segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Su(l)co

Ele chegou e logo olhou pro balcão de metal riscado, bastante uso. Do balcão, sua mirada de imediato se focou nas mãos rechonchudas que tiram os últimos farelos, resíduos e pingos de algum dos muitos clientes que iam embora sem nem dizer boa-tarde. Das mãos ele foi subindo as pupilas bem de leve, caminhou todo o braço alaranjado, pulando entre as muitas pulseiras de contas coloridas, até chegar à boca fina, que disse em doçuras e mesuras:

- O que deseja, senhor?
- Hm... me veja uma sugestão do dia, por favor. E tem como a senhorita pedir para vir menos espuma? Da última vez veio quase um terço de espuma e eu fiquei mais uma vez de mãos abanando.

Ela virou-se de costas e esticou-se inteira procurando os ingredientes. A marca de sua calcinha aparecia por debaixo do vestido verde.

- Qual destes o senhor quer?
- O quê?
- O senhor quer seu copo de que cor?
- Isso importa?
- É claro. A cor é imprescindível. Muda tudo, simplesmente tudo, me disseram.

Ela, toda besta, vitrinava a prateleira de copos, todos de vidro, trezentos ême-éle, cada um em uma cor diferente. Ele, atônito, olhou o relógio de pulso e, vendo ter ainda algum tempinho sobrando, decidiu entrar no jogo dela.

- Quem te disse que a cor do copo importa tanto, se me permite perguntar?
- Um moço que veio aqui uma vez.
- Só isso? O moço vem aqui uma vez e você já acredita nele?
- Bom, na verdade ele veio aqui uma vez, a gente conversou no balcão... só depois ele disse isso.
- Já entendi tudo.
- Senhor, não pense coisa de mim, não! Ele não falava besteira, era só coisa bonita, cheia de palavras garbosas...
- E depois?
- A gente jantou junto e depois ele nunca mais apareceu.

Ela encarava séria, sem se abalar, enquanto se autohipnotizava passando os dedos pelas curvas dos copos.

- Então. Qual?
- Qual o quê?
- Qual cor, qual copo, homem! O senhor está meio burrico, hein.
- O quinto, da direita para a esquerda.
- O transparente?
- É.
- Achei que você era interessante.
- Não sou?
- As outras cores são tão mais alegres.
- São tão alegres mas enganam a gente de saber o que tem dentro.
- Ou quem sabe ajude a gente a gostar mais ainda do que a gente já sabe que tem dentro.
- Aí a gente começa a gostar de uma coisa que não é de verdade o que é, o que se vê. E que perde a graça quando a gente acaba vendo no transparente, se a gente se acostuma com o colorido demais. Aí a graça toda some de repente, vai embora e nem volta.
- O senhor  pode parar de indireta para cima de mim, que o senhor não sabe de nada da minha vida!

Ela, calada, pegou bruta o copo e descascou os frutos com raiva digna de cortar dedos. Bateu no velho liquidificador com respingos de açaí e desleixo, pondo fim a qualquer possibilidade de capricho e detalhe.

- Quanto de açúcar?
- Sem açúcar.
- Nem um tiquinho?
- Não.
-Certeza? Vai ficar azedo.
- Certeza.
- O senhor está de dieta? Tem adoçante também.
- Não estou de dieta não. Eu gosto assim, com o gosto puro do fruto.
- Entendi.

O suco ficou pronto e ela falava, falava que só. Já tinha até esquecido da birra que pegara de seu novo cliente. Foi bem o tempo de você tomar o copo todo, olhar no relógio, levantar do banco comprido e levar-se até o balcão do caixa, que se emoldurava num comichão de docinhos embalados.

- Tem paçoca?
- Essa aqui.
-Essa não.
- Por que? - Ela perguntou quase que em um desafio.
- Essa é ruim, tem açúcar demais e amendoim de menos. Obrigado.
- É verdade. A marca está mais para paçoca Paixão que paçoca Amor, não é?

Eles soltaram uma risada gostosa enquanto ela contava o troco e recontava achando estar errada quando na verdade estava tudo exatamente certo. Ele foi-se embora transparente, com as cores vivas dos frutos chacoalhando dentro de si, e já com ideia de voltar mais vezes, outras tardes de folga. Amor? Amor é polpa.

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