sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Tudo acontece no último capítulo

A velha tecia
E via novela
O gato chegou
Pulou no novelo

A mocinha tornou-se malvada
A velha que olhava pro gato
Perdeu o fio da meada
Não mais teceu;
Não entendeu mais nada.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Su(l)co

Ele chegou e logo olhou pro balcão de metal riscado, bastante uso. Do balcão, sua mirada de imediato se focou nas mãos rechonchudas que tiram os últimos farelos, resíduos e pingos de algum dos muitos clientes que iam embora sem nem dizer boa-tarde. Das mãos ele foi subindo as pupilas bem de leve, caminhou todo o braço alaranjado, pulando entre as muitas pulseiras de contas coloridas, até chegar à boca fina, que disse em doçuras e mesuras:

- O que deseja, senhor?
- Hm... me veja uma sugestão do dia, por favor. E tem como a senhorita pedir para vir menos espuma? Da última vez veio quase um terço de espuma e eu fiquei mais uma vez de mãos abanando.

Ela virou-se de costas e esticou-se inteira procurando os ingredientes. A marca de sua calcinha aparecia por debaixo do vestido verde.

- Qual destes o senhor quer?
- O quê?
- O senhor quer seu copo de que cor?
- Isso importa?
- É claro. A cor é imprescindível. Muda tudo, simplesmente tudo, me disseram.

Ela, toda besta, vitrinava a prateleira de copos, todos de vidro, trezentos ême-éle, cada um em uma cor diferente. Ele, atônito, olhou o relógio de pulso e, vendo ter ainda algum tempinho sobrando, decidiu entrar no jogo dela.

- Quem te disse que a cor do copo importa tanto, se me permite perguntar?
- Um moço que veio aqui uma vez.
- Só isso? O moço vem aqui uma vez e você já acredita nele?
- Bom, na verdade ele veio aqui uma vez, a gente conversou no balcão... só depois ele disse isso.
- Já entendi tudo.
- Senhor, não pense coisa de mim, não! Ele não falava besteira, era só coisa bonita, cheia de palavras garbosas...
- E depois?
- A gente jantou junto e depois ele nunca mais apareceu.

Ela encarava séria, sem se abalar, enquanto se autohipnotizava passando os dedos pelas curvas dos copos.

- Então. Qual?
- Qual o quê?
- Qual cor, qual copo, homem! O senhor está meio burrico, hein.
- O quinto, da direita para a esquerda.
- O transparente?
- É.
- Achei que você era interessante.
- Não sou?
- As outras cores são tão mais alegres.
- São tão alegres mas enganam a gente de saber o que tem dentro.
- Ou quem sabe ajude a gente a gostar mais ainda do que a gente já sabe que tem dentro.
- Aí a gente começa a gostar de uma coisa que não é de verdade o que é, o que se vê. E que perde a graça quando a gente acaba vendo no transparente, se a gente se acostuma com o colorido demais. Aí a graça toda some de repente, vai embora e nem volta.
- O senhor  pode parar de indireta para cima de mim, que o senhor não sabe de nada da minha vida!

Ela, calada, pegou bruta o copo e descascou os frutos com raiva digna de cortar dedos. Bateu no velho liquidificador com respingos de açaí e desleixo, pondo fim a qualquer possibilidade de capricho e detalhe.

- Quanto de açúcar?
- Sem açúcar.
- Nem um tiquinho?
- Não.
-Certeza? Vai ficar azedo.
- Certeza.
- O senhor está de dieta? Tem adoçante também.
- Não estou de dieta não. Eu gosto assim, com o gosto puro do fruto.
- Entendi.

O suco ficou pronto e ela falava, falava que só. Já tinha até esquecido da birra que pegara de seu novo cliente. Foi bem o tempo de você tomar o copo todo, olhar no relógio, levantar do banco comprido e levar-se até o balcão do caixa, que se emoldurava num comichão de docinhos embalados.

