segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O que resiste

Mofou o queijo.
Mofou o pão.
De todos teus ângulos só
vejo
bolor
uma película verde
branca
marrom
na razão do incremento,
o ar que respiro.
Mofou o bolo
que fiz com carinho.
Até o leite coalhou.

O resto de doce
do fim de semana clama
formigas!
e apodrece em sua
rasgada embalagem.

Choveu toda noite
e pela madrugada
em sono a brisa nos fez
do relento à garoa.
Dores no corpo
catarro.
A cama nos prende inertes.

Chove e
enquanto caem as gotas
do esgoto indiscreto
vejo que racham o teto e as paredes.
Uma goteira insiste
aprisionada ao mistério fútil deste
labirinto
de caixas, papéis e leopardos
nossa casa.

Mofou tudo
que havia ao redor.
Tudo de cheiro e de som morreu
intoxicado.

Mas o corpo de nós dois,
este continua vivo,
a pulsar,
no frágil frescor das frutas pequenas.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Anatomia expandida

Você tem uma cabeça
com dois olhos
nariz e narinas
lábios, dente, gengiva
um par de orelhas de porcelana
quebrada e semi-surda.

E de dentro da sua cabeça
saem dúzias de borboletas
em todas as cores frias
a montar, pouco a pouco,
um exército com mais de duzentas.

De dentro da sua boca
você cospe as borboletas
como quem come ao contrário
do grande prato que é bosque
e parque e avenidas
o mundo que te habita
no ar que respira.

Você e as vozes
você e os vizinhos
você e o verde macabro que invade
a janela de seu quarto
e o perfume da correspondênciade produto de limpeza
no liso das paredes.

As borboletas
cruéis, não cessam
este furacão de asas finas
do seu desprezo
a recordar as mil folhas ao vento
de um arbusto faminto
em outubro.

Mandei
que se faça o amor.
O amor não veio.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O sintoma

Sorrindo tem um homem na frente do outro homem, completamente paralelos os dois. Sorri porque saiu de casa, andou até o ponto de ônibus, parou. Havia um homem em sua frente, o mesmo homem para o qual agora ele sorri, amarelado, não porque é feliz, mas porque, das chances que tinha de desviar falsamente, e assim ir para o mesmo lado do outro homem, e essas chances equivaliam a cinquenta por cento, nem mais nem menos, ambos quase se trombaram. Agora quase se trombam de novo. Sorriso. A linha cruzada saiu de seu limiar e extravasou na ruptura cotidiana de dois homens, um para cada lado. 

Às seis horas cumprem o horário, chegam em casa às sete. Depois do banho, se olham em seus espelhos na procura de fios de barba a despontar pelo rosto. Mas o rosto, desde o banal encontro, havia sido trocado, e assim permanece, como o reflexo do sol na água. Eles gritam, apavorados. Mas ninguém nota qualquer diferença, mínima que seja, a ser digna de reparo. O homem sério, sem vontade alguma, sorri com os dentes amarelos que não lhe pertencem, e sente medo da sua própria face.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Poema sem pulso

Quantos passarinhos é preciso trazer-te
para que me tenha ao seu lado?
Dez, cem, mil?
Ou será que um origami
no papel de jornal velho?
Talvez dois canários
talvez uma pomba suja.
Mal sei o número de passos
que devo dar, inequívoca,
até te alcançar
mesmo em braços esticados
pontas dos dedos.
Sei quantos posso por mim
não sei quantos você
me permite.

Criar sacrifícios e provas de amor
falsificar simulacros
entre os astros do universo,
gigantesco universo
que ninguém conhece o fim.
Os fins dos romances já sabemos
está escrito na última página.
Mas dentre tudo isso, que dizer
do fim de nós dois?

Esse fim se resguarda, à espreita,
guardado nos confins dos bons organismos
não como um vírus da gripe
mas uma doença fatal e rara
de poucos estudos e maus tratamentos
onde se guardam
nossos sublimes segredos
que nos tornam
apenas
a essência do que somos.
Sumo.

