sábado, 17 de dezembro de 2011

Sono leve

Nas noites de dezembro
Durmo tarde
Fecho os olhos
Apago
E pago meu sono à vista

Nas noites minha cidade
Pelos cantos dorme pouco
Dança mas está com sono
Com olhos em pisca-pisca
Madrugada na Paulista

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Poente

Quando o céu declama
Desmaia, desmama
Parece que o mundo desanda
No túnel da Doutor Arnaldo
Onde o rosto doura
O falso amarelo dura
Sol paulista feito lâmpada
Sol que exclama merchandising

Quando o túnel acaba
Na boca da nova avenida
O show esgotou
O sol escondeu

O dia se finda no caos
Sem os ritos do parto
Sem a lenta rotina do cais.

sábado, 12 de novembro de 2011

Tempos de Morangos

Há tempos
que penso
no tempo

O tempo que foi
já não tenho
há um tanto de tempo
para trás

O tempo que vem
desconheço
nunca tive
tampouco vejo
(nem mesmo um beijo)

O tempo que vai
                         vem
temperamento de trem
tempero de vó

Dar tempo
ao tempo
é tontice

Se atenta
a dar tempo
ao tentar

Se atenta
a dar tempo
ao ter paz

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Pernas finas

Naquela época, vivíamos São Paulo. Conseguíamos despontar sorriso enquanto a cidade crescia. Me lembro bem, e acho que era daquele tipo de coisa boa com gosto de maçã fresca que algum dia alguém botou na minha mão. Mas só acho -- certeza eu prefiro não ter, pois onde já se viu querer ter certeza de qualquer coisa se se é negro, se se é pobre? Isso é o que eu ouvia pelos entreolhares de orelhas pelas calçadas apinhadas de gente. Negro, pobre e de saias? Pior ainda, é o que diziam, resmungando que sou mal-educado ou então louco de pedra. Eu ficava quieto no meu canto, nem ligava, que senão deixava de ver minhas crianças, coisa que importava mais, valia o dia quase todo. 

As crianças tinham nome de estrangeiro, apesar da carinha dessa terra aqui. Eu mantinha-me variando, do nome macho que tivera de pequeno ao nome ensaiado que era naquela época, e que prossigo sendo até hoje. Antes tinha nome digno, com glamú de gente rica, mas pra quê, eu me perguntava, se a gente vira coisa jogada por aí e ninguém de nada chama a gente. Minhas crianças, essas sim me chamavam, fosse o nome que fosse -- o nome que era.

No meio a tarde, em ponteiro ajustadíssimo, tocava o sinal alto que todo dia todo dia me acordava da calçada torta. As crianças gritavam em torno de uma bola meio murcha da modesta quadra da escola amarela. O muro era baixo, de finas grades sem ponta, praticamente ingênuo. Lá eu me debruçava para assistir o exímio futebol, tão mas tão levado a sério. As trancinhas dançavam das pequenas cabeças e as chuteiras baratas gastavam solado. O sinal soava de novo, os sorrisos meninos acenavam exclamações de meu nome. Minhas pernas fracas das desventuras esqueléticas mantinham-me junto ao muro até que a última criança voltasse à sala de aula.

Hoje, o medo da cidade grande cresceu os muros amarelos da escola e minhas crianças vão se erguendo com tempinho, sem que eu as veja. Aliás eu, em compensação, continuo na esma merda -- agora, porém, numa saia nova que as crianças me arranjaram sem saber se estava certo ou não, saia esta de bordados, até os calcanhares, toda branca. Me faz até parecer santa.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Histórias de trem

Abriram-se as portas rudes e o trem lotou. O casal, com seus dois molecotes de cinco anos não mais, equilibrou-se de pé junto a um dos canos do vagão. Na cadeira, um velho metido a engraçado puxou assunto com os pequenos, com os quais igualava altura:

- Qual o seu nome?
- Gabriel.
- Gabriel é um nome bonito. Quantos anos você tem?
- Cinco.
- Há quanto tempo você se chama Gabriel?

O menino, atônito, levou a mão ao muito fino lábio e pensou. O irmão, sussurando, salvou sua honra.
- Cinco.

O velho olhou as crianças, olhou o casal e disse repentino:
- Sexo é mentira.

Claro que os meninos não entenderam nada, assim como os pais, que ficaram um tempo pensando antes de soltar a voz novamente.
- Então os dezoito irmãos desses meninos são tudo mentira!, eles responderam achando graça.
- Vinte filhos?
- Vinte. E o senhor, quantos teve?
- Doze. Mas um morreu. Um casal de enteados também morreu. Mas uma era vagabunda e o outro era ladrão. Tinha é que morrer mesmo.

Abriram-se as portas rudes mas pouca gente entrou dessa vez, que era uma estação um pouco morta. Eu, em compensação, saí do trem. Subi as escadas da plataforma um pouco confusa, um pouco brava, com a impressão de que a gente não é mentira coisa nenhuma.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Tudo acontece no último capítulo

A velha tecia
E via novela
O gato chegou
Pulou no novelo

A mocinha tornou-se malvada
A velha que olhava pro gato
Perdeu o fio da meada
Não mais teceu;
Não entendeu mais nada.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Su(l)co

Ele chegou e logo olhou pro balcão de metal riscado, bastante uso. Do balcão, sua mirada de imediato se focou nas mãos rechonchudas que tiram os últimos farelos, resíduos e pingos de algum dos muitos clientes que iam embora sem nem dizer boa-tarde. Das mãos ele foi subindo as pupilas bem de leve, caminhou todo o braço alaranjado, pulando entre as muitas pulseiras de contas coloridas, até chegar à boca fina, que disse em doçuras e mesuras:

- O que deseja, senhor?
- Hm... me veja uma sugestão do dia, por favor. E tem como a senhorita pedir para vir menos espuma? Da última vez veio quase um terço de espuma e eu fiquei mais uma vez de mãos abanando.

Ela virou-se de costas e esticou-se inteira procurando os ingredientes. A marca de sua calcinha aparecia por debaixo do vestido verde.

- Qual destes o senhor quer?
- O quê?
- O senhor quer seu copo de que cor?
- Isso importa?
- É claro. A cor é imprescindível. Muda tudo, simplesmente tudo, me disseram.

Ela, toda besta, vitrinava a prateleira de copos, todos de vidro, trezentos ême-éle, cada um em uma cor diferente. Ele, atônito, olhou o relógio de pulso e, vendo ter ainda algum tempinho sobrando, decidiu entrar no jogo dela.

- Quem te disse que a cor do copo importa tanto, se me permite perguntar?
- Um moço que veio aqui uma vez.
- Só isso? O moço vem aqui uma vez e você já acredita nele?
- Bom, na verdade ele veio aqui uma vez, a gente conversou no balcão... só depois ele disse isso.
- Já entendi tudo.
- Senhor, não pense coisa de mim, não! Ele não falava besteira, era só coisa bonita, cheia de palavras garbosas...
- E depois?
- A gente jantou junto e depois ele nunca mais apareceu.

Ela encarava séria, sem se abalar, enquanto se autohipnotizava passando os dedos pelas curvas dos copos.

- Então. Qual?
- Qual o quê?
- Qual cor, qual copo, homem! O senhor está meio burrico, hein.
- O quinto, da direita para a esquerda.
- O transparente?
- É.
- Achei que você era interessante.
- Não sou?
- As outras cores são tão mais alegres.
- São tão alegres mas enganam a gente de saber o que tem dentro.
- Ou quem sabe ajude a gente a gostar mais ainda do que a gente já sabe que tem dentro.
- Aí a gente começa a gostar de uma coisa que não é de verdade o que é, o que se vê. E que perde a graça quando a gente acaba vendo no transparente, se a gente se acostuma com o colorido demais. Aí a graça toda some de repente, vai embora e nem volta.
- O senhor  pode parar de indireta para cima de mim, que o senhor não sabe de nada da minha vida!

Ela, calada, pegou bruta o copo e descascou os frutos com raiva digna de cortar dedos. Bateu no velho liquidificador com respingos de açaí e desleixo, pondo fim a qualquer possibilidade de capricho e detalhe.

- Quanto de açúcar?
- Sem açúcar.
- Nem um tiquinho?
- Não.
-Certeza? Vai ficar azedo.
- Certeza.
- O senhor está de dieta? Tem adoçante também.
- Não estou de dieta não. Eu gosto assim, com o gosto puro do fruto.
- Entendi.