- Tem paçoca?
- Essa aqui.
-Essa não.
- Por que? - Ela perguntou quase que em um desafio.
- Essa é ruim, tem açúcar demais e amendoim de menos. Obrigado.
- É verdade. A marca está mais para paçoca Paixão que paçoca Amor, não é?

Eles soltaram uma risada gostosa enquanto ela contava o troco e recontava achando estar errada quando na verdade estava tudo exatamente certo. Ele foi-se embora transparente, com as cores vivas dos frutos chacoalhando dentro de si, e já com ideia de voltar mais vezes, outras tardes de folga. Amor? Amor é polpa.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Convite

Me deixa
              Cultivar um pouco
              Esse jeito muito
- louco
              Que me insiste em
-enfrutecer

Vem junto
               Um pássaro sem nome
               As flores em leve fome
               O beijo no rosto
               (em horário marcado)
               A calmaria alegre
               Refletida nos ventos
- louquidão desroucada

Vem junto
Ô senhorinho
Da porta vizinha à minha
Tu bem sabes:
                      A colheita não se faz sozinha

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Trauma da infância

"Vovó, não entendo. Os seus bolos sempre queimam e os biscoitos do vovô são tão gostosos." A velha, embaraçada, jogava os cabelos para trás, fingia sorriso e emudecia. As crianças, agitadas, botavam mão em tudo. Olhavam as bonequinhas de porcelana trincando suas juntas e as fotografias destrincando as molduras. "Vovó, você é quantos anos mais velha que o vovô?" Os cabelos iam para trás de novo, enquanto ela respondia ser, na verdade, sete anos mais nova. O avô, na ponta do sofá, ria baixinho, provocativo. ALgumas horas mais tarde, enquanto a avó assistia a novela de olhos arregalados na poltrona de cetim e o avô cruzava palavras na cozinha, as crianças brincavam pela casa toda. Correram por trás da poltrona e lá se deu o ápice da história. 

"A vovó é careca!", elas gritavam, ao mesmo tempo que a velha cobria de novo a calvície do cocoruto com a franja branca e o velho, na cozinha, com todos seus cabelos grisalhos, soltava uma gargalhadinha lenta. No dia seguinte, o velho tomou seu café da manhã sozinho, assim como sozinho resmungava, pois a velha, que acordara cedo, se ocupava em revirar as prateleiras brancas da farmácia em busca de um bom tônico capilar.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Solitude

No meio do caminho tem um poeta
No meio da rua
No meio do mundo
Na meia furada
(Um poeta)

Poetas em todos os cantos
Canto de sabiá
Canto de esquina
Canto de olho
Na esguelha
No frio da orelha, um poeta

Mocinha que chora
Cebola que chora
Galinha que choca
Tortura de choque
E o poeta vagando entre tudo

Cecília no trem
É senhora gentil
Carlos na praça
É completo desconhecido

Nas ligações perdidas
Na preguiça do verso
No farol fechado
      farol lusitano
Na carol de qualquer caetano
Um poeta há de estar presente

Quem diria, quem desdirá?
Passei toda tarde em andanças
Cruzei com Haroldo e Thiago
Um aceno talvez para Pessoa

Vai saber, ninguém sabe
Um poeta é solitude
Solitudo - sobretudo - sobre todos

Ninguém conhece o rosto do poeta
Ser comum, ser de gosto
Desconhecida face do poeta
Disfarce de si mesmo
Que floresce
Letra a letra
(Lentamente.)