Quero que acredite em mim
como acreditou não em minha voz
não minhas cordas vocais ou gengivas
mas acreditou em meus lábios.
E acreditou, piamente, e quase chorou
naquele romance de mortes
que leu no mês passado, sozinho,
mas repetiu para mim,
deitados na grama
esperando o ônibus,
as suas frases favoritas.
Um romance de mortos
para um homem vivo,
dotado e detido na angústia e
raiva
que palpita de suas orelhas
pelas fendas que te chegam no cérebro
e do cérebro invade o sangue
até explodir em bomba o coração.

Odeio usar a palavra coração.
Coração Coração Coração.
Me parece que a palavra coração carrega
sugestões de filmes estúpidos
rimas fracas, publicitárias
e a tosca perfeição de um amor
em olhos azuis.
No entanto seguimos aqui.
Estamos vivos.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Relato do amor invisível

Eu amo esta criatura enquanto ser vivo e sobrevivente, como célula de resistência, e ao mesmo tempo posso nutrir amor como a pessoa que é, completamente humana. Desta soma, imersa na mesma criatura, resulta que amo e que não tenho capacidade nem vontade de amar agora e desta forma a ninguém além deste único organismo. 

De repente fiquei cego. Não tão instantâneo foi o processo mas alguns poucos meses parecem horas se comparados a toda uma vida de vista. E ainda mais esta vida. Não quero assegurar que minha dor tenha maior valor ou que seja eu o único resumo vivo do sofrimento. Embacei gradativamente, um pé depois do outro, e uma vista cansada normalíssima para a meia idade então se transformou no mais imenso infinito. Garoas se transformam em tempestades. Parece, porém, que todas as galáxias dormem, quase hibernam. E eu ando, ando, ando mais, mas não encontro o lugar de encruzilhada entre o conhecido e o nada. O espaço do nada, denso, flúido, flácido, plasma, duro, não se sabe, deve ser lindo, tanto inimaginável que até agora parece ser impossível - onde possa encontrar qualquer coisa diferente da treva tátil, ultrassonora, aos quais meus sentidos me submeteram. Ouço espirros que antes os ouvidos não alcançavam e tenho então a leve sensação de que o mundo está um pouco mais resfriado. Não é o mundo, sou eu, que vivia do contraste e da luz e sombra. Me lembro inclusive de andar pelas ruas e, ao início da noite, quando as luzes dos postes se acendem, me lembro do medo ridículo que tinha da minha própria sombra. Hoje a sombra é geral. Fez-se a luz ao meu redor, em todos os possíveis ângulos. Misteriosamente, o resultado não foi a claridade total, como se esperava, e sim o breu da sombra espalhada como um oceano ao redor da ilha. A ilha sou eu.

Me apaixonei quando vi que aquele corpo era completamente único; não só aquele como todos. Mas então já era tarde, o caminho agridoce da vida conjunta já nos tinha unido e nos feito trocar toques. Depois, em tempo recorde, amei. Agora me lembro, chorando, que éramos visualmente a beleza, e assim nos reproduzíamos em nós, de manhã, de tarde e de noite. Na madrugada nos encarávamos nos olhos falando da rotina. A última semana foi inteira uma aflição sobre a retina, e o globo ocular, membranas, nervos ópticos.

- Hoje no trabalho ouvi coisas engraçadas nas fofocas do chefe; Hoje para mim foi um pouco mais chato, o serviço estava vazio, o tédio reinando… - e por aí ia. 

Hoje eu estou em um leito até que confortável, nos primeiros dias de recuperação após o baque da cegueira total. Amanhã cedo irei para casa, sentir os cheiros específicos do meu lar e de meus sabonetes, minhas plantinhas em vaso, a bosta amanhecida dos cães no quintal, todo esse conjunto é lindo. Agora tenho em minha diagonal a pessoa que me ama, a qual eu amo/desejo/quero/jogo-me de volta. Não chega a roncar, é apenas um sussuro sonâmbulo, penso agora de forma dócil. Esta nova cegueira está me colocando uma poesia nos poros que chega a ser ridícula. Já deve ser de madrugada. Só acordará amanhã, me trazendo nas mãos um copo de café ou coisa do gênero. Penso agora que poderia, não fossem meus olhos a atrapalhar, estar na cama comigo, a de casa, o corpo macio estirado ao meu lado. Sinto saudade desse corpo, já, e choro apenas de pensar que nunca mais verei suas peculiaridades e formas tortas, sua pele fria e seus pelos espalhados. Sinto que ver o teor deste corpo será uma magia de sentidos em falta. É claro que as mãos, as bocas, as narinas e o encostar de meu corpo ao outro, há isso tudo, e há a lembrança e a capacidade de rememoração, o desejo de ter olhos bons só para ver os olhares e sorrisos do ser que amo, e que desta forma muito me dizia em momentos de silêncio. Fica na cabeça o retrato de quando começamos a namorar, bem como de meu último aniversário, e criamos rugas. O corpo é forte, e pulsa forte, e mastiga forte, digere, processa, sente dores de passagem e retorna ao equilíbrio. Parte da cabeça de pouco cabelo, desce aos olhos, ao nariz apontado como flecha, ao pescoço curto, os ombros, o peito e barriga, a cintura, coxas e pés.