O suco ficou pronto e ela falava, falava que só. Já tinha até esquecido da birra que pegara de seu novo cliente. Foi bem o tempo de você tomar o copo todo, olhar no relógio, levantar do banco comprido e levar-se até o balcão do caixa, que se emoldurava num comichão de docinhos embalados.

- Tem paçoca?
- Essa aqui.
-Essa não.
- Por que? - Ela perguntou quase que em um desafio.
- Essa é ruim, tem açúcar demais e amendoim de menos. Obrigado.
- É verdade. A marca está mais para paçoca Paixão que paçoca Amor, não é?

Eles soltaram uma risada gostosa enquanto ela contava o troco e recontava achando estar errada quando na verdade estava tudo exatamente certo. Ele foi-se embora transparente, com as cores vivas dos frutos chacoalhando dentro de si, e já com ideia de voltar mais vezes, outras tardes de folga. Amor? Amor é polpa.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Convite

Me deixa
              Cultivar um pouco
              Esse jeito muito
- louco
              Que me insiste em
-enfrutecer

Vem junto
               Um pássaro sem nome
               As flores em leve fome
               O beijo no rosto
               (em horário marcado)
               A calmaria alegre
               Refletida nos ventos
- louquidão desroucada

Vem junto
Ô senhorinho
Da porta vizinha à minha
Tu bem sabes:
                      A colheita não se faz sozinha

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Trauma da infância

"Vovó, não entendo. Os seus bolos sempre queimam e os biscoitos do vovô são tão gostosos." A velha, embaraçada, jogava os cabelos para trás, fingia sorriso e emudecia. As crianças, agitadas, botavam mão em tudo. Olhavam as bonequinhas de porcelana trincando suas juntas e as fotografias destrincando as molduras. "Vovó, você é quantos anos mais velha que o vovô?" Os cabelos iam para trás de novo, enquanto ela respondia ser, na verdade, sete anos mais nova. O avô, na ponta do sofá, ria baixinho, provocativo. ALgumas horas mais tarde, enquanto a avó assistia a novela de olhos arregalados na poltrona de cetim e o avô cruzava palavras na cozinha, as crianças brincavam pela casa toda. Correram por trás da poltrona e lá se deu o ápice da história. 

"A vovó é careca!", elas gritavam, ao mesmo tempo que a velha cobria de novo a calvície do cocoruto com a franja branca e o velho, na cozinha, com todos seus cabelos grisalhos, soltava uma gargalhadinha lenta. No dia seguinte, o velho tomou seu café da manhã sozinho, assim como sozinho resmungava, pois a velha, que acordara cedo, se ocupava em revirar as prateleiras brancas da farmácia em busca de um bom tônico capilar.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Solitude

No meio do caminho tem um poeta
No meio da rua
No meio do mundo
Na meia furada
(Um poeta)

Poetas em todos os cantos
Canto de sabiá
Canto de esquina
Canto de olho
Na esguelha
No frio da orelha, um poeta

Mocinha que chora
Cebola que chora
Galinha que choca
Tortura de choque
E o poeta vagando entre tudo

Cecília no trem
É senhora gentil
Carlos na praça
É completo desconhecido

Nas ligações perdidas
Na preguiça do verso
No farol fechado
      farol lusitano
Na carol de qualquer caetano
Um poeta há de estar presente

Quem diria, quem desdirá?
Passei toda tarde em andanças
Cruzei com Haroldo e Thiago
Um aceno talvez para Pessoa

Vai saber, ninguém sabe
Um poeta é solitude
Solitudo - sobretudo - sobre todos

Ninguém conhece o rosto do poeta
Ser comum, ser de gosto
Desconhecida face do poeta
Disfarce de si mesmo
Que floresce
Letra a letra
(Lentamente.)

sábado, 8 de outubro de 2011

A eternidade

Do frio que assolara a despreparada cidade, como que por brincadeira de mau gosto, desde o início do dia, saiu na infância da tarde o sol matutino, atrasado e, por conseguinte, também atrapalhado. Enquanto o trânsito caótico de cada todo dia imperava a gesticulação paulistana, Cícera marchava seus passos típicos de quem não aceita a própria idade. Enfim o boné fuleiro que vestira desde de manhã tinha alguma serventia (ela sabia que teria), cobrindo os ralos fiapos sujos dos cabelos cor de acaju. Eram cabelos tão finos que lembravam os de recém-nascidos, tornando assim sua imagem cada vez mais antagônica consigo mesma, pois desacordavam o tipo de andar, o cabelo neném, as rugas na pele, o tamanho frágil das mãos e dos pés. Continuou sua andança até acabar o enorme quarteirão da avenida. O farol estava fechado para ela, que parou para esperar sua vez. Os carros transbordavam numa fila que não acabava jamais, todos em tons de prata e preto. Cícera esperava paciente olhando tudo com olhar de pára-brisas, mas estava sol ainda, como assim se prosseguiu.

Quem por ali passava via Cícera de pé diante dos carros e pensava "coitada da velha" ou então imaginava que nesse meio tempo ela pensava muito sobre muita coisa e o mundo todo. Nenhum carro lembrou-se de parar para a velha Cícera passar com seus passinhos de marcha. E ela, que nesse meio tempo não pensava em coisa alguma (não pensava em nada!) ficou lá, parada na esquina, o semáforo quebrado e os carros passando. Cícera ficou lá quietinha, um dos braços meio erguido segurando o ar, pois criança, pra andar na rua, tem sempre que andar de mãos dadas com um adulto.O semáforo ficou mesmo sem conserto e Cícera, dona Cícera, ficou lá sozinha, remeninando-se em vão. Para sempre --

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Memória da Ternura

Thiago escreve ternuras
No Rio, no Chile, na Amazônia
Entre grades, entre dia e noite
Entre o voltar do dia
No dia que vem

Thiago escreve ternuras e infâncias
Sente saudade dos pés nus
Sente falta de cada cor do dia

Thiago escreve ternura
Não ousa rimar coisa alguma
À tão companheira palavra
Ternura velha de guerra!
Ternura que nada teme
Nada tenta além do que se faz por si só
E faz por toda nossa gente

Thiago escreve às ternuras
Ao suor do meio-dia
Ao Zé, ao Carlos, à Bellinha
Thiago escreve ao povo que compartilha
Escreve ele desmenino para-todos
Só ternura descreve Thiago

sábado, 1 de outubro de 2011

Ême Ponto


O dia ainda não havia partido, mas estava quase, bem nos finalmentes. Os braços da mãe ardiam de força enquanto carregavam as muitas sacolas com pãozinho, queijo, maçãs, abacaxi, mangas e alguns litros de leite, o estoque para metade da semana. A filha, cuidadosa, segurava com as duas mãos o pacote com balas de goma e a sacola de sucrilhos, enquanto atentava os passantes, sorria aos cães e passava o olho pelas janelas das casas, no caminho de volta para casa. Como não tinha muitos assuntos com a mãe, inventara um jogo para distrair-se enquanto não chegava em casa, e brincava quieta, às vezes (raras vezes) soltando uma ou outra interjeição despercebida. Os pequenos sobradinhos eram quase todos recém-pintados, pois que uma onda de empregos aparecera na região, fazendo ser possível uma economia para a pintura das paredes. E Maria Teresa olhava a sequência de cores das jujubas e comparava com a das casinhas que passavam. Orgulhava-se de seu próprio jogo quando as cores batiam, mas então chegava a bala roxa e a brincadeira toda se estragava, pois que casa amarela, rosa, verde até vai, mas casa roxa é coisa de se encontrar vez ou outra e só. Aí entristecia, baixava o rosto, abria em silêncio o plástico das jujubas e caçava a roxa por entre as outras cores. Comia e pronto, acabava-se o problema do jogo, mas não do fato de estar ela comendo açúcar antes da janta. “Maria Teresa, sua teimosa! Quantas vezes tenho que te avisar sobre o doce antes de comer?” E ela respondia brava, meio para fugir do assunto meio por puro encasquetamento, sem nem parecer a menininha que era, que “não é Maria Teresa, que saco! É Ême Ponto Teresa, ou então só Teresa”. A mãe se preocupava sempre que a menina lembrava de soltar essa exigência, e com o tempo foi esquecendo do maria do nome da filha, porque afinal nenhuma mãe faz questão alguma de chamar a filha de Ême Ponto quando a opção Teresa é possível. 