sábado, 8 de outubro de 2011

A eternidade

Do frio que assolara a despreparada cidade, como que por brincadeira de mau gosto, desde o início do dia, saiu na infância da tarde o sol matutino, atrasado e, por conseguinte, também atrapalhado. Enquanto o trânsito caótico de cada todo dia imperava a gesticulação paulistana, Cícera marchava seus passos típicos de quem não aceita a própria idade. Enfim o boné fuleiro que vestira desde de manhã tinha alguma serventia (ela sabia que teria), cobrindo os ralos fiapos sujos dos cabelos cor de acaju. Eram cabelos tão finos que lembravam os de recém-nascidos, tornando assim sua imagem cada vez mais antagônica consigo mesma, pois desacordavam o tipo de andar, o cabelo neném, as rugas na pele, o tamanho frágil das mãos e dos pés. Continuou sua andança até acabar o enorme quarteirão da avenida. O farol estava fechado para ela, que parou para esperar sua vez. Os carros transbordavam numa fila que não acabava jamais, todos em tons de prata e preto. Cícera esperava paciente olhando tudo com olhar de pára-brisas, mas estava sol ainda, como assim se prosseguiu.

Quem por ali passava via Cícera de pé diante dos carros e pensava "coitada da velha" ou então imaginava que nesse meio tempo ela pensava muito sobre muita coisa e o mundo todo. Nenhum carro lembrou-se de parar para a velha Cícera passar com seus passinhos de marcha. E ela, que nesse meio tempo não pensava em coisa alguma (não pensava em nada!) ficou lá, parada na esquina, o semáforo quebrado e os carros passando. Cícera ficou lá quietinha, um dos braços meio erguido segurando o ar, pois criança, pra andar na rua, tem sempre que andar de mãos dadas com um adulto.O semáforo ficou mesmo sem conserto e Cícera, dona Cícera, ficou lá sozinha, remeninando-se em vão. Para sempre --

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Memória da Ternura

Thiago escreve ternuras
No Rio, no Chile, na Amazônia
Entre grades, entre dia e noite
Entre o voltar do dia
No dia que vem

Thiago escreve ternuras e infâncias
Sente saudade dos pés nus
Sente falta de cada cor do dia

Thiago escreve ternura
Não ousa rimar coisa alguma
À tão companheira palavra
Ternura velha de guerra!
Ternura que nada teme
Nada tenta além do que se faz por si só
E faz por toda nossa gente

Thiago escreve às ternuras
Ao suor do meio-dia
Ao Zé, ao Carlos, à Bellinha
Thiago escreve ao povo que compartilha
Escreve ele desmenino para-todos
Só ternura descreve Thiago

sábado, 1 de outubro de 2011

Ême Ponto


O dia ainda não havia partido, mas estava quase, bem nos finalmentes. Os braços da mãe ardiam de força enquanto carregavam as muitas sacolas com pãozinho, queijo, maçãs, abacaxi, mangas e alguns litros de leite, o estoque para metade da semana. A filha, cuidadosa, segurava com as duas mãos o pacote com balas de goma e a sacola de sucrilhos, enquanto atentava os passantes, sorria aos cães e passava o olho pelas janelas das casas, no caminho de volta para casa. Como não tinha muitos assuntos com a mãe, inventara um jogo para distrair-se enquanto não chegava em casa, e brincava quieta, às vezes (raras vezes) soltando uma ou outra interjeição despercebida. Os pequenos sobradinhos eram quase todos recém-pintados, pois que uma onda de empregos aparecera na região, fazendo ser possível uma economia para a pintura das paredes. E Maria Teresa olhava a sequência de cores das jujubas e comparava com a das casinhas que passavam. Orgulhava-se de seu próprio jogo quando as cores batiam, mas então chegava a bala roxa e a brincadeira toda se estragava, pois que casa amarela, rosa, verde até vai, mas casa roxa é coisa de se encontrar vez ou outra e só. Aí entristecia, baixava o rosto, abria em silêncio o plástico das jujubas e caçava a roxa por entre as outras cores. Comia e pronto, acabava-se o problema do jogo, mas não do fato de estar ela comendo açúcar antes da janta. “Maria Teresa, sua teimosa! Quantas vezes tenho que te avisar sobre o doce antes de comer?” E ela respondia brava, meio para fugir do assunto meio por puro encasquetamento, sem nem parecer a menininha que era, que “não é Maria Teresa, que saco! É Ême Ponto Teresa, ou então só Teresa”. A mãe se preocupava sempre que a menina lembrava de soltar essa exigência, e com o tempo foi esquecendo do maria do nome da filha, porque afinal nenhuma mãe faz questão alguma de chamar a filha de Ême Ponto quando a opção Teresa é possível. 