Os pés, quando o corpo não dorme, vestem sempre botas de couro, e me guiarão amanhã quando acordarem, um passeio, ir ao banheiro, até que eu, como um bebê que engatinha, aprenda de novo a andar em um mundo recém possuído. Por enquanto eu não tenho mais nada. Não tenho o poder de ver o chão que me carrega, a pessoa que me guia, não posso saber nem se meu lençol está sujo. Em compensação, sinto mais força no vento que me baterá no rosto quando encarar a cidade novamente, daqui a mais ou menos três horas. O vento ninguém vê. A dança das folhas talvez, mas apenas os mais desavisados. Não tenho alcance às coisas que tenho, pois não vejo onde estão. Não tenho projetos, me desiludi. Não tenho sequer o corpo de quem amo/desejo/quero/jogo-me, mas nisso não há problema. Nós nos vemos todos os dias e agora mesmo, e nos conhecemos de cor e salteado. Largura da testa, bundas pequenas, dedos tortos nas mãos e unhas meticulosamente cortadas uma vez por semana, as particularidades do ser humano nada impedem de tornar-se, a minha cegueira, um pouco mais feliz. O médico bate na porta. Finalmente iremos para casa, contemplando a paisagem.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Eternas ameixas

Mais ou menos sei da vida.
aprendi menina em trilhos
do trem que não tomei
mas que vi partir meu pai
à jornada sem retorno
até a guerra, em terras frias.
Vencemos,
vencemos!
e um buraco negro desmanchando
nos lençóis de minha mãe,
a forma de seus olhos transformando-se
em ameixas
inchadas, prestes a explodir
no melancólico.

O trem seguinte
muito mal adormecido
repetia-se na procissão:
a vida segue,
e toda aquela história
do rodar da Lusitana
uma Lusitana
duas Lusitanas.
Quem é essa, com tal nome?
Eu nunca nem ouvi falar
mas pelo nome de florista
deve ser boa mulher.

Pelos trilhos corria Zuquim, irmão meu
pequeno sem carnes
a cabeça desnuda
pronta para os sóis de futebol.
Por um fio de sapato ficou preso,
e então o pé inteiro
e o corpo
enjaulado na prisão
que prende ao chão de terra
e não coube tempo –
de lá afundou-se no solo
qual destino, tragédia levara
e juntos levamos, nós
por um fio sem nó do sapato.

Hoje já estou velha
a pele fina a recordar papel de seda
amassado.
Durmo cedo.
Mas toda noite abro os olhos
uma vez para ir ao banheiro
outra para esperar
que se acabe o tremer da terra
que me treme a casa,
que me treme a cama
e a cabeça, e os porta-retratos
os dedos e minha vista cansada
quando sinto que o trem passa.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Flores tortas

As luzes dos postes não são suficientes
para o que trago e tenho
de medo.

A ideia difusa
de multidão aglomerada
nesta metrópole,
e tudo em ordem,
não nos cabe
já não cola mais.

Não tenho mais nem estrelinhas
para fazer de conta
que a bússola está posta no céu,
encaixada até apontar minha casa.

Eu ando por aí
e sinto medo
no meio das pernas

a qualquer momento
podem querer me arrancar as pétalas.

sábado, 12 de outubro de 2013

As coisas

Que há com as coisas, afinal,
para terem, além de si, uma constante de segredos,
um interno transbordamento?
Uma cama quente, um abajur das madrugadas.
Que há com a coberta fina
a poltrona bebendo do sol na janela
os potes de plástico
para me fazerem, todos eles, me lembrar de você?