As idas ao mercado eram rotineiras, muito parecidas entre si, mudando só o tipo de blusa, o tipo de poente e o tipo de tropeço. Às vezes, Teresa tinha que carregar uma sacola a mais ou a menos, de acordo com a dor nos braços da mãe, porém não era nada digno de fraquejar criança. Com a diferença de que não mais carregava o pacote de jujubas, pois a mãe, cansada de explicar aquilo que todos já sabemos, decidira levar as balas em uma de suas sacolas – isso quando não decidia abolir a cotidiana compra do doce. Mas teve uma semana que a mãe estava exausta, a cabeçorra planando por entre as lembranças de papeladas, os lembretes de documentos. Comprou goiaba, brócolis, mussarela, macarrão parafuso e latas de ervilhas. Esqueceu do leite mas acabou levando o pacotinho da filha. E, é óbvio!, nem reparou que, enquanto prendia a mão direita de Teresa, entrelaçada com força à sua, os dedinhos livres da mão esquerda apertavam o plástico transparente. Chegava até a fazer barulho, e talvez ela já tivesse percebido mas, num lapso de cérebro, esquecera que devia carregar aquilo em uma de suas sacolas. Teresa passou pela casa amarela e enfiou na boca, rápida como um gato caçando pássaros, a bala de correspondente cor. Rosa, verde, verde, amarela, azul, rosa, rosa, verde... os tapumes da casa sete, esta que antes era na mais crua cor, haviam sido retirados e a nova manicure que lá se instalara já tinha até fila formada. 

Um bando de senhoras carnavalescas e desbotadas com os cabelos prontos para se enruivescerem ou aloirarem, as unhas tortas dos pés clamando por alicates de cutícula e esmaltes, dos chamativos aos mais suaves, como se fosse questão de ordem mundial, o que as ridicularizava ainda mais. A casa era jeitosa, com mimos e caprichos na fachada. Ninguém sabe dizer como era antes da reforma, pois os altíssimos muros, esquizofrênicos, impediam qualquer vista, nem um piscar sequer. Depois, porém, estava feminina, mas não coerente às suas loucas frequentadoras. A garagem para dois carros tornara-se um pequeno jardim de violetas e azaleias, com espaço para um carro só, que já era mais do que suficiente para um lugar onde se chega à pé. A discreta placa, Doux Beauté, era só o que havia de brancura na parede impecavelmente roxa. Teresa comeu a jujuba roxa e pôde prosseguir a brincadeira,  em infantilidade compulsiva. Passou a noite sem fome e, ao deitar-se, prosseguiu acordada por causa do açúcar, ainda ouvindo em pensamentos a bronca da mãe que, depois do dia cansado, já margeava o sétimo sono.

Já alguns poucos dias iniciaram-se e findaram-se, quando a mãe pediu que Teresa fosse à banca da esquina atrás do jornal, que não ia ter tempo de ir ela mesma comprar, quase aliás não tinha sequer para lê-lo. Teresa nunca antes tinha saído de casa sem sincronizar o passo ao lado da mãe, mas pelo menos o caminho até a banca, isso sabia. Virou a esquina e entrou à direita na rua pequena, tão simplória que ainda se orgulhava dos próprios paralelepípedos. Sabia chegar à banca porque sempre passava por ela quando ia ao mercado. Sabia voltar da banca porque sempre passava por ela quando ia para casa contando as cores das casas. O jornal, enorme e destrambelhado, tapava um terço de seu rosto, que decerto se manchava de tinta preta, sujeira. A casa roxa passou lenta, chamativa, lembrando dos intentos de jujubas. Então voltou, junto aos passos de Teresa, que pisava para dentro. Emoldurada pelas sérias letras do jornal em preto branco e um ou outro cinza, lá estava a porta da manicure, que na verdade pouco importava. Era uma porta de vidro, bem escancarada, por onde passavam as velhas dondocas que da menina não recebiam grandes gracejos, pelo contrário. Mas, bem na borda, ingênuos, estavam todos os esmaltes, deitados em uma grande cesta bacante, sobre uma mesinha de um pé só. Todas as cores imagináveis e imaginantes, que as possíveis são muito-muito poucas. A menina não teve dúvidas, catou uma cor qualquer e pulou para a banca de jornal como se fosse ela toda um soluço, daqueles que tentam se segurar e, nisso, escancaram-se dentro da garganta. 

Chegou em casa com o coração arregalado, arfando o peito, e sofrendo-se, espremendo-se por dentro. A mãe nem reparou nada, Teresa por fora estava normalíssima como jornal de domingo. Por dentro, engasgava os medinhos próprios e apertava no suor das mãos o vidrinho pequeno de cor chamativa. O esmalte estava pela metade e parecia líquido em demasia, como se a manicure tivesse botado água para render mais, coisa nem um pouco improvável. Teresa fechou-se no quarto e pintou cada dedo com uma exatidão militar, com a impressão de que alguém brigaria com ela inteira, por dentro e por fora, caso errasse um tico, caso encostasse o canto dos dedos ou a ponta deles, que se explicitava por baixo das unhas roídas. Enquanto isso, a mãe preparava a janta na cozinha fria, mexia o molho de tomate sob a luz fria da lâmpada incandescente, que tirava o gosto da vista. De um berro, gritou que a menina descesse, "a comida está na mesa!" E a porta fechada servia de desculpa para a demora da menina. O armário entreaberto escancarava a prova de seu crime, mas não adiantaria nada fechá-lo: o cheiro de culpa esmaltada encapava todo o oxigênio do pequeno quarto cor de rosa, todo ao tipo menininha. Ela desceu com as mãos no bolso do casaco de moletom e fingiu nem ouvir o sermão da mãe, que concluíra, segundo a lógica do cotidiano, que a demora de Teresa se devesse a alguma bala de goma fora de hora, aquela chatice de sempre. "Quantas vezes já falei, bala antes da janta não pode, Maria Teresa?" "Quantas vezes já falei, Maria Teresa não. Ême Ponto. Ou só Teresa... achei que você já tinha se acostumado." Comeu rápida e largou um tanto no prato, ainda fresco. A mãe preocupada tentou puxar assuntinhos com a filha, que por sua vez puxava as mangas da blusa para além das pequenas mãos apertadas. "Filhota, você tá sentindo alguma coisa? Dor de cabeça, alguma coisa assim?" Teresa aquietou-se, prosseguiu no silêncio que, além de tudo, calava. As pernas gordinhas balançavam-se sem alcançar o chão, a mesa da cozinha sentia falta da voz estridente de criança na noite de jovens angústias. 

Teresa subiu rápida, com a desculpa de mimimi-vai-passar-sei-lá-o-quê-na-tevê. Os minúsculos pés faziam barulho a cada degrau, no que ela apertava mais e mais os dedos por dentro da palma da mão, as linhas charlatãs, vida amor e dinheiro, se espremendo junto, inválidas. Ligou a televisão e ajeitou as antenas com bombril velho. Olhava para as próprias mãos e de súbito começou a entender-se mais velha, num universo adulto que não pertenceria, unhas pintadas ou não, fato esse que não compreendia. Porque a idade presente sempre parece o ápice quando se exala juventude. A menina nem sabia da existência de desodorante, módis ou grandes modismos -- enlouquecedores modismos --, tinha ciência de que sua pequenez era o máximo de grandeza que podia no momento e assuficientava assim. Um esmalte nos dedos era coisa de gente curiosa, ela pensava, e não moda nem vontade de aparecer, ela mesma se auto-explicava. Pois se por acaso tinha alguém para ela se aparecer, ninguém o sabia, muito menos ela. 

