domingo, 29 de setembro de 2013

O poema infinito

Dentro da folha de papel não constavam
meus pensamentos
ou nada que é meu de direito.
Nada cabe
naquele espaço tão branco que enjoa
e sai voando com ventos quaisquer,
seja os do norte, os do amor
da morte ou do passado,
os ventos que doem no ar.

Na folha de papel havia palavras
aquilo que não se diz o que é
o indescritível.
Havia palavras e delas voariam
flores e colmeias
um par de ideias abraçadas,
não fosse o cárcere inserido na folha
que geme seus versos
e se atrofia em si mesma.

Não cabe mais nada
neste folha de papel.

Porque ela, fantasmagórica
e concreta folha
busca o couro de si
se retroalimenta,
devora.

Nunca haverá um ser humano
dentro do poema.
Nele já transitam,
não entre fibras, moldes, cortes
não dentro de tinteiros e lápis
menos ainda através de poentes
ou belezas de mulher,
mas trespassam, entre as curvas das letras
e os sons da leitura em voz baixa
os traços cranianos de mais um poema
certeiro, encaixado
nos espaços brancos da folha de papel
ainda que os tipos se espremam
e que não haja mais margens.

Um poema sem cores
completamente material
soprando os narizes
que encostam na folha de papel
um bafo úmido,
um desconcerto,
clamando por releituras
do verso primeiro e do oculto.

E dentro deste poema,
ainda mais escondido
se guarda um novo poema,
e outro.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

As portas do túmulo

Quando morri não houve festa
mas também não houve anjos, não houve fogo
não ouvi barulhos
sequer soluços
e eu,
eu nem chorei de volta.

Bati os pés,
despi o tronco,
mas aquela capela torta
filha das catedrais
calava a tudo
cortava os pulmões
em pedaços de célula morta.
Envolta em madeira e marcas brilhantes,
a capela dormia em mim
e me sufocava ao sono profundo.

Quando morri não houve sofá
não houve poltrona nem comes e bebes
não teve flores em forma de auréola.
Não houve aurora nem entardecer
nem mesmo um céu aconteceu.

Rezar para eternizar, diziam as vozes
dos bispos inexistentes
líquidos, enterrados
sulco entre as vigas
desta minúscula capela.
Sem vitrais, sem desejos
sem prazeres e segredos
sem ornamentos.
Sequer um pequeno confessionário.

E também sem pessoas
nesta última capela
a final de minha vida
onde os bispos rezam, sussurrando
encrustados em paredes de terra
sob os pés de alguns amigos,
não muitos,
que aos prantos pisam meu teto.

Eu não ouço mais nada.
A arquitetura desta capela não permite.
Estendida no altar, as costas ao chão
imito a imagem de Maria
e dou a luz eterna
ao mais eterno nada.
Eu já não existo mais.

domingo, 15 de setembro de 2013

Barreiras aos olhos

os óculos coloridos
do pequeno menino
franzino e caolho
brilham no abajur
do quarto da mamãe.

mas como pode
brilhar, meu deus
se seu olho esquerdo
enfermo
está tampado em fibra bege
de mini-pirata
da farmácia
e o olho direito
imerso em remelas
cochila na tarde chata
de sexta-feira.

brilha?
chora
enquanto dorme.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Caravelas

Caravelas coloridas nos quadros
não são as mesmas da coroa real
real de verdade, exata.

As caravelas, desgastadas em trajeto pelo Atlântico,
as caravelas tomaram-me tudo
romperam meus ligamentos
para construir pontes invisíveis
por onde passavam o brilho dourado
e o gosto marrom, quase preto
do cheiro amargo que a todos eles esquenta.

As caravelas me levaram
minhas luvas de cozinha
a cozinha que eu não tinha
e já sei que não vou ter.
Levaram as perspectivas, toda a autonomia
e também as economias
que eu mal sabia ter,
só levava comigo.

Causaram-me dores,
causaram-me fome
e, depois, quando desvalida
e tonta por tabelas,
rasgaram-me inteira até o fim das pernas
afundando na mata densa e inóspita
que não pertencia a
nenhum daqueles velhos barbados nas cores das nuvens
mais brancos que o branco
do coco, do santo.

Ah, o santo.
Onde é que os meus foram parar?
As caravelas,
no mar desdentado,
levaram de tudo
e levaram-me toda
depois de fraca, doente e já morta
por pedaços de terra
até que toda minha crença
se desmanchasse
nas águas fascinantes desse mar
como se fosse uma folha de papel.

E, no fim, tanto faz
e, bem, tanto fez.
A folha pouco importa
e seus escritos menos ainda.
É como se em mim morresse uma parte
que tão mas tão importante...
não sei sequer lê-la
nesta língua que não é minha.

O que sou ou que fui
o que quis e desquis
o que fiz:
talvez
o maior segredo do universo.

domingo, 1 de setembro de 2013

A deformação do tempo

Esta lareira
que bem me serviu no ano passado
já não serve mais.
Está suja esta lareira
suja e lotada de cinzas
sobre tudo aquilo que queimei.

Meus pés escondidos, meus pais,

o patinho de borracha que ganhei de meu avô,
os bilhetes de amor
cuja letra garranchada
ignorando a pauta das linhas
voava por dentro da folha,
a folha que agora é cinza,
um monte de cinzas
esparramado na lareira
que nem mais me esquenta.

Não me serve a lareira,

nem meus pais,
nem a sola do sapato
que de tão velho nem chegou
a ser mencionado,
os amores antigos já não bastam
e sequer voam o suficiente,
na verdade não saem mais do chão
esses amores acrófobos,
hipocondríacos.
Não me serve mais nada.

O patinho de borracha

que lembrava meu avô
derreteu na labareda
e, enquanto derretia,
deformando as feições fabricadas
de pato feliz,
parecia chorar lágrimas de meu-deus
as lágrimas que não chorei
mas ah
mais do que nunca as sentia.