar sempre, por ser assim "a certeza dos amigos do peito e nada mais". As margaridas que me perdoem, mas minha Casa no Campo é recheada de mandacarus. Talvez eu tenha sumido em algumas estações, mas o inverno e o outono são sempre um pouco mais complicados, e acho que você partilha da mesma opinião. Acho que preciso visitar mais - muito mais! - minha Casa no Campo, tão linda e charmosa que ela é! Obrigada por tudo e feliz aniversário." 


(12/11/2010)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Resina

Violino, tal qual meu amor
Talvez com traços violetas
Ante aquele verniz-madeira

Violino assim rasgado
Uma nota, som afinado
Nos fiapos dó-ré-mi

Violino, vi-o-lindo
E sofro em curvas de agudeza
Cordas apertadas que se ecoam só para si

Violino, artefato esconderijo
Cujo arco sinestésico
Toca o corpo e incita voz

Violino, quatro cordas
Quarto e vozes em sussurros
Vinho e tato em solidão

Violino, tão sofrido
Violino resguardado
A cabeça sua voluta, aguardando mil volúpias

Violino é meu amor
Que se faz em fricção
Em meus sonhos, utopia da mais pura ficção

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Pedras


 - Qual será a de hoje?
 - Blowin' in the Wind.

E nenhuma palavra mais. Roger começou sua cantoria junto ao inseparável violão vermelho enquanto a tal moça escutava de olhos atentos às unhas sujas que se movimentavam em piscares pelas cordas e casas. A princípio era uma relação um tanto quanto bizarra: A moça caminhava pela grande avenida de metrôs, cinemas e bancas de jornal, enquanto Roger conversava com um senhor pedinte de pernas amputadas. De um salto, esqueceu-se do velho deficiente físico e, inflando o peito fraco com o máximo de garbo, apresentou-se:

 - Roger, O Músico De Rua. Prazer!

Ela, em gestos bruscos de quem fora pega desprecavida, soltava monossílabos avulsos, porém cabíveis. (Monossílabos, por mais que sem grandezas, guardam as maiores profundidades do ser humano. Resta a cada um escolher se o seu guardar é mostrado ou omitido.) Roger, O Músico De Rua, perguntava em insistência frenética que música a moça gostaria de ouvir – qual, qual, qual - deixando claro que pedia por ouvidos e não moedas. Em (como sempre) atrapalhada tentativa de mistério, a confusa moça deixou à escolha do homem. Ele que descubra, se é tão músico assim como diz. Sem meias palavras, fugiram da caixa do violão alguns acordes conhecidos, start spreading the news, I'm leaving today, I want to be a part of it, New York, New York. Observando os dentes daquela criatura, cada um com um ângulo diferente (imagine só: um mapa de senos e cossenos, diversos círculos trigonométricos, nesta boca infeliz!), seu pensamentos se voltaram à voz do homem que já beirava uns trinta anos. 


Pois não é que a moça, diante de Roger O Músico De Rua, o lendário desconhecido, o conhecedor de mundos cuja São Paulo não faz a menor ideia de quem seja, este mesmo; diante dele, a moça de cabelos sujos pelos ventos poluídos ouvia a apresentação única e exclusiva de Dylan cantando Sinatra. Roger O Músico De Rua não é algo tão distante de Bob Dylan O Músico De Vagões De Trem. A moça, em auge de miçangas e juventudes, foi-se embora antes que Roger começasse a já proposta segunda e última música do primeiro dia – mal sabiam dos próximos que viriam -, não sem antes bater palminhas com uma mescla de satisfação, simpatia e descompasso (descompasso este oposto às sabedorias musicais de Roger mas proporcional aos trilhos tortos de seus dentes amarelados.)

 - Obrigado pelo carinho e pela atenção. Nos vemos dias desses pelos aquis. - ele concluiu em ares joviais de certos pingos de rebeldia, as fuças aprumadas para sorrisos retribuíveis, transparecendo companheirismos. Ela, em passos largos de interrogações, absorta em entender a bizarrice dos ares que a mantiveram em sincronia amiga a um músico de rua de voz nasalada totalmente perdido no tempo.

Pois em outros dias de andanças e divagações se cruzaram novamente e ela, sem pestanejar, exigiu The Hurricane, cujos palpitares ecoaram ao mesmo tempo que seus conflitos internos da época, essas tais besteiras que importam, cujos mares não cabe a mim navegar. Dylan esteve novamente encarnado ao seu lado. Aplausos; sílabas; adeus; adeus não, eu diria até logo; se é assim, então até; sorrisos solitários de memória recente. Se encontravam pela hora do almoço (eles que nunca tinham hora certa para refeições), e a moça um tanto quanto sensata (talvez até um pouco demais) nunca permitira que Roger se ecoasse por mais de uma canção, em recuos e semáforos de anseio. 


Agora, frente a um pedido que conhecia e esperava, Roger O Músico De Rua, o bom, o ídolo único, o cara estranho, este mesmo; ele errara as notas, errara a letra, a tal resposta ficou pairando no vento sujo da cidade podre e ele não tentara tocar, não levantara um dedo para acalmar as trilhardárias perguntas da tal moça. Não, Roger Músico de Rua, um beijo aproveitador não ajudaria; esqueça. Tentara abandonar a canção e trocá-la por um Raul qualquer, sem ver que este não fazia jus àquela específica calçada movimentada onde estavam os dois sentados, intocáveis. Roger, para você não há como caçar respostas porque não perguntas nada. Agora nesta tentativa afobada, adivinhara errado o som que me cabe, e assim vemos que nossas desatinadas afinidades são bastante desafinadas. Ainda se sua saída fosse “don't think twice, it's all right”, ou qualquer merda do gênero. Mas não viste nada, assim com o olhos encovardados atrás de opacos óculos. Fácil olhar nos olhos dos outros quando eles não podem chegar aos teus. Pois eu mesma não acredito nem nunca acreditei em adivinhações. O que há não é nem sintonia; é, isso sim, sincronia. Diante tantas monodiscursos escuros mentais, a moça de nome desconhecido e desnecessário joga os cabelos como um lençol vermelho no varal e adeus:

- The times, they are a-changin. Sei bem, sei sempre a todo instante dessa avenida em pisca-pisca. Porém... it's all over now, Baby Blue.