sábado, 29 de janeiro de 2011

Sapateado

A última canção, que seja em coro
Que tente o tom
Que tenha compasso onomatopéico
Que solte enfim a interjeição
Reprimida pelas grossas lentes prisão
Pelas chapas afiadas das seis às seis
Pelos olhos dos outros
Enquanto a miopia é a grande peste.

A última canção que tenha percussão
Que balance cabelos
Batuque as ossadas
Que tenha vento de trem
Porque trem sempre esteve a nos guiar
Mesmo sendo de berço tão metálico
Quanto fábrica indústria revólver

A última canção, que tenha voz de menino
Que conte lunetas, histórias e passos
Afinal, são 107 passos
Que se acabe essa aflição
Esse esboço mal-dormido
Essa vida vista mal
Que se implante óculos em pupila
Que se ouça buzinas e estalos
Que se faça bela Mary
Que se veja bela Mary
Que se saiba sapatear sem olhos
Mas para danças é preciso chão
Mesmo que por ínfimos segundos
Entre um salto e outro e outro
E a forca tira força
Tira som do pé da moça
E passa o grito à boca
Sem nenhuma afinação
Sem a voz sincronizada
De uma peça musical.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Devassalador

- Quantas, Seu Tonho?
- Menino, você me veio aqui não faz nem uma hora!
- Mas... não tem nada?
- Espera um pouco, vou buscar... tem duas.
- Ai, Seu Tonho, que miséria!
- Hoje é dia de semana no meio da tarde, vem pouca gente. E você se assossegue, moleque! Tá com fogo nas calças, é?
- Brigado, Seu Tonho!, depois passo aqui de novo!
- Ê, menino doido...

As pernas finas feito graveto saíram em disparada do Bar do Seu Tonho -- estabelecimento totalmente típico de esquinas -- atravessando as vielas quebradiças até chegar na  rua onde, à quarta casinha à direita, aquela em tom amarelado, tinha cama comida e água, na medida do possível. Os outros moleques da rua, concentrados em aquecer as mãos para virar todas as figurinhas em modos magistrais, quase nem repararam no estardalhaço apressado de Lucas. De quase em quase, pode acontecer de tudo.

- Lucas, vem cá e traz aquela sua repetida do Robson do Fluminense, que eu preciso completar meu álbum e vou ganhar ela de você é no bafo!
- Sai da minha frente, Edu, não tenho tempo agora!
- Você tá é com medo, isso sim. 
- Me deixa em paz!

Estrebuchando, o menino se jogou na maçaneta da porta, entrando em casa em plena afobação, enquanto todo o bando lá fora gritava, covarde pra cá, covarde pra lá, para em seguida voltar às discussões habituais de "você tá roubando!" "ah, não! Não aceito isso, devolve minhas figurinhas!" "não sabe perde-er!", e por aí ia. Dentro de casa, ah sim, estava tranquilo, ninguém para atazanar ou se empenhar a dar palpite. Pai e mãe em hora de trabalho, a irmã devia estar na casa de alguma vizinha, coisa com a qual não precisa se preocupar. Iniciou-se, então, o ritual. Não que fosse instante raro ou digno de atenção individual, um momento importante para a humanidade, marco demarcante de rumos do mundo. Talvez rumos mundanos, isso sim. A casa, modesta, era térrea, e a porta de seu quarto dava de cara com a janelinha pricipal. A mesma janelinha pela qual bizoiavam olhares curiosos -- mexeriqueiros -- das tantas velhas de ossos tortos que, sem vias de comprar uma bengala, se apoiavam no carrinho de feira cheio de ferrugem e uma contada quantidade de grãos e tomates. Se o passo era cansado mesmo, por que não dar uma espiada, só pela segurança da casa, no interior dos aposentos da família Pereira? Mãe trabalhadeira, pai macho e respeitoso, família em certa ordem. Uma olhadinha pela janela, só pra assegurar que não hajam quaisquer eventualidades negativas.

O menino já ia começar sua atividade, e saiu cheio de vergonhas fechando a veneziana de madeira carcomida. Voltando ao quarto, começou a procura. "Não é possível, não é possível, peguei naquele saquinho não faz nem duas horas!" Meteu os dedos dentro de todas as gavetas do armário, não estava. Nem junto dos pares de meia! "Ai meu deus, ai meu deus, onde está aquele saquinho maldito? Não pode ser, não pode ser, por que papai teria encontrado? Ele não pode ter encontrado, não pode. Escondi depois de mamãe fazer minha cama." Já começava a suar, metade por medo das indagações paternas, metade porque tinha vontade de achar, mesmo. Apalpando o lençol desbotado da irmã que, mesmo já em pré-plenitude adulta, dividia quarto e abajur com ele, sentiu ali, o saquinho cheio de ângulos pontiagudos: cá se está. 