As idas ao mercado eram rotineiras, muito parecidas entre si, mudando só o tipo de blusa, o tipo de poente e o tipo de tropeço. Às vezes, Teresa tinha que carregar uma sacola a mais ou a menos, de acordo com a dor nos braços da mãe, porém não era nada digno de fraquejar criança. Com a diferença de que não mais carregava o pacote de jujubas, pois a mãe, cansada de explicar aquilo que todos já sabemos, decidira levar as balas em uma de suas sacolas – isso quando não decidia abolir a cotidiana compra do doce. Mas teve uma semana que a mãe estava exausta, a cabeçorra planando por entre as lembranças de papeladas, os lembretes de documentos. Comprou goiaba, brócolis, mussarela, macarrão parafuso e latas de ervilhas. Esqueceu do leite mas acabou levando o pacotinho da filha. E, é óbvio!, nem reparou que, enquanto prendia a mão direita de Teresa, entrelaçada com força à sua, os dedinhos livres da mão esquerda apertavam o plástico transparente. Chegava até a fazer barulho, e talvez ela já tivesse percebido mas, num lapso de cérebro, esquecera que devia carregar aquilo em uma de suas sacolas. Teresa passou pela casa amarela e enfiou na boca, rápida como um gato caçando pássaros, a bala de correspondente cor. Rosa, verde, verde, amarela, azul, rosa, rosa, verde... os tapumes da casa sete, esta que antes era na mais crua cor, haviam sido retirados e a nova manicure que lá se instalara já tinha até fila formada. 

Um bando de senhoras carnavalescas e desbotadas com os cabelos prontos para se enruivescerem ou aloirarem, as unhas tortas dos pés clamando por alicates de cutícula e esmaltes, dos chamativos aos mais suaves, como se fosse questão de ordem mundial, o que as ridicularizava ainda mais. A casa era jeitosa, com mimos e caprichos na fachada. Ninguém sabe dizer como era antes da reforma, pois os altíssimos muros, esquizofrênicos, impediam qualquer vista, nem um piscar sequer. Depois, porém, estava feminina, mas não coerente às suas loucas frequentadoras. A garagem para dois carros tornara-se um pequeno jardim de violetas e azaleias, com espaço para um carro só, que já era mais do que suficiente para um lugar onde se chega à pé. A discreta placa, Doux Beauté, era só o que havia de brancura na parede impecavelmente roxa. Teresa comeu a jujuba roxa e pôde prosseguir a brincadeira,  em infantilidade compulsiva. Passou a noite sem fome e, ao deitar-se, prosseguiu acordada por causa do açúcar, ainda ouvindo em pensamentos a bronca da mãe que, depois do dia cansado, já margeava o sétimo sono.

Já alguns poucos dias iniciaram-se e findaram-se, quando a mãe pediu que Teresa fosse à banca da esquina atrás do jornal, que não ia ter tempo de ir ela mesma comprar, quase aliás não tinha sequer para lê-lo. Teresa nunca antes tinha saído de casa sem sincronizar o passo ao lado da mãe, mas pelo menos o caminho até a banca, isso sabia. Virou a esquina e entrou à direita na rua pequena, tão simplória que ainda se orgulhava dos próprios paralelepípedos. Sabia chegar à banca porque sempre passava por ela quando ia ao mercado. Sabia voltar da banca porque sempre passava por ela quando ia para casa contando as cores das casas. O jornal, enorme e destrambelhado, tapava um terço de seu rosto, que decerto se manchava de tinta preta, sujeira. A casa roxa passou lenta, chamativa, lembrando dos intentos de jujubas. Então voltou, junto aos passos de Teresa, que pisava para dentro. Emoldurada pelas sérias letras do jornal em preto branco e um ou outro cinza, lá estava a porta da manicure, que na verdade pouco importava. Era uma porta de vidro, bem escancarada, por onde passavam as velhas dondocas que da menina não recebiam grandes gracejos, pelo contrário. Mas, bem na borda, ingênuos, estavam todos os esmaltes, deitados em uma grande cesta bacante, sobre uma mesinha de um pé só. Todas as cores imagináveis e imaginantes, que as possíveis são muito-muito poucas. A menina não teve dúvidas, catou uma cor qualquer e pulou para a banca de jornal como se fosse ela toda um soluço, daqueles que tentam se segurar e, nisso, escancaram-se dentro da garganta. 