Voltava do mercado com a mãe poucos dias depois e se preocupou em pegar muitas sacolas para esconder a tinta da ponta dos dedos. A bala de goma estava escondida nos braços fortes da mãe, que desde aquela janta ficara bem de olho na menina, talvez não do jeito mais certo ou mais acordado. Teresa, por causa dos cuidados maternos, ficava sempre do lado de dentro da calçada, nunca perto da rua, pois “vai que”. Uma das mãos, envolta na manga do casaquinho, entre os dedos da mãe, enquanto a outra mão estava erguida, um pouco de lado, tocando a textura das paredes e muros que passavam. Parecia calma, com ares até de bailarina, mas fazia uma comedida força (desproporcional ao que aparentava ser) no atrito entre as unhas e o relevo, forçando o descasque daquela cor que insistia em não sair. Quando olhou para o lado, percebeu não só que os dedos doíam, quase latejando, como que estava manchando de vermelho a impecável parede roxa da manicure, justo aquela que insistia em reprovar seus atos das mais imponentes maneiras possíveis. Como se as paredes da fachada sussurrassem maria teresa muitas vezes a cada instante. Teresa começou a chorar um chorinho mudo, que nem choro era porque se fazia só do abandonar-se das lágrimas, fraquejantes. Tirou a mão ardida num trisque triste e guardou no bolso, antes mesmo de parar para prestar atenção no que fizera só por medo da mãe que afinal talvez nem se importasse com o caso. O esmalte vermelho do dedo ainda estava lá em partes; as partes em que não estava, dava lugar aos respingos do sangue, resultando afinal na mesma cor de unhas que teria caso não ralasse os dedos na parede.

Chegaram em casa e Teresa subiu correndo a escadaria. Enfiou as mãos na cachoeira de água fria que rolava da pequena torneira do banheiro. O sangue seco se desencrustava das unhas e o jato d'água instigava mais e mais a vinda do sangue, lógica que ela por ser pequena nem percebia, mas sorria achando que o vermelho do esmalte estava indo embora, ralo abaixo, junto com aquela dor flagrosa – mas não estava. O relógio contou oito horas e da pequenina janela do banheiro, em cuja abertura cabiam somente os dois olhos e nada mais, Teresa podia ver as portas na casa roxa se trancando, o fim de mais um dia de trabalho. Da porta saiu uma meia dúzia de mulheres, todas elas funcionárias menos uma, idosa porém extravagante, que percebia-se claramente se tratar de uma cliente, quiçá das mais assíduas. As cinco mulheres ajeitavam as trancas e catavam seus passes de ônibus enquanto a senhora idosa ia embora, rapidíssima para sua idade. Virou a esquina do lado de lá enquanto espichava as mãos para obcecar-se pelas próprias unhas recém-pintadas. Teresa observava tudo, as mãos meio respingando pelo banheiro. Nem chegou a ouvir os berros da mãe lá embaixo, chamando para a janta, nem o ruído de seus passos cavalares escada acima, nem as batidas no banheiro. A porta se abriu num átimo os gritos da mãe, antes certos da teimosia das balas mais uma vez, transformou-se no baque de olhar pela primeira vez a menina, com rosto de anjo em moldura de sangue aguado. O choro da mãe virou abraço e lembrou Teresa que os machucados doíam tanto. A senhora idosa, cliente assídua, com certeza já havia chegado em casa, caso não houvesse tropeçado pelos altos e baixos da calçava enquanto botava olhos só nas unhas. A comida só não esfriava porque já era fria por natureza, e o vidro de esmalte mal fechado, dentro do armário, já havia exalado todo o mal-cheiro que podia. De resto, terminaram elas o abraço e continuaram chorando baixinho enquanto preparavam a gaze e os primeiros socorros para depois passarem a noite inteira juntas, a mãe e Maria Teresa, limpando o horror do banheiro vermelho no calor e fedor que exigia a janelinha aberta – sem sussuros escondidos.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Mesmo nome não é mesma gente

Leandro Silva Júnior era menino pequeno, dois anos no máximo. A mãe esperava o ônibus e obedecia ao celular, que gritava grosso, enquanto o menino girava em torno do poste para ver cidade virar mar. Ela, enorme, de cabelos evangélicos batendo cintura, arrancou o coitado do chão pelo braçote infantil e ralhou, ralhou tanto. Leandro Silva Júnior chorava enquanto a mãe apertava-lhe os nervos e explicava ao telefone, "ele só quer ser tonto, o moleque". 

Quando ela lhe disse "ele quer falar com você", Leandrinho que mal falar sabia em resposta esperneou que "quero não, quero não, sai, vou falar não, quero descer!" e a mulher mais o fazia doer-se. Continuava Leandro Silva Júnior assustado com medo, mas medo de quem? É monstro, papai noel, curupira, assombração? O ônibus não arranjava meio de chegar, a mãe ralhava, o menino esperneava num tanto de bateu com o pequeno pé no celular, que de súbito caiu no chão junto com a voz grossa e temida do pai, o senhor Leandro Silva.

sábado, 24 de setembro de 2011

Quase Idêntico

Ninguém
Viu nem ouviu
Mas houve
Um acidente
                   No ocidente
De seu dente
                   Da frente

Mas apesar
                  (Sem pensar)
                  (Sem penar)
                                    de tudo
Ocê sorri grande
                        (Sem peso)  
                        (Sem medo)
                                          pra gente
Até o raiar de amanhã cedo.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Cidarte

Um dia, espero, serei
Como Carlos Adão
Um dia serei artista
Borrifarei meus amores

Na São paulo nunca mais me perderei
Cada viela ou avenida
Muro parede esquina
Terá um lembrete meu

Como totens no deserto
(Estátuas que só o vento mexe)
Verei sob a luz do dia
Meus caminhos pela noite
Meu mistério terra tinta

Farei arte no escuro
Como os olhos que se fecham para o beijo
Como o anonimato de minha assinatura

Mexam-se os muros!
Abram-se as portas!
Quando eu for Carlos Adão
Saberei minha cidade
Saberei minhas pessoas.

domingo, 18 de setembro de 2011

Lápis sem ponta

Enquanto
tu cantas
eu conto
do encontro
de canto
de olho
com tanto
calor.

Tu andas
Eu corro

Tu cantas
Eu conto

Tu encantas
Eu tonto;
sem ponto
desapontado.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Poema Expresso

Excesso
            seus entes
     Parênteses
Exceto
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Resto semínima importância.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Excesso

Advérbio é mentira
Adjetivo objetivo
Um dejeto
               uma ferida
Oração e santo livro.
Substância do sujeito
Não é isso.
Ter um verbo
                    é imprescindível.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A carta

Estava o Doutor Palmeira esticado na rede, não querendo nada como quem, de verdade, não quer nada. Totonho entrou ligeiro, nem se avistou chegar – quando se viu, tava já fechando o trinco do portão. Em passo desmedido de caranguejo, embaraçava as falas enquanto segurava as calças largas.

- Que que é, homem?

Totonho, reparando ter sido percebido, aprumou-se de pronto, arqueou as sobrancelhas de lobato e juntou as mãos, calo roçando com calo. As calças foram ao chão batido mas logo voltaram ao seu devido lugar, ante o arregalo dos olhos do Doutor Palmeira.

- Dotô...
- Eu mesmo, fala.
- ... ó, dotô, é que assim...
- Diz depressa, seu palerma, que eu tô cansaço puro.
Totonho se embolava nos dizeres e, nervoso, começava uma piscaria sem para que mais ainda enervava o sono do Doutor. Sua mão, horta de calos e casca-dura, tinha as unhas no cotoco por causa de suas todas tarefas de um dia seguido do outro. A mesma mão foi quem teve coragem de estirar para o Doutor o motivo, guardado no bolso de trás com devoção.
- Que ocê quer que eu faça?
- Dotô, dotozinho Palmeira que eu tanto estimo... será que por algum acaso, alguma gentileza, coisa assim, o senhor não me ajuda com essa coisa?
- Doutorzinho uma ova, seu Totonho! Fica calmo que eu te leio.

O doutor tinha mãos grandes, mas não grandes de rudeza. Eram sim um pouco secas, mas os dedos compridos e finos feito cobra de matagal. Essas tais mãos já se enfiavam no lacre de cola para abrir a carta, quando Totonho atinou e deu um pulo surdo:

- Pode não, Dotô, o senhor endoideceu?
- Eu? Pois saiba que quem endoideceu aqui foi você! E sai já da minha frente, que meu sono tá que tá.
- Do-do-dotô! Não me diz assim - Totonho choramingou - o favor que te peço é importante.
- Mas já falei que leio sua carta!
- Quem disse que o senhor deve ler minha carta? Esse tipo de coisa é par-ti-cu-lar, entendeu? - Totonho silabou todo o discurso e, de peito arfado, prosseguiu metido a importante.
- Que diabos cê quer comigo, seu capeta?

Totonho curvou-se, juntando a cara própria com a do doutor, que recuou e, balançando sempre a rede, chegou mais perto ainda. Uma mão na coceira da cabeça, outra na carta.

- Só queria que o senhor, assim, se der tempo, se não for incômodo, me ensinasse a entender esses escritos.