Por que lá haveria de estar?, Lucas perguntaria se não estivesse de olhos arregalados em sua compulsão por abrir o saquinho, matematizar o conteúdo e, em seguida, humanizá-lo, talvez até por demais, nesse quesito. Os dedos mansos de unhas roídas desataram o nó já tentando jogar tudo no chão para, ali no quarto mal iluminado, fazer valer mais uma vez todo o rito.

- Dois, quatro, seis, oito, dez, doze... calma. 
  Dois, quatro, seis, oito, dez, doze, catorze, dezesseis, dezoito... 
  Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze, quinze, dezesseis, dezessete. 

Enfia a mão no bolso, inteira, apalpando o que é o quê. "Mais as duas novas. Dezenove. Razoável, já, hein. Uma só já é suficiente, mas dezenove!, rico deve estar é o Seu Tonho!" Afobado, só depois de ter em mãos e ninho suas pequenas preciosidades é que estava em condições de sentir o calor infernal que se aglomerava no quartico de miserinhas. Despido da abafada camiseta, saca uma das tampinhas vermelhas de cerveja, com metal todo bem cuidado, e espalha as outras dezoito ao seu redor. Do tamanho de uma unha, lá está ela. Bonita, sim, em lingerie branca como ela toda, inteira decorada em dois tons de sombra e luz, em pose aos olhos do menino, afoitos. Pois revista de mulher pelada esvaziaria muito mais os bolsos de Lucas, já preocupado com as figurinhas nas moedas contadas que a mãe dava com aperto na mão; cada vintém era valioso porque deveria ser entregue em porção igual à tal irmã. Ela, porém, juntava tudo numa caixa de sapatos para comprar um estojo de canetinhas, daquelas bonitas, brilhosas e aromatizadas, que não falham nunca, nunquinha.

Lucas poderia ter metido a mão nas humildes economias da irmã, mas de que valeria? As figurinhas são possíveis e, sendo as revistas muito caras, tinha gratuitamente em mãos coisa mais instigante, em forma feminina, estampada bem na tampa de certa garrafa de cerveja. Em um giro trezentos e sessenta graus, vistoriou uma última vez a casa completamente vazia e, comprovando tal contexto, finalizou o ritual, dando início a outro maior ainda (porém maior só de espírito porque afinal o garoto estava ainda em infâncias). Da bermuda azul de beiradas sujismundas, com o impulso da mão que o arrancou para fora, viu o mundo uma minhoquinha pelada e fina, que Lucas acariciava enquanto olhava a pin-up devassa da tampa etílica. Cuidando do bem-estar próprio, Lucas não conseguia ser tal qual adulto nem em situação daquele tipo, que aliás costumava ser cada vez mais recorrente. O menino se afobava aos montes em gana prazerosa enquanto via à imagem da mulher, mas nunca conseguia ser brutal. Delicado, isso sim, com uma singeleza do tamanho de um mar -- o rito do menino, aliás, lembrava brincadeiras no mar, que a gente até se perde quando nela está, mas nunca perde atenção porque senão a correnteza leva. A pele se eriçava toda, por conta da força não do menino na coisa mas da coisa nela mesma, lembrando asfalto de rua mal cuidada -- parecia até, pra dizer a verdade, a rua em que Lucas morava, a mesma que por um momento crucial de mundo e tempo atritou-se junto a um carro em freios desvairados, trovejando assim no roçar do pneu com o chão. "É o pai, é o pai!" O menino amedrontado (sem nem saber direito o porquê, pois em verdade nenhum mal havia para a humanidade tal ato de carinho próprio) rasgou-se a juntar todas as tampinhas de cerveja, todas as belas e devassas mulheres que, do tamanho de uma tampa de cerveja, tanto entretiam seus seis-anos-quase-sete. Era tudo culpa desse tal medo sem motivo, porque afinal, pai que é bom, nada. Estava ainda em trabalho e só foi dar com os pés na pequena casa por volta das oito da noite, inclusive atrasando a janta. O saquinho ficou sobre o travesseiro, fazendo um pouco de volume, é verdade, mas nada muitíssimo perceptível. No dia seguinte seu conteúdo se espalhou mais uma vez pelo chão, assim como mais uma vez todo o rito de prazer se fez a única sensação da casa, ante tanta falta de tato neste mundo. Mas, durante a janta, pai mãe Lucas irmã em torno da mesa modesta de arroz feijão banana, sim, até durante a noite, que só assim se fortalece. A sala inteira, longe de calada, só tinha ouvidos para discussões tolas ou levianas. Nada muito sério, valha-me deus! É certo que o menino vez ou outra soltava impropérios irritantes e apimentava a relação árdua com a irmã, mas era também só por causa daquele medo já contado. Pra esquecer da mulher etílica, que por sua vez, porém em vão, serve como passatempo enquanto não se fazem valer os sonhos de esperança, diversão, pipoca e sorvete, com a trapezista de um circo que foi embora semana passada. Tinha belas pernas, aquela moça. Não tão belas quanto a brancura leitosa dos dentes, que se arregaçavam por detrás da boca opaca em batom escarlate. Lá no topo do círculo circense, no teto do colorido picadeiro, ela ia e voltava, ia e voltava, incessante, ir e vir, ir e vir, ir e vir e ir e vir e ir e vir e ah ah ahhh! Circo é rito.



sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Poema Amarelo

Dia desses tive um sonho
Em que tu só me chamavas
(Tão lindo, tão lindo)
Num querer de seduzir-me

Pois não é que abro o olho
Me vejo toda mijada
(Resquício de um sono findo)
Teu nome: privada.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Poligamia

Só vim aqui te avisar:
Não sou somente tua
Nem sob sol nem sob lua

Só vim aqui te lembrar:
Fração minha cochila no meio da rua
Te aguarda, sob lençol de nuvens, toda nua.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Desalegria

À Larissa Brandão, que é a minha mexerica

A tu que és tão desalegre
Só te peço uma coisa, menina:
Junte todos os teus dedos
Descasque essa mexerica
Devore cada gomo alaranjado
Imprima todo o divino néctar
Em um riso que me boto a esperar
Noite e dia
Até hoje não chegou

Menina, absorva a fresquice
Liquidez em alegria dilacerada
Nutra-te de toda graça, manhã, doçura;
Fiapo de sol escarlatando cabeleira
Faça-te casca, gomo, semente e sulco
Faça-te lâmpada laranja em camarim
Que é pra ver se tu te recordas de mim.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Meu relógio não é à prova d'água

       Tic

            Tac

                 Tic

                      Tac

                            Ping
                     Ping       Ping
              Ping       Ping       Ping
       Ping       Ping       Ping       Ping  
Ping       Ping       Ping       Ping       Ping;

A chuva é mais rápida que o tempo
pos se expande em diagonais.
A chuva rouba o tempo
do relógio do senhor
do almoço da secretária
da pelada em bola de meia.

A chuva para o tempo
um segundo se torna obsoleto;
um segundo somente um
é cachoeira nas lentes de meus olhos.
Um segundo equivale
à queda de cumulus, mundos
talvez também de muros.

A chuva para o tempo
a chuva para o menino
o menino para para a chuva:
"Não há raios nem trovões
só pingos, poças e pés!"

Chover;
            chora e vê
chorar de olhos abertos é crer em mundo
crer no segundo de uma gota
pois se me pinga também sal
e minha lágrima vale instante
é, então, nuvem, muro, muro
talvez menino de língua estendida
bebendo o tempo do mais puro.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Incenso Parafina

A fumaça de meu vício
Não tabaco ou baseado
É o clímax do fogo em parafina

Meu fogo, te acendo puro
Quando a luz foge da cidade
Para ver teu breu e sombra
Perspectiva de casa toda
E dos fantasmas que ressurgem
Minha silhueta enegrecida na parede

Meu fogo, tua vela quase explode
A estática de um meio-fio
Enquanto escorre vazio
Toda a viscosidade possível de luz
E meus dedos tocam a caliência de teu plasma

Mas fogo, fogo meu que guardo em bolso
Se tua vela é incendiária
Porque ainda, eu desnuda,
Não fiz-me de ti?
Resistes feito soldado
Eu acarinhando-te com a palma da mão

Senhor fogo, tenha cuidado
Pois estou muito doente
E por isso presa em casa
Espirro, tusso ou algo da estirpe
Um sopro meu te mata em pronto

Cof Cof Atchim Snif
A escuridão se fez plena.
Ó céus, ó céus!
Minha gripe matou fogaréu!