Você passeando pelo quintal
no frio da estação
cortando mamões e catando frutinhas.
Você e seus olhos grandes, completamente abertos,
que tiram a graça
de qualquer vitória-régia
e que nunca mais pude ver,
só de relance.

Que há com a casa, agora grande demais,
para guardar consigo seus móveis
o resto de sua comida gelada, de um mês atrás?
E guardar as histórias de sua rotina
meticulosamente iniciada às sete da matina
todo dia.

Abrir a janela para entrarem os gatos
preparar café, a manteiga no pão
televisão e caminhadas
almoço, jornal, mercado
filmes pela metade
um doce às escondidas.
As coisas te perseguem
porque guardam um naco de ti.
Porque são nelas que te percebem
enquanto uma soma de
– coisas
quase corpos, oceanos e constelações
no mínimo da nossa memória.

Mas em tudo que te pertence
sobrou uma ausência por sua ausência,
a solidão secular das coisas.

As coisas só são coisas
quando cumprem uma função
uma rota para o mundo
e a função de todas as suas coisas nesse instante
seus brincos de rosa
o carrinho de feira
o velho tear e os novelos de lã
tem a função rigorosa e difícil
de nos fazer lembrar de você

no enlace das lágrimas arredias.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Como vagalumes

Por uma estrutura total
que nada falte nem tema
que não transborde
o limite aquático
deste poema.
Por um mecanismo de defesa
capaz de atar novos nós
entre as pontas das letras
em formulações inquebrantáveis.
Correntes de girassol.
Que venha algum ser vivente
lotado de técnica, e recite
os mil versos que encaixam
o melhor poema do mundo.

Que não seja anatômico
nem eleve o divino
um poema anti-amor e anti-ódio
que não fale do poeta e do poema
da melancolia fácil
um poema sem puxa-saquismo
de infâncias, de mestres
pais, pátrias e cidadelas.
Um poema que seja novo,
e que brilhe no escuro
como vagalumes e brinquedos de criança
a me deixar maravilhada
o queixo pairando
na força da gravidade.

Venha, mundo,
venha.
Me surpreenda.

domingo, 29 de setembro de 2013

O poema infinito

Dentro da folha de papel não constavam
meus pensamentos
ou nada que é meu de direito.
Nada cabe
naquele espaço tão branco que enjoa
e sai voando com ventos quaisquer,
seja os do norte, os do amor
da morte ou do passado,
os ventos que doem no ar.

Na folha de papel havia palavras
aquilo que não se diz o que é
o indescritível.
Havia palavras e delas voariam
flores e colmeias
um par de ideias abraçadas,
não fosse o cárcere inserido na folha
que geme seus versos
e se atrofia em si mesma.

Não cabe mais nada
neste folha de papel.

Porque ela, fantasmagórica
e concreta folha
busca o couro de si
se retroalimenta,
devora.

Nunca haverá um ser humano
dentro do poema.
Nele já transitam,
não entre fibras, moldes, cortes
não dentro de tinteiros e lápis
menos ainda através de poentes
ou belezas de mulher,
mas trespassam, entre as curvas das letras
e os sons da leitura em voz baixa
os traços cranianos de mais um poema
certeiro, encaixado
nos espaços brancos da folha de papel
ainda que os tipos se espremam
e que não haja mais margens.

Um poema sem cores
completamente material
soprando os narizes
que encostam na folha de papel
um bafo úmido,
um desconcerto,
clamando por releituras
do verso primeiro e do oculto.

E dentro deste poema,
ainda mais escondido
se guarda um novo poema,
e outro.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

As portas do túmulo

Quando morri não houve festa
mas também não houve anjos, não houve fogo
não ouvi barulhos
sequer soluços
e eu,
eu nem chorei de volta.

Bati os pés,
despi o tronco,
mas aquela capela torta
filha das catedrais
calava a tudo
cortava os pulmões
em pedaços de célula morta.
Envolta em madeira e marcas brilhantes,
a capela dormia em mim
e me sufocava ao sono profundo.

Quando morri não houve sofá
não houve poltrona nem comes e bebes
não teve flores em forma de auréola.
Não houve aurora nem entardecer
nem mesmo um céu aconteceu.