Doutor Palmeira achou bonito o pedido de Totonho, que não parecia homem de se importar quêsses caprichos. Desfranziu a testa braba e uma risada, debaixo do bigode negro, inevitavizou-se. A mão graciosa desencorajou-se e, coragem que só, firmou-se cúmplice na palma suja de Totonho, no que os dois em seguidinha recuaram, bobos, lembrando do que toda a cidade falaria se visse a cena de alegria. "Cabra que é cabra não tem esses carinhos de demônio, macho que é macho só trata macho feito macho", isso eles repetiam na cachola sem nem pensar a respeito, e sendo uma das cabeças meio oca,  fato já sabido por todos.

- Volta aqui em quarenta minutos, homem.
- Mas dotô e se for coisa importante como aposto que deve ser? O senhor ensina num piscar de olhos, vou embora e não chateio mais.
- Totonho, eu preciso me preparar antes, entende?
- Mas dotô!
- Pare de achar que é sangria desatada, criatura, nem grande coisa deve ser. E ó, já aviso que dois terços de hora é, dos males, o menor.
- Aprender demora, é o que o dotô tá falando?
- É exatamente o que "o dotô" tá falando. Sossega o facho, que vai ser complicado. E vai levar tempo. 

Totonho calou e foi embora. Doutor Palmeira de berro grosso ainda mandou que fechasse o portão. Caiu no cochilo ao som do movimento enferrujado das dobradiças. Era dia de folga. O povo, já sabido, procurava adoecer um pouco menos às quintas-feiras. Não que, se viesse alguma tosse ou pontada, cairiam todos mortos no meio da rua, a coisa era outra. A fila para o segundo médico da cidade triplicava junto com o relógio de espera, por conta da surdez idosa das orelhas peludas do Doutor Rui, o único segundo médico das redondezas. Eram engraçadas as quintas-feiras na praça central, ao redor da capelinha. Todos os passantes de lenços na cabeça cuidando do sol quando o céu limpava, bem agasalhados em caso de frio e vento  ou cobertos em caso de chuvarada ou mesmo garoínha. 

Em compensação, na estrada caminhava Totonho, sem atenções para o que dizia o céu e o tempo dos ares. Segurava a carta firme, duas mãos dez dedos olho apertado para decifrar os escritos - e nadica de nada saía. Desbocou na cidade pela rua Florduardo e, descobrindo ainda faltar meia hora, foi matar tempo no boteco do Seu Camargo. Detrás do balcão de madeira esculpida, entre as poeiras do descuido, quem servira aguardente fora Mariana Camargo, esposa de Seu Camargo. Seu Camargo era branquelo e pequeno, os ossos despontando da pele. Mal cabia nas enormes camisetas brancas de seu armário e não tinha noção alguma do perigo de largar mulher sua servindo os bêbedos. Mariana tinha cara bruta e banhas à vista, mas os homens para cima dela arrastavam asa por conta do exagero de busto, que se avolumava ainda mais com a renda amarelada dos sutiãs. Não apreciava roupa decotada, porém usava vestidos de tecido fino, transparecendo nos peitos o relevo das flores. 

Totonho era besta demais para parar e ficar imaginando safadezas, mais ainda com mulher de aliança no dedo. Empoleirou-se no banquinho de madeira como um galo manco e desandou-se a batucar os dedos no balcão, sua forma de pedir atenção que, mais ainda, juntava sujeiras por baixo das unhas. 

- Que quer hoje, Totonho?
- Faça o favor de encher o copo, senhora.
- De senhora só tenho o anel no dedo e o nome Camargo de meu marido. Pare já de bobagem, seu Totonho... Ser senhora é coisa de velha!
- Pois se chamo senhorita, teu homem me bate, e se chamo senhora, você me briga. E se chamo de você, como fiz agora, sou tido maleducado.
- Mariana, criatura, é o que lhe digo toda vez! E bebe calmo, qual a pressa?
- A pressa, depende. Quais são as horas?
- Espera, vou ver. Três e meia.

Totonho começou a fazer contas e precisou de muitos dedos. Desesperado, levou o copo da mão aos dentes e contava e se cafundia todo. Mariana olhava tudo num rir-para-não-chorar e ajudou nas contagens. 

- Viu, essa é a pressa. Devo estar em casa de Doutor Palmeira em questão de cinte minutos. Pões mais um pouco. Por favor.
- Adoentou-se, você? Sabe que o Doutor Rui está na cidade atendendo.
- Tenho saúde e muita, dona Mariana. Meu assunto com doutor é outro.

Totonho arfava o peito e, já meio embebedado, quase foi-se ao chão, direto dos bancos compridos. Mariana interessou-se pelos segredinhos e, já mirabolando mil histórias em sua cabeçica de cuíca, tratou de encher-lhe o copo o máximo possível.

- Outro, é? Explica direito, Totonho...
- Arre, dona Mariana! É que a senhora, digo, senhorita... vo-você. Ou prefere tu?
- Prefiro você. Continua.
- Você bem sabe como o dotô é cheio de inteligências...
- Inteligência? Sei, sei. Mas ele entende de coisa de médico, não é? De outras inteligências eu não sabia não.
- O dotô entende de muito tipo de coisa! A senh... Você-dona-mariana não me venha desmerecer o dotô na minha frente!
- Não falei nada, longe de mim! Você está nervoso, Totonho. Bebe mais um pouco e te sossega. Mas então, você gosta bastante do Doutor, não é?
- O dotô merece admiação por demais, ainda mais agora que ele me vai prestar favor. Que horas são? Não posso me atrasar.
- Já já dá sua hora, Totonho. Mas é uma pena você não poder ficar nem mais cinco minutinhos.

Mariana deu a volta e sentou-se em frente a Totonho, deixando o balcão vazio. Suas pernas gordas encostavam o joelho ingênuo do homem que nem bêbado fazia besteira com mulher alheia porque era todo meio bobalhão. Ela prosseguiu:

- Só cinco... são importantes seus afazeres com na casa do doutor?
- São sim, ah se são.
- E você não quer me contar do que se trata?
- O dotô vai me ensinar a ler.
- Por que não falou antes? Ai, sei também fazer isso, de bom grado eu ensinava. Quer? Mas pensando bem, se prefere estar com o doutor, não posso fazer nada. Paga e vai embora.
- Vou embora e depois pago, senhora.


Totonho quase tropeçou nos próprios pés, cambaleando ligeiro rumo à estradiça. Quase quebrou a portinhola, mas pelo menos chegou. O doutor ainda cochilava forte na rede, em posição idêntica à de quando Totonho saiu. Um cutuquinho no ombro e nada. Um belisque no braço e nada além de um ronco. Totonho agachou-se e, mesma altura de cabeças, chamava o doutor em tom fanático de reza, no que o coitado acordou atormentado e por um triz não caiu da rede.


- Despirocou, Totonho?

Os dedos de Totonho apontavam o relógio de pulso do doutor, em ilegíveis números romanos. Ler hora não sabia, mas tinha certeza da própria pontualidade. Ainda sob efeito da bebida, falava lento, porém não tanto quanto o sonolento Doutor Palmeira. Nessa tal lentidão, pode ter se passado tempo comprido, que a nuvem ao leste já migrara bem pra cima da cabeça com seu formato de cabrito.
Então o nariz do doutor se aguçou, glutão - era o maior adjetivo praquele homem que, apesar do estômago saco sem fundo, era magro, magro de ruim mesmo. O relevo das costelas só não lhe era mais evidente porque o matagal de pelos no peito era um tanto denso. Suas bochechas se envergavam para dentro, tal qual fisionomia de caveira. Em compensação, nunca adoecia, coisa que as faladeiras do povo invejavam horrores, arrematando, "isso é tudo praga de médico metido". A grisalha Durcila, limpando as mãos no avental engordurado, postou-se submissa no limiar da porta, de onde anunciou a nova fornada de pão doce, já farejada pelo doutor. De súbito, o sono todo dissipou-se e deu lugar à rotineira gulodice. Entraram todos na espaçosa casa, Totonho ainda bem cambaleando, o alcool exagerando sua admiração na primeira visita à residência do tão digno Doutor Palmeira. Sentiu-se imponente por entre os móveis de madeira maciça, como se fosse convidado especial, especialíssimo, enquanto metia as mãos rudes, quase tentaculares, no brilho dos pequeninos quadros a óleo, dispostos com milimetria simétrica na prateleira acima do imperioso rádio. Após uma disfarçada devastação estética, deixou-se cair em uma das cadeiras em torno da mesa principal. 