Preciso agora cuidar do velório
E acender muitas velas
Pro meu fogo que morreu
E me deixou por instantes no escuro.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Pajarito


À Paula

Há quem confirme feliz
o voo de todos seus amigos
mas meu querido pajarito
tem como habitat o solo

não por falta de quereres
nem descaso ou preguiça;
ainda é época de ninho.

Certo dia em tempestade
de seu berço foi ao chão.
Flor de jabuticaba (que pena!)
deixou de ser sua jardineira.

Sob as gotas grossas grandes,
aos predatórios perigos felinos,
pajarito desespera, e pia pia pia
"Que mamãe me acuda, que papai me salve!"

Mal sabia o pequeno infante
que o quintal onde se achava
era parte de uma casa.

Poderia ser cadeia ou manicômio
poderia ser abrigo de insensíveis
mas, thebaida, lá viviam três mulheres sábias:

uma velha e duas filhas
de coragem, voz, direitos
sempre com curtas madeixas
escrit, estudo e militância.

Bebericavam vendo a chuva
e atentando à proteção da casa
enquanto, sobre mundo, discutiam tese e opinião.

Eis que pajarito se ensopava
seja chuva trovejante
seja saliva dos gatos à espreita
e papai mamãe não sabiam que fazer.

Planando vista com vidraça
o olhar traceja céu ao chão
"Nosso gato tem na boca um passarinho!"

Correm as três em alarde
abrindo espaço entre gotejos
"Gato, largue mão desses desejos;
abra boca antes que seja tarde!"

A bobice do felino somada
à ordem firme das mulheres
fez do predador cair mandíbula:
de lá, tremelicando, saiu em pulos pajarito.

De mãos quentes meio úmidas
acasularam pajarito amedrontado
soltando-o, vívido, dentro da casa.

Com calma, paciência e histeria
descobriram ser filhote
--pouca pena, rabo, bico.

O outro dia amanheceu bonito
feito orquídea em cores quentes
que, sem qualquer aviso prévio
de repente, floresce.

Pai e mãe preocupadinhos
se achegam à janela
iniciam coral: "venha, filho!"

Nisso as sábias, que são sábias
mas não entendem língua de pássaro
focaram vista no olhar do pajarito
e o moleque só encarava janela.

Portas fechadas em casa
o felino no sofá
pajarito esperando os pais
e saltita aqui e acolá (firuli firulá!)

Essa história é tão bonita
que ninguém nem acredita
"Tu és mesmo aflita por mentira!"

Mas eu vi de próprio olho
como pode?, já não sei
"Bicho de bico tem igual expressão todo dia."

Pois vi da ponta nascer lábio
pajarito abrir sorriso
Ao ver planar mamãe-papai
com, em bico, besourinho.

Deu-se início ao hino à vida
mamãe passando ao pajarito
nutriente gosto abrigo

os dois bicos se fundiram
com besouro sendo vértice
currupios ensaudosados
fotografia que guardo em memória.

O mundo das três sábias
num instante era estátua.
(Ninguém sabe mas seus óculos reluziam
Os cem fogos de artifício dos olhos.)

Eis que um dia,
Tão orquídeo quanto aqueles
Das auroras de outrora

o felino achou uma fenda
foi-se ao quintal de faiscância
e lá se deu toda a perfídia.

Pajarito aprendia a voar
a estímulo familiar
mas, ainda em raras penas
saltitava entre mato e primavera.

Eis que o gato pula, ataca
o instinto imperando
orfaniza o pajarito.

Pobre pobre pajarito,
pajarito tão sozinho
covardia pelas sombras
e patas fincadas ao chão.

Pajarito, pajarito,
não te aflijas tanto assim
ainda há casa, sábias, tempo.
És tu pássaro, mas não cuco.

E mesmo fosses tu um cuco
e a portinhola se abrisse para tu voar
haveria mola e tempo para tu te acostumar.

Pajarito, pajarito,
se findou em rapidez
nem deu tempo de chorar.

Pajarito, pajarito
tu que eras um pardal
nem cantou a hora triste
de a corda se acabar.

Hora de portinhola escancarar
pajarito frágil olhar pra fora
ver o tão enorme mundo
e se trancar pra sempre no ponteiro enferrujado.

Pajarito, eu te peço:
salta o tempo e acá rebola
pois por ti as sábias choram.