Rezar para eternizar, diziam as vozes
dos bispos inexistentes
líquidos, enterrados
sulco entre as vigas
desta minúscula capela.
Sem vitrais, sem desejos
sem prazeres e segredos
sem ornamentos.
Sequer um pequeno confessionário.

E também sem pessoas
nesta última capela
a final de minha vida
onde os bispos rezam, sussurrando
encrustados em paredes de terra
sob os pés de alguns amigos,
não muitos,
que aos prantos pisam meu teto.

Eu não ouço mais nada.
A arquitetura desta capela não permite.
Estendida no altar, as costas ao chão
imito a imagem de Maria
e dou a luz eterna
ao mais eterno nada.
Eu já não existo mais.

domingo, 15 de setembro de 2013

Barreiras aos olhos

os óculos coloridos
do pequeno menino
franzino e caolho
brilham no abajur
do quarto da mamãe.

mas como pode
brilhar, meu deus
se seu olho esquerdo
enfermo
está tampado em fibra bege
de mini-pirata
da farmácia
e o olho direito
imerso em remelas
cochila na tarde chata
de sexta-feira.

brilha?
chora
enquanto dorme.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Caravelas

Caravelas coloridas nos quadros
não são as mesmas da coroa real
real de verdade, exata.

As caravelas, desgastadas em trajeto pelo Atlântico,
as caravelas tomaram-me tudo
romperam meus ligamentos
para construir pontes invisíveis
por onde passavam o brilho dourado
e o gosto marrom, quase preto
do cheiro amargo que a todos eles esquenta.

As caravelas me levaram
minhas luvas de cozinha
a cozinha que eu não tinha
e já sei que não vou ter.
Levaram as perspectivas, toda a autonomia
e também as economias
que eu mal sabia ter,
só levava comigo.

Causaram-me dores,
causaram-me fome
e, depois, quando desvalida
e tonta por tabelas,
rasgaram-me inteira até o fim das pernas
afundando na mata densa e inóspita
que não pertencia a
nenhum daqueles velhos barbados nas cores das nuvens
mais brancos que o branco
do coco, do santo.

Ah, o santo.
Onde é que os meus foram parar?
As caravelas,
no mar desdentado,
levaram de tudo
e levaram-me toda
depois de fraca, doente e já morta
por pedaços de terra
até que toda minha crença
se desmanchasse
nas águas fascinantes desse mar
como se fosse uma folha de papel.

E, no fim, tanto faz
e, bem, tanto fez.
A folha pouco importa
e seus escritos menos ainda.
É como se em mim morresse uma parte
que tão mas tão importante...
não sei sequer lê-la
nesta língua que não é minha.

O que sou ou que fui
o que quis e desquis
o que fiz:
talvez
o maior segredo do universo.

domingo, 1 de setembro de 2013

A deformação do tempo

Esta lareira
que bem me serviu no ano passado
já não serve mais.
Está suja esta lareira
suja e lotada de cinzas
sobre tudo aquilo que queimei.

Meus pés escondidos, meus pais,

o patinho de borracha que ganhei de meu avô,
os bilhetes de amor
cuja letra garranchada
ignorando a pauta das linhas
voava por dentro da folha,
a folha que agora é cinza,
um monte de cinzas
esparramado na lareira
que nem mais me esquenta.

Não me serve a lareira,

nem meus pais,
nem a sola do sapato
que de tão velho nem chegou
a ser mencionado,
os amores antigos já não bastam
e sequer voam o suficiente,
na verdade não saem mais do chão
esses amores acrófobos,
hipocondríacos.
Não me serve mais nada.

O patinho de borracha

que lembrava meu avô
derreteu na labareda
e, enquanto derretia,
deformando as feições fabricadas
de pato feliz,
parecia chorar lágrimas de meu-deus
as lágrimas que não chorei
mas ah
mais do que nunca as sentia.

sábado, 24 de agosto de 2013

Incolor

há um céu de cem cores
em meu coração
coroado da dor
de um punhado de flores
no oito de março.

Em meu coração
corroído no mundo,
os olhos entregues
no canto direito
ligeiramente roxos
veem chegar o outono
e se debruçam no chão
igual fazem as folhas secas
nos filmes americanos
que meus olhos veem
enquanto não chega o sono
(e talvez não chegue nunca)

terça-feira, 20 de agosto de 2013

O desbotamento

Que prossigam os árabes e os cavalinhos
os céus mais azuis que miragem
na margem do oásis
a que se chama hoje seu pensamento vago.