O doutor estava atento à crocância do pão dourado, que se divinizava em conjunto ao miolo macio, fofo que só, parecendo até massa de bolo. Desviava os olhos, enquanto mastigava, preparando suas surpresadas aulas. O alfabeto inteiro, com direito até à cedilha. Melhor seria começar pela bastão maiúscula, aí passar para a minúscula e, em seguida, cursiva, pensava o doutor. Mas logo tirava a ideia da cabeça, lembrando que carta é sempre escrita em cursiva, em remetentes, corpos e cabeçalhos. E, além disso, todos esses tipos de letra significariam mais um tanto de tardes dando aulas para aquele homem.

- Senta, criatura.
- Hmn?
- Na cadeira, Totonho!
- Sentei já, dotô.
- Então olhe para mim aí começamos. Tá vendo isso? É um tê. Junta a letra tê com outras letras e vai fomrar totonho. 
- Ahn.
- Então pela lógica, que letra é essa?
- Consigo não.
- Pensa um pouco.
- Consigo não.
- Tenta, homem!
- Consigo não, dotô!
- Pensa só. Totonho. To-to-nho. Tôtônhô. A próxima é o ó, essa bolinha aqui, que é uma vogal, sabe o que é vogal?
- Ô dotô, não exagera pra cima de mim! Sou vagal não, arre.
- Totonho, você tá mais besta que o normal. Você não presta mesmo, tenho certeza que foi todo correndo encher a cara.
- Foi só questão de uns copo e mais outro, nada demais...
- Totonho, cê tá quase dormindo na mesa, homem. Vai jogar uma água no rosto, pelo menos, seu capeta.
- Hmrn.
- Se em cinco minutos você não estiver aqui sentado e sóbrio e de cara lavada, não te ensino mais porcaria nenhuma. Vai logo.
- Tou indo, dotô...
- Vai já, estou contando no relógio!
O lado deve de estar frio, mas juro que vou lá, doutorzim.
- Está maluco, é? O banheiro é ali do lado.

Nisso o moribundo, metade capenguice e metade boa vontade, já tinha saído porta afora e o cão latia, correndo atrás e Durcila olhava na janela, lavando a fôrma de pão, e só podia pensar, ai esse mundo está maluco, e perguntar, muda para si mesma, que diabos faz esse homem estranho por aqui? Totonho quase tropeçou numa moita mal localizada – a culpa é da planta afinal – e em menos de dois minutos chegou no lago, caminho que demoraria uns três mais, se não corresse como corria, jeito que parecia até de touro brabo. Afobado, agitado, ansioso como sempre, jogou-se no lago cheio de lodo e folhas mortas. Seus pés tocaram o fundo e a cabeça ainda bem bebum se esquecera de apertar com os grandes dedos as narinas que, muito largas, deram uma fugada animalesca. O homem se debatia na água opaca, em vão sacudia os brações, as pernas, tudo em vão, em vaga lembrança de nado ou, palerma do jeito que era, lembrança de nada mesmo.

Doutor Palmeira já havia largado o pão pela metade, a manteiga esparramada, toda livre e amarelenta, na superfície carboidrata. Andava a passos largos, arfando, a camisa cada vez mais molhada debaixo dos braços flácidos. Chegou à beira do lago e era tudo calmaria. Uns canários afinavam sua vozes e o céu era impecável. Se abrisse bem as orelhas e tirasse um pouco da cera que tapava os ouvidos, poderia ouvir o som das nuvens andando molengas, mudando de forma de acordo com a imaginação de suas cabecinhas de vento. No fundo escuro do lago, as forças de Totonho se acabavam, mas iam-se indo pouco a pouco, bem pouco. Ele então pensou que ia morrer, que não conseguiria jamais sair daquelas águas, águas aliás que permaneceriam intactas, dras, não fosse todo seu estardalhaço. Ele então pensou de novo que ia morrer, pensou mais um pouco, atinou, ficou nervoso e começou a soltar verdadeiros rojões, que é o que fazia quando enervava, coitado.

Daí que lá de cima Doutor Palmeira forçava a vista atrás de Totonho e Totonho? Nada. Totonho nada nada. Já pensava em dar meia-volta, vai que por acaso Totonho não voltara e já estava à mesa comendo o tal do pão? Girou os joelhos esféricos e a cabeça já ia junto quando reparou nas milhares de bolhas concentradas um pouco ao lado de lá, não muito longe da margem. Teria percebido mais rápido, com certeza, caso não fosse a água um obstáculo no caminho do cheiro à narina. De pronto adivinhou a origem do fenômeno e pulou na água sem dó sem piedade (ou então só na pura piedade), num salto bonito que chacoalhou seus projetos de barriga, aquele magrelo. Arrancara Totonho da água de súbito, dramatizando a cena que poderia ter sido muito heróica, não fosse o ridículo da situação. Nadou com firmeza inesperada para seu mais ou menos meio século e o resgate foi rápido, nos últimos trizes. Saíram da água pingando, demolindo-se um sobre o outro, uma nojeira só. Totonho prometeu que nunca mais voltaria a bar nenhum, veja só! Passaram bem alguma boa fração de hora deitados no gramado falho, os cães rondando alegria e baba. Voltaram quietos, aos pingos, tranquilos apesar do tabefe no cume da cabeça que Totonho levou, para parar de ser inconsequente, ora essa.

- Que é inconsequente, dotô?
-
Doutor preferiu nem abrir mais a boca, preferiu caminhar lento, silencioso. O pão já esfriara e Durcila estava certa da maluquez do patrão. Mariana, coitada, nunca mais saiu de trás do balcão para cliente algum. Cada vez mais, empedrecera aos carinhos do marido, não conseguia pensar em muita coisa além de seus sonhos atrasados de menina. Nem a batata da perna arrepiava mais com o toque do dedão do pé do marido debaixo das cobertas. Pensava em nada mais além da inexplicável rejeição. Antes ele rejeitasse e, pensava ela, nunca mais aparecesse! Mas o desgraçado, todo tonto e sem cumprir promessa própria, o imbecil prosseguia viciado em ir ao bar, olhar na sua face desprezada e fingir, tal qual artista, que nem sabia de nada, que coincidência essa, brincariam aqueles que sabem a história na íntegra. Ela não sabia, logo ela, tão romântica, num amor tão caligraficamente platônico, ai ai ai. O rancor não durou tanto, ainda bem, pois fazia despencar a economia do bar, que a cada dia depressivo fechava mais cedo. Chegou a ter vez até que Mariana fechou o portão na cara dos clientes numa sexta-feira bem no horário que o trabalho acaba. O marido não percebeu nada, nem o começo nem o fim, nem as encrencas do recheio. Com o tempo voltaram ao normal os dois, e para Mariana aquela sua vontade de amor se desmanchando pouco a pouco, suave e lenta, como fizeram na água de lodo as letras perfeitas do papel de carta. E foi desse jeitinho assim, nesta medida mesmo: um pouco amante, um pouco virgem.  

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Aquilos que nos são triviais

Às vezes me pego a imaginar
Como eu seria
Se fosse outra

Não outra Helena
Não de outro sobrenome
-- Ainda meu resto de Itália
Meia e última porção de Turquia

Que eu fosse assim
Desse jeito exatamente
Uma ou outra diferença

Que eu fosse assim
Um assim bem só no básico
O castanho dos cachos, o nariz de batata
As unhas redondas e o pé trinta e sete

Que eu me fosse Guiomar
Ainda o castanho
Ainda a batata
Mesma curva e mesmo número
Talvez com pintura nos olhos
Talvez com pulseira e relógio

Fosse eu a Ariel
Um coque amarrado
Um tique nos cílios
Os braços com maciez de algodoal

E se me chamasse Rita
Um sotaque escancarado
O cabelo de promessa
A piscadela ligeira
O jeitinho de formiga

Dobrada a esquina
Incerteza no passo de pano molhado
Depois da chuva vespertina
Uma moça mediana de pé trinta e sete
Nem tão-linda nem bem-feia
Espera o minuto do semáforo
Ela atravessa
Eu viro a rua Oriente
Ela olha sem querer e vai embora
Ninguém sabe o nome dela
Quem é, quem fora
Como sorri e como chora.