Chegou em casa com o coração arregalado, arfando o peito, e sofrendo-se, espremendo-se por dentro. A mãe nem reparou nada, Teresa por fora estava normalíssima como jornal de domingo. Por dentro, engasgava os medinhos próprios e apertava no suor das mãos o vidrinho pequeno de cor chamativa. O esmalte estava pela metade e parecia líquido em demasia, como se a manicure tivesse botado água para render mais, coisa nem um pouco improvável. Teresa fechou-se no quarto e pintou cada dedo com uma exatidão militar, com a impressão de que alguém brigaria com ela inteira, por dentro e por fora, caso errasse um tico, caso encostasse o canto dos dedos ou a ponta deles, que se explicitava por baixo das unhas roídas. Enquanto isso, a mãe preparava a janta na cozinha fria, mexia o molho de tomate sob a luz fria da lâmpada incandescente, que tirava o gosto da vista. De um berro, gritou que a menina descesse, "a comida está na mesa!" E a porta fechada servia de desculpa para a demora da menina. O armário entreaberto escancarava a prova de seu crime, mas não adiantaria nada fechá-lo: o cheiro de culpa esmaltada encapava todo o oxigênio do pequeno quarto cor de rosa, todo ao tipo menininha. Ela desceu com as mãos no bolso do casaco de moletom e fingiu nem ouvir o sermão da mãe, que concluíra, segundo a lógica do cotidiano, que a demora de Teresa se devesse a alguma bala de goma fora de hora, aquela chatice de sempre. "Quantas vezes já falei, bala antes da janta não pode, Maria Teresa?" "Quantas vezes já falei, Maria Teresa não. Ême Ponto. Ou só Teresa... achei que você já tinha se acostumado." Comeu rápida e largou um tanto no prato, ainda fresco. A mãe preocupada tentou puxar assuntinhos com a filha, que por sua vez puxava as mangas da blusa para além das pequenas mãos apertadas. "Filhota, você tá sentindo alguma coisa? Dor de cabeça, alguma coisa assim?" Teresa aquietou-se, prosseguiu no silêncio que, além de tudo, calava. As pernas gordinhas balançavam-se sem alcançar o chão, a mesa da cozinha sentia falta da voz estridente de criança na noite de jovens angústias. 

Teresa subiu rápida, com a desculpa de mimimi-vai-passar-sei-lá-o-quê-na-tevê. Os minúsculos pés faziam barulho a cada degrau, no que ela apertava mais e mais os dedos por dentro da palma da mão, as linhas charlatãs, vida amor e dinheiro, se espremendo junto, inválidas. Ligou a televisão e ajeitou as antenas com bombril velho. Olhava para as próprias mãos e de súbito começou a entender-se mais velha, num universo adulto que não pertenceria, unhas pintadas ou não, fato esse que não compreendia. Porque a idade presente sempre parece o ápice quando se exala juventude. A menina nem sabia da existência de desodorante, módis ou grandes modismos -- enlouquecedores modismos --, tinha ciência de que sua pequenez era o máximo de grandeza que podia no momento e assuficientava assim. Um esmalte nos dedos era coisa de gente curiosa, ela pensava, e não moda nem vontade de aparecer, ela mesma se auto-explicava. Pois se por acaso tinha alguém para ela se aparecer, ninguém o sabia, muito menos ela. 