Que venham as lagartixas coloridas,
os navios cheios de luzes,
os sorvetes sem açúcar, os tubos de oxigênio e soro.
Que venha até mesmo o sibilo preocupante
da secura de sua boca,
emudecendo,
até que volte cada sílaba
de suas histórias de família.

Viagens solitárias e telepáticas
beiram o abismo num sorpo
ilegível.
Cavalinhos.
Lagartixas.
Céu azul abaixo do teto.
Durcilla emoldurada na borda da cama,
o rosto sério e cru.
Qual o nome de sua mãe?
Você está me vendo?

se mexe, você
e sonha enquanto seu corpo
se molda às dores de uma derrota
iminente,
prevista nos nascimentos,
mas você luta.

E enquanto passeia o mundo,
na brancura sem fundo da cama
sem cheiro
sem gosto
e história recente,
ainda permite que eu sonhe ao seu lado
as mãos atadas às suas
que suam, se aquietam
enquanto me olha como se visse fantasmas.

Por trás desse véu gigantesco,
a pesar mais que a doença,
está preso aos cabelos seu laço de fita
desbotados os tons de rosa
como nas velhas fotografias
da sua infância.

E que por força ou por sorte
seu corpo viaje e enlouqueça
mas que não doa ou desbote.

A saudade pesa, e para sempre
pesará se você não voltar mais.

A árvore de nosso quintal
herdeira de anos e badulaques
faz a sombra aos animais
alimenta os curiós
remonta e responde ao ciclo onde estamos.
Primeiro a solidão em caroços
depois surgir timidamente
florescer, dar fruto, dar-se o tempo
até que a cortem pelo tronco
ou que exploda em tempestade.

Se cortarem este tronco que nos junta
e permite flor e fruta,
vou-me embora e me entrego
de alimento para os pássaros.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Durante a noite

as esquinas
tem medo
e peito
e bojo
e jogo
de cintura

as esquinas
tem dores nas costas
nas coxas
tem cílios enormes
e dores nos filhos
que nascem e morrem
todas as noites

as esquinas
infelizmente
se dobram
se curvam
cruzam as ruas
que tem mão única:
que só recebem
mas não dão

essas esquinas
(muitas vezes tão meninas!)
são mesmo é demais valentes
de aguentar
tanto na vida
como se a noite
fosse o dia
e depois seguir em frente.

domingo, 11 de agosto de 2013

Dedicatória

A ti os tomates vermelhos
que escorrem, líquidos,
das pernas.
A ti, inteira, a flor
e semente e caule
e genitália oculta
entre o odor do pólen.

E os mares e a lua
(a ti!) e o sol e estrelas
e tudo que for gigante
que amantes prometem
para falar bonito,
mas nunca vão dar.

Eu não. Dou-te o que
tenho e alcanço
um livro do Graça,
cadernos de capa dura
e maria-moles da feira de doces
na biquinha de Santos
quando nos sobram centavos
para sairmos em curtas viagens.

Se eu pudesse e quisesse
te daria de um tudo,
em um tipo de amor assim
meio megalomaníaco
que às vezes me assusta
no amor pouco que vejo
nos lábios dos outros
pelo tempo do entre-aulas.

Não tenho de muito,
nem faço barganhas.
Não quero comprar-te
na base de anéis e relógios.
Te dou o que posso,
o que me dá vontade
e recorda-me de ti.
O resto eu dedico,
desejos futuros,
e assino embaixo
para que não esqueças
de quem veio tamanho presente
incoerente e solúvel
nas fibras desta folha de papel.