sábado, 3 de setembro de 2011

Era madrugada e vi uma borboleta

Foi linda festança
Chegança de mundo
Pegadas da dança:

A menina mansa
Criança da noite
(Se) pensa em silêncio
Dispensa mesuras

Sussurra mas canta
Recanto relance
Se cansa do tanto
Se lança sem pranto
Da cortina branca
E vira bom vento
E vira lembrança.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Orquestra

Noite gera poema
amáveis durante o dia
parece palavra bonita
parece nuvem ovelha

Poemas regem a noite
cachecol xadrez
no vagão vazio
parece sombra de estrela

Noite
         Guerra
                    Poema
a embrumecida palavra
vê janelas se apagarem
e o caos cair silente

Cidade artifícia sem estrela cadente.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Cinema brasileiro ainda existe


Semana passada a Cinemateca Brasileira estava com uma mostra de cinema silencioso e eu confesso que senti preguiça de comparecer, apesar de achar interessante. Os dias lotados, a correria, o cansaço -- achei que precisava de alguns filmes mais ágeis, por assim dizer. Mas parece que o silêncio iniciou uma perseguição às minhas últimas idas ao cinema e, não, não estou dizendo que tenham sido experiências de todo ruins. A primeira, muito pelo contrário. Para ir bastante ao cinema é preciso ficar sempre fuçando guias culturais, encontrando sessões gratuitas ou dias mais baratos. Assim cheguei em Ex Isto, filme nacional da série Iconoclássicos, que já lançou um documentário sobre o genial Itamar Assumpção e está na reta final para um longa sobre o mito vivo do teatro Zé Celso. O fato de o filme nascer de um incentivo público e por isso ter todas suas sessões de graça me fez entrar na sala com um sorriso já querendo despontar. A sensação prosseguiu durante os quase noventa minutos da novíssima obra do não muito conhecido diretor Cao Guimarães. 

Ex Isto, através de imagens lindíssimas, remonta (melhor dizendo, interpreta) livremente o livro Catatau, de Paulo Leminski, cuja história é a hipotética vinda do filósofo René Descartes ao Brasil, junto com Maurício de Nassau. O Descartes do ator João Miguel é contemplação pura, quase não abre a boca e, imóvel, parece existir na paisagem como um elemento ao mesmo tempo interno e externo. Aí brinca-se o bem pensado trocadilho do título, claramente relacionado à célebre frase "penso, logo existo" de Descartes. Aceitando a eterna mudança do ser humano através das descobertas, observações e relações com o mundo, faz sentido pensar que existir significa, ao mesmo tempo, ser algo e deixar de ser um algo passado, um ex-isto, ex-aquilo. O Brasil de Ex-Isto mistura seus tempos, passa ao futuro sem largar o passado para trás. É selvagem e vivo, e ao mesmo tempo gracioso, seja no espaço estritamente natural quanto com toda uma cidade contemporânea ao seu redor, por entre as graças e comicidades do dia-a-dia. O personagem mantém-se quieto mas diz muito durante toda a obra, recurso este que o mantém humano, ativo, como se fosse uma intervenção viva, ao mesmo tempo que o país intervém e dialoga com ele próprio e com todos os outros à sua volta.

O mesmo não se pode dizer de Transeunte, longa de Erik Rocha, filho de nosso consagrado Glauber. As pouco mais de duas horas em frente à tela de imagem preta-e-branca trziam consigo uma sequência de belos ângulos, belos closes, belos detalhes. Tudo isso no decorrer de passos da infindável caminhada de um senhor aposentado (Fernando Bezerra), que vai a lugares triviais da rotina carioca, sempre quieto e solitário. Poderia o filme ser grande coisa se conseguisse comunicar as tantas imagens capturadas umas com as outras e, acima de tudo, comunicar o personagem a qualquer coisa que não o vazio aparentemente desproposital expresso por seu não-olhar. O resultado é um filme de tédio, de pouca brasilidade apesar de tanto tentá-lo ser. Chega a ser esquisito que a produção tenha créditos a Walter Salles, pois minhas maiores recordações de seu cinema são a emoção e as vontades por necessidades. O filme Transeunte não traz o transeunte ao público -- prefere mantê-lo isolado, andando sem chegar a lugares significativos, como se pensar, criar e intervir não fossem parte de seu vocabulário. O transeunte parece, inclusive, impedir o transe da terra que Glauber Rocha mostrava. Lembro que saí do cinema cansada, os créditos rolando e um casal de pseudo-intelectuais assistindo-os até o fim, com uma expressão de grande interesse. Amanhã, saio em busca de Catatau nos sebos da cidade, transeunte de verdade, transeunte que existe e deixa o resto existir junto. E que venham os próximos Iconoclássicos!

domingo, 21 de agosto de 2011

A valsa do galho

Era bonito, oblíquo
Quase desimportava


Doía cabeças
Caía canelas
Despenteava dondocas


Que amor sempre existiu
Bruto, desconfiado
Beirando calçada
Com olhos de esguelha


Era saúde, era altura
Quase ninguém bizoiava
Era choro recatado


Soava o apito de trânsito
Hora certa toda justa
Pro menino dançarino


Passo linha
Passa linha
Passa palavra
Passo de letra


Nas nuances singulares
Simbolismo analfabeto
O menino cabisbaixo
Passeava nos versinhos


Era valsa, era verdade
Pouco antes da esquina
Na avenida sem sinal


Todo dia em hora certa
O menino desatento
Caminhava lendo poemas


Hora de sinal errado
Hora desonrar demora
Hora fora de semáforo


Dançarino era o galho
Tão bonito tão oblíquo
Segurava menino, lia dois versos
Menino parava e olhava a rua


Ontem cortaram o galho
A saúde altura valsa
A verdade salvação


Ontem cortaram o galho
(Pobre galho)
E o tronco murchou
E o menino dançarino
Atropelado morreu
A dança voada nos ventos
O poema jogado no meio da rua.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Fim de tarde

Onde o atraso de luz acende à madrugada
lamparina antiga
escada antiquíssima
cidadela antiquada

Onde a velha dos bijus joga migalha
pombos de fome
pombo desforte
pombos de gula

Onde tu já perdeste uma tiara
ouvindo a sanfona
sanfonético violino
sem falar nem me dar vistas

Onde se amontoavam os domingos
solstício matutino
suplício do ouvido
clave de verões

Onde mais haveria de ser?
borboleta ou grama seca
o silêncio de meus músicos
Um minuto ou marcha fúnebre

Onde senão velho coreto
belo coreto branco
altar manso de minha juventude

É no coreto da praça
Lá é onde vou morrer.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Quatro Segundos


Toda noite, depois do copo de leite morno que por sua vez é depois da janta, Mirtes toma banho. No inverno, ela já escova os dentes debaixo do chuveiro, para não precisar encostar na água gelada da pia. Toda noite, três segundos depois de desligar a água, uma gota gorda cai no nariz de Mirtes, que portanto leva um susto besta toda noite. Essa noite, Mirtes contou até três e a gota não veio. Olhou para cima, surpresa, e a gota atrasada jogou-se, acrobática, em seu olho direito no segundo seguinte. Na noite depois daquela, em seguida do copo de leite morno que por sua vez foi depois da janta que por sua vez foi depois da ida ao oftalmologista, Mirtes toma banho olhando para baixo. É preciso cortar as unhas dos pés. 

sábado, 6 de agosto de 2011

Piscadela

Essa exuberância que tu tens
Não vale
Nada.

Tanto ouro prata tinta
Tanto salto pedra banha
Pronome que te requinta.

Não vejo jaboticabas
Atrás das tuas negras lentes.
Tuas mãos apodreceram
Pois as de cera
Eu não defino verdadeiras.

De que te serve, caveira,
Tais apetrechos,
Se és insossa em natureza?

Belo é o mar
Aparece em transparências
Brinco de pérola é todo ele.

No mar, toda gente
É sereia, sereio
Que seja;

Se sorrisos tem janelas
No mar a dentada é bela
Pois a maior beleza do mundo
É porta aberta sem assalto
Sem estupro, morte, soco, assassinato.

Mi casa
Se casa.
E se o mar é horizonte
Cujo fim nem Colombo sabe
Façamos do mar o pleno lar
O infinitivo do verbo
Beijo, sal, dança, amor
Sorriso largo e certo.