Voltava do mercado com a mãe poucos dias depois e se preocupou em pegar muitas sacolas para esconder a tinta da ponta dos dedos. A bala de goma estava escondida nos braços fortes da mãe, que desde aquela janta ficara bem de olho na menina, talvez não do jeito mais certo ou mais acordado. Teresa, por causa dos cuidados maternos, ficava sempre do lado de dentro da calçada, nunca perto da rua, pois “vai que”. Uma das mãos, envolta na manga do casaquinho, entre os dedos da mãe, enquanto a outra mão estava erguida, um pouco de lado, tocando a textura das paredes e muros que passavam. Parecia calma, com ares até de bailarina, mas fazia uma comedida força (desproporcional ao que aparentava ser) no atrito entre as unhas e o relevo, forçando o descasque daquela cor que insistia em não sair. Quando olhou para o lado, percebeu não só que os dedos doíam, quase latejando, como que estava manchando de vermelho a impecável parede roxa da manicure, justo aquela que insistia em reprovar seus atos das mais imponentes maneiras possíveis. Como se as paredes da fachada sussurrassem maria teresa muitas vezes a cada instante. Teresa começou a chorar um chorinho mudo, que nem choro era porque se fazia só do abandonar-se das lágrimas, fraquejantes. Tirou a mão ardida num trisque triste e guardou no bolso, antes mesmo de parar para prestar atenção no que fizera só por medo da mãe que afinal talvez nem se importasse com o caso. O esmalte vermelho do dedo ainda estava lá em partes; as partes em que não estava, dava lugar aos respingos do sangue, resultando afinal na mesma cor de unhas que teria caso não ralasse os dedos na parede.

Chegaram em casa e Teresa subiu correndo a escadaria. Enfiou as mãos na cachoeira de água fria que rolava da pequena torneira do banheiro. O sangue seco se desencrustava das unhas e o jato d'água instigava mais e mais a vinda do sangue, lógica que ela por ser pequena nem percebia, mas sorria achando que o vermelho do esmalte estava indo embora, ralo abaixo, junto com aquela dor flagrosa – mas não estava. O relógio contou oito horas e da pequenina janela do banheiro, em cuja abertura cabiam somente os dois olhos e nada mais, Teresa podia ver as portas na casa roxa se trancando, o fim de mais um dia de trabalho. Da porta saiu uma meia dúzia de mulheres, todas elas funcionárias menos uma, idosa porém extravagante, que percebia-se claramente se tratar de uma cliente, quiçá das mais assíduas. As cinco mulheres ajeitavam as trancas e catavam seus passes de ônibus enquanto a senhora idosa ia embora, rapidíssima para sua idade. Virou a esquina do lado de lá enquanto espichava as mãos para obcecar-se pelas próprias unhas recém-pintadas. Teresa observava tudo, as mãos meio respingando pelo banheiro. Nem chegou a ouvir os berros da mãe lá embaixo, chamando para a janta, nem o ruído de seus passos cavalares escada acima, nem as batidas no banheiro. A porta se abriu num átimo os gritos da mãe, antes certos da teimosia das balas mais uma vez, transformou-se no baque de olhar pela primeira vez a menina, com rosto de anjo em moldura de sangue aguado. O choro da mãe virou abraço e lembrou Teresa que os machucados doíam tanto. A senhora idosa, cliente assídua, com certeza já havia chegado em casa, caso não houvesse tropeçado pelos altos e baixos da calçava enquanto botava olhos só nas unhas. A comida só não esfriava porque já era fria por natureza, e o vidro de esmalte mal fechado, dentro do armário, já havia exalado todo o mal-cheiro que podia. De resto, terminaram elas o abraço e continuaram chorando baixinho enquanto preparavam a gaze e os primeiros socorros para depois passarem a noite inteira juntas, a mãe e Maria Teresa, limpando o horror do banheiro vermelho no calor e fedor que exigia a janelinha aberta – sem sussuros escondidos.