A ti, todo o carinho do mundo
e mais um pouco,
que é para dar sorte.
Beijos,
Helena.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Chamamento

dança um samba comigo
senhor dos olhos de vidro!
um samba de ginga e de pinga
para curar solidão
da vida moída
dos talos de vida
e calor.

e dança junto comigo!
ó moça branca e careca
ó moça preta e careca
e todas as moças do mundo
e todas as velhas e crianças
de todas as crenças e cores
cabelos diversos em tons e tamanhos
para a dança de muitas danças
até que se deite o sono
da noite para o dia,

até que se deleite o sonho
da grande Bahia.

sábado, 27 de julho de 2013

Situação de risco

Eu duvido que soltes a flecha
que a lance direto em meu peito
e, ao mesmo tempo,
também duvido que te lances,
a si próprio, sobre mim
você que tem medo
não do escuro que assombra.
Não do inverno ou da ausência das lãs.
Dos insetos bizarros a assombrar a sujeira do chão.
Você não tem medo de nada.
Mas tem medo de mim.

Eu duvido que salte e que corra
que grite na minha cara
dentro da minha boca
e, ao mesmo tempo,
que me rasgue um beijo
me tire do sério
me ponha mais louca
do que já sou.

E duvido que me olhe nos olhos
no entorno das pálpebras
na cor dos olhos semi-mortos
por horas, por dias.
Que passemos um ano inteiro
um sobre o outro.
Sendo o assunto da dúvida.
Sendo uma eterna dívida
que poderia doer e arder
e dividir cada cômodo da casa
que não temos.

Até que um de nós, o primeiro,
comece a gargalhar
ou então que chore
até não se saber mais quem exala
as lágrimas duplas
de duas pessoas
transformada em uma.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

O canto de Mariano

Estávamos conversando, esses dias, sobre a dependência da criação poética às experiências pessoais. Decidimos então fazer um desafio: Helena, mulher branca e feminista, teria que escrever um poema sobre a causa negra, e Ronaldo, homem negro e anti-racista, faria o mesmo, mas sobre a opressão por gênero. As trocas de experiência sobre as opressões que sofremos foram cruciais para que pudéssemos entender mais e apoiar às causas um do outro e vice-versa. Seguem abaixo os resultados deste desafio conjunto.



Bastaria uma noite preta
um chão preto
botas pretas
e olhos fechados,
pensavam os brancos,
para armar na festa negra
uma farra comedida e calada
sem incomodar aos caprichos
e às canecas de leite
de seus vizinhos brancos:

os que dizem fazer a ciência
em torno de si,
e fizeram da poesia
um troço branco e inexato,
poema raro,
armaram mil mecanismos
para arrancar do preto
o que é dele
roubar-lhe a música
os versos e medicamentos
roubar as salas de aula
os adereços de cabelo
os pequenos endereços
e até o barulho das festas.

Uma festa muda e camuflada,
eles pensavam,
para que ninguém desperte:
nem brancos, em sono de edifícios
nem pretos, a despertar todos juntos
sobre si mesmos.
Mal sabiam eles que a negada
já acordou unida há tempos.

Não é preciso que caia a tarde
e chegue a noite
para Mariano começar a cantar.
Mas nesta noite ele canta.
A voz sai seca, coaxando,
e ecoa entre o cimento,
pelas frestas das lajotas,
rente a cada azulejo
e passa
da festa
ao mundo
e o mundo não passa da festa dos negros
e mais um pouco,
o pouco dos brancos.

Quando Mariano abre a boca
até o fundo do seu próprio céu,
um fim de mundo na garganta,
canta
as dores de ser camuflado
ser escondido à revelia
Mariano, o sapato furado
mas por pouco tempo,
que fique bem claro.

Cantar o pão velho
não o torna macio
não coloca recheio
presunto nem queijo
mas faz o pão
ainda mais pão,
completamente pão,
duro e coberto de dias,
porém pão.

Canta-se a dor
pois a dor é ainda mais dor
para doer nos tímpanos
de quem a causa
e fortalecer cada um dos doloridos.
E vejam que a dor é muita
para a pouca porção de pão
mas a festa irá mudar,
vão haver reviravoltas,
é o que canta Mariano
e que Dona Marta chora
suspira, esfrega os olhos
calada e de ouvidos atentos,
o grande corpo de matrona,
de corajoso ventre,
posicionada em meio à roda confusa
mas plena de si.

As estrelas medrosas aparecem,
aos poucos, como gatos desconfiados,
só para ouvir Mariano cantar
e ver a festa preta dançar
nítida,
tremendo o chão da madrugada.

Ninguém dormiu naquela noite
e ninguém mais dormirá
até Mariano decidir
se a grande festa já ganhou
tudo aquilo