As ondas são gargalhada
Do mar que o mundo reflete
No cílio da gente.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Vista fraca ou boa demais

Que é isso no teu olho?
Tipo brilho, negro choro
Talvez só memória antiga

No teu olho, que é que há?
Cílio longo de além-mar
P'ra dar sorte em quase figa

Teu olhar não mais confio
Nem por triste nem por cisco
Lá só tinha uma formiga

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Passeio

Vamos passear
Por entre as praças
Pelas pedras, pelos postes
Pelas peças encaixáveis
De seu coração quebrado

Vamos passar em paz
Perceber a paciência
Dessas preces despedidas
Pensamentos passatempos
Em cidade de pocilga.

terça-feira, 26 de julho de 2011

A Malvada

Desta vez, não havia grande escada nem tapete vermelho. Nem corrimão dourado, impecável. A festa, porém, seguia a mesma linha. Diálogos intermináveis sobre futilidades quaisquer, do somente superficial ao extremo leviano. A campainha tocou e a família entrou em alarde, ó meus deus!, ansiando a chegada do irmão de um político famoso e canalha. Escondiam que o motivo fosse esse, ora essa, que absurdo!, o homem é amigo de longa data, antes mesmo de enriquecer e perder o próprio nome!, as bocas em batom bordô bradavam, invocadas, a maquilagem grossa grudando nos cantos rugosos dos lábios. Chega a tomar graça lembrar que, em juventudes, o canto do lábio parecia como um leque, era o mistério, era o flerte. Era bonito o canto do lábio assim como o canto dos olhos, canto de paixãozinha cantado baixinho, quase em sussuro. E então os jovens crescem e viram criaturas ranzinzas. Seus sussuros viram cochichos, ti-ti-ti maldoso sobre a roupa de uma ou a bebida do senhor ali -- está vendo só, que baranga! desses modos, não é de admirar que de vez em quando o marido dê umas escapadas, não é?, mal sabiam estas que os senhores do outro lado da sala comentavam justamente seu mal uso das jóias, emborcadas no pescoço molengo, beirando o ridículo. E assim, o tão requintado círculo social lembrava mais um ciclo vicioso, rígido, sobre terceiros. Em cochichos, em sibilos. 

Perto da vitrine de porcelanas, a mais idosa das senhorinhas presentes, já quase surda e toda embaralhada, caiu-se, sorrateira, em rápido cochilo. Nem ouviu a campainha.  A anfitriã num salto girou a maçaneta como se fosse de grande valor. Quem chegava era o sobrinho e sua esposa, já adultos, com uma indiscrição de meninas atrás. A festa estava entediante e, apesar de tudo, não havia nem cheiro de high society naquele salão. Porém, todos os presentes queriam parecer gente importante, sem problemas financeiros ou de trabalho. Trabalhar, qual o quê?, na frente dos outros era preciso fingir que não precisava emprego, empregava. Das coisas do mundo, ninguém fazia ideia. As revoltas na Espanha, as revoltas na Grécia, as revoltas no Chile, Tunísia, Líbia. São Paulo. Nem ideia, para quê essas coisas todas, pensavam todos. Nisso, não havia um que discordasse. Ao contrário, entretanto, se davam todos os outros assuntos, que geravam bate-boca à toa, juntando com lembranças ruins de infância de irmãos e primos só para gerar balbúrdia. As sapatilhas coloridas, joviais, pisaram o tapete de boas-vindas, na soleira da porta, e entraram. Um cumprimento a cada convidado, dando uma completa volta em torno da farta mesa de doces, que só se repete ano a ano. As meninas eram quatro. Duas delas, apêndices, não faziam grandes diferenças nem ao cenário, pobrezinhas. As outras duas, irmãs e realmente pertencentes à enorme família, fizeram certo rebuliço, aqueles sorrisos um pouco hipócritas lançando frases prontas, como vocês cresceram, estão moças, estão lindas, você é a cara da sua mãe, você pode até dizer que parece sua avó mas na verdade é idêntica ao pai!, no que elas riam de volta, sempre iguais. Seguiam as saias da mãe, para depois se soltarem aos poucos. A mãe, de rosto fino e cabelos pintados, já unira-se às outras da mesma idade, todas emocionadas com o álbum de casamento de uma das perfeitas sobrinhas. 

As duas, Vitória e Isabela, espiavam tudo enquanto mordiscavam bolo de chocolate. Eram moças bem jovens, ainda nem haviam debutado, não digo pela festa que é um porre, mas pela idade das pequenas.  Vitória tinha olhos negros e saltados, inconscientemente encaráveis, nem de ressaca nem de mel. Eram olhos de cobiça, como se cada glóbulo, pupila, íris e cílio pedisse foco, papel principal e novo vestuário todo dia. O corpo já se formava, condizente às ondas dos cabelos escuros, jogados para o lado como quem não quer nada. O sorriso dentário, pré-fabricado, repetia-se a qualquer um que a rebitasse. Isabela, algumas estações mais nova, era doce e alva, delicada feito brinco de neném que acabou de furar a orelha. No centro do rosto largo, de grandes bochechas, o nariz arrebitadinho separava os olhos de filhote. Ficava quieta, ouvindo tudo como se nada importasse além de seu pratinho de bolo de chocolate. Ria fino guardando lábios e espremendo olhos, meio fundindo cílios, quando as senhoras diziam-lhe paparicos e gracejos. Ainda não fazia as sobrancelhas. Tinha, porém, a voz rouca, contraste de si mesma. 

As duas, uma ao lado da outra, se cutucavam disfarçadas, fingindo santidades. A campainha tocou de novo e a mais idosa das senhoras acordou assustada. Levantou-se com vontades de açúcar, sem dar um trisco de atenção ao homem que chegava parecendo importante, o tal do irmão do político. Não que não o conhecesse, pelo contrário. Era ruim dos ouvidos mas a vista prosseguia na medida do possível. Lia o jornal de cabo a rabo toda manhã, durante o lanche. Não tinha era porquê se preocupar em fazer alvoroço para o tal homem. Lenta, lentíssima, rodeava a mesa de doces escolhendo qual seria seu prazer da vez. Passos curtos, inséticos. Mais devagar ainda ela andava, pois devia se atentar aos pés das muitas cadeiras que atrapalhavam o caminho. Quando chegou perto das meninas, levantou os óculos de aro grosso, incolor, como se tentasse identificar. Então foi assuntar. Disse que nunca entendeu muito bem quem era de verdade a malvada. A intromissão de Eve, dissimulada, não exclui a esnobação de Margo sobre ela. Bette Davis e Anne Baxter se cutucavam enquanto comiam bolo de chocolate, ora!, isso não é coisa que se encontre todo dia, ainda mais em uma festa chata como essa!, a velhinha riu-se toda enquanto as meninas se entreolhavam, incrédulas. Bette e Anne, quem são essas?, pensaram Vitória e Isabela. A velha, toda de bem consigo própria, terminara seus cumprimentos dizendo que as maldades não se anulam. Pegou um pedaço generoso de torta de frutas e deu meia-volta, lenta lentinha, um riso no canto da boca. Até quenfim conheceu suas atrizes preferidas, até quenfim entendera o antigo filme, sucesso em preto-e-branco, que assistira sozinha na estréia, num outono dos anos cinquenta.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Cantoria


pra Nicole, pro Barza, pro Ive (que não canta mas é amigo) e pro Pita


Ando mato e calçada
Os pés são calo doído
Bolha nos dois mindinhos
Uma unha por cortar

Trouxe junto uma matula
Trouxa mansa, essencial
Os cacarecos importantes
Em nó firme às minhas mãos:
Na toalha de um antigo piquenique
Enrolei lembranças boas
Para onde quer que eu fique
Para onde quer que eu me tente tolices

-- Em minha trouxa guardei, calma,
Um lenço vermelho 
O caco de espelho
Um riso, uma palma

Na trouxa que eu tenho
Só coisas bonitas
Cocada de fita
Vontade de empenho

Caderno brochura
A caneta preta
Fotos de gaveta
Polenta-ternura

E levo, afinada
Com frestas de vento
A fim de nem-nada
Só pra pensamento

A música atenta
Das bocas abertas
Gente que liberta
E me acalenta --

Todos os meus amigos cantam
Soltam voz de boniteza
Perco as rimas ao lembrar
Perco métrica e gramática

Enquanto vou em pura inércia
Minha trouxa axadrezada
Vai cantando meus amigos 
(meus amores)
E eu, andando, nem tropeço
Só me alegro.