sábado, 22 de janeiro de 2011

Devassalador

- Quantas, Seu Tonho?
- Menino, você me veio aqui não faz nem uma hora!
- Mas... não tem nada?
- Espera um pouco, vou buscar... tem duas.
- Ai, Seu Tonho, que miséria!
- Hoje é dia de semana no meio da tarde, vem pouca gente. E você se assossegue, moleque! Tá com fogo nas calças, é?
- Brigado, Seu Tonho!, depois passo aqui de novo!
- Ê, menino doido...

As pernas finas feito graveto saíram em disparada do Bar do Seu Tonho -- estabelecimento totalmente típico de esquinas -- atravessando as vielas quebradiças até chegar na  rua onde, à quarta casinha à direita, aquela em tom amarelado, tinha cama comida e água, na medida do possível. Os outros moleques da rua, concentrados em aquecer as mãos para virar todas as figurinhas em modos magistrais, quase nem repararam no estardalhaço apressado de Lucas. De quase em quase, pode acontecer de tudo.

- Lucas, vem cá e traz aquela sua repetida do Robson do Fluminense, que eu preciso completar meu álbum e vou ganhar ela de você é no bafo!
- Sai da minha frente, Edu, não tenho tempo agora!
- Você tá é com medo, isso sim. 
- Me deixa em paz!

Estrebuchando, o menino se jogou na maçaneta da porta, entrando em casa em plena afobação, enquanto todo o bando lá fora gritava, covarde pra cá, covarde pra lá, para em seguida voltar às discussões habituais de "você tá roubando!" "ah, não! Não aceito isso, devolve minhas figurinhas!" "não sabe perde-er!", e por aí ia. Dentro de casa, ah sim, estava tranquilo, ninguém para atazanar ou se empenhar a dar palpite. Pai e mãe em hora de trabalho, a irmã devia estar na casa de alguma vizinha, coisa com a qual não precisa se preocupar. Iniciou-se, então, o ritual. Não que fosse instante raro ou digno de atenção individual, um momento importante para a humanidade, marco demarcante de rumos do mundo. Talvez rumos mundanos, isso sim. A casa, modesta, era térrea, e a porta de seu quarto dava de cara com a janelinha pricipal. A mesma janelinha pela qual bizoiavam olhares curiosos -- mexeriqueiros -- das tantas velhas de ossos tortos que, sem vias de comprar uma bengala, se apoiavam no carrinho de feira cheio de ferrugem e uma contada quantidade de grãos e tomates. Se o passo era cansado mesmo, por que não dar uma espiada, só pela segurança da casa, no interior dos aposentos da família Pereira? Mãe trabalhadeira, pai macho e respeitoso, família em certa ordem. Uma olhadinha pela janela, só pra assegurar que não hajam quaisquer eventualidades negativas.

O menino já ia começar sua atividade, e saiu cheio de vergonhas fechando a veneziana de madeira carcomida. Voltando ao quarto, começou a procura. "Não é possível, não é possível, peguei naquele saquinho não faz nem duas horas!" Meteu os dedos dentro de todas as gavetas do armário, não estava. Nem junto dos pares de meia! "Ai meu deus, ai meu deus, onde está aquele saquinho maldito? Não pode ser, não pode ser, por que papai teria encontrado? Ele não pode ter encontrado, não pode. Escondi depois de mamãe fazer minha cama." Já começava a suar, metade por medo das indagações paternas, metade porque tinha vontade de achar, mesmo. Apalpando o lençol desbotado da irmã que, mesmo já em pré-plenitude adulta, dividia quarto e abajur com ele, sentiu ali, o saquinho cheio de ângulos pontiagudos: cá se está. 

Por que lá haveria de estar?, Lucas perguntaria se não estivesse de olhos arregalados em sua compulsão por abrir o saquinho, matematizar o conteúdo e, em seguida, humanizá-lo, talvez até por demais, nesse quesito. Os dedos mansos de unhas roídas desataram o nó já tentando jogar tudo no chão para, ali no quarto mal iluminado, fazer valer mais uma vez todo o rito.

- Dois, quatro, seis, oito, dez, doze... calma. 
  Dois, quatro, seis, oito, dez, doze, catorze, dezesseis, dezoito... 
  Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze, quinze, dezesseis, dezessete. 

Enfia a mão no bolso, inteira, apalpando o que é o quê. "Mais as duas novas. Dezenove. Razoável, já, hein. Uma só já é suficiente, mas dezenove!, rico deve estar é o Seu Tonho!" Afobado, só depois de ter em mãos e ninho suas pequenas preciosidades é que estava em condições de sentir o calor infernal que se aglomerava no quartico de miserinhas. Despido da abafada camiseta, saca uma das tampinhas vermelhas de cerveja, com metal todo bem cuidado, e espalha as outras dezoito ao seu redor. Do tamanho de uma unha, lá está ela. Bonita, sim, em lingerie branca como ela toda, inteira decorada em dois tons de sombra e luz, em pose aos olhos do menino, afoitos. Pois revista de mulher pelada esvaziaria muito mais os bolsos de Lucas, já preocupado com as figurinhas nas moedas contadas que a mãe dava com aperto na mão; cada vintém era valioso porque deveria ser entregue em porção igual à tal irmã. Ela, porém, juntava tudo numa caixa de sapatos para comprar um estojo de canetinhas, daquelas bonitas, brilhosas e aromatizadas, que não falham nunca, nunquinha.

Lucas poderia ter metido a mão nas humildes economias da irmã, mas de que valeria? As figurinhas são possíveis e, sendo as revistas muito caras, tinha gratuitamente em mãos coisa mais instigante, em forma feminina, estampada bem na tampa de certa garrafa de cerveja. Em um giro trezentos e sessenta graus, vistoriou uma última vez a casa completamente vazia e, comprovando tal contexto, finalizou o ritual, dando início a outro maior ainda (porém maior só de espírito porque afinal o garoto estava ainda em infâncias). Da bermuda azul de beiradas sujismundas, com o impulso da mão que o arrancou para fora, viu o mundo uma minhoquinha pelada e fina, que Lucas acariciava enquanto olhava a pin-up devassa da tampa etílica. Cuidando do bem-estar próprio, Lucas não conseguia ser tal qual adulto nem em situação daquele tipo, que aliás costumava ser cada vez mais recorrente. O menino se afobava aos montes em gana prazerosa enquanto via à imagem da mulher, mas nunca conseguia ser brutal. Delicado, isso sim, com uma singeleza do tamanho de um mar -- o rito do menino, aliás, lembrava brincadeiras no mar, que a gente até se perde quando nela está, mas nunca perde atenção porque senão a correnteza leva. A pele se eriçava toda, por conta da força não do menino na coisa mas da coisa nela mesma, lembrando asfalto de rua mal cuidada -- parecia até, pra dizer a verdade, a rua em que Lucas morava, a mesma que por um momento crucial de mundo e tempo atritou-se junto a um carro em freios desvairados, trovejando assim no roçar do pneu com o chão. "É o pai, é o pai!" O menino amedrontado (sem nem saber direito o porquê, pois em verdade nenhum mal havia para a humanidade tal ato de carinho próprio) rasgou-se a juntar todas as tampinhas de cerveja, todas as belas e devassas mulheres que, do tamanho de uma tampa de cerveja, tanto entretiam seus seis-anos-quase-sete. Era tudo culpa desse tal medo sem motivo, porque afinal, pai que é bom, nada. Estava ainda em trabalho e só foi dar com os pés na pequena casa por volta das oito da noite, inclusive atrasando a janta. O saquinho ficou sobre o travesseiro, fazendo um pouco de volume, é verdade, mas nada muitíssimo perceptível. No dia seguinte seu conteúdo se espalhou mais uma vez pelo chão, assim como mais uma vez todo o rito de prazer se fez a única sensação da casa, ante tanta falta de tato neste mundo. Mas, durante a janta, pai mãe Lucas irmã em torno da mesa modesta de arroz feijão banana, sim, até durante a noite, que só assim se fortalece. A sala inteira, longe de calada, só tinha ouvidos para discussões tolas ou levianas. Nada muito sério, valha-me deus! É certo que o menino vez ou outra soltava impropérios irritantes e apimentava a relação árdua com a irmã, mas era também só por causa daquele medo já contado. Pra esquecer da mulher etílica, que por sua vez, porém em vão, serve como passatempo enquanto não se fazem valer os sonhos de esperança, diversão, pipoca e sorvete, com a trapezista de um circo que foi embora semana passada. Tinha belas pernas, aquela moça. Não tão belas quanto a brancura leitosa dos dentes, que se arregaçavam por detrás da boca opaca em batom escarlate. Lá no topo do círculo circense, no teto do colorido picadeiro, ela ia e voltava, ia e voltava, incessante, ir e vir, ir e vir, ir e vir e ir e vir e ir e vir e ah ah ahhh! Circo é rito.



Nenhum comentário:

Postar um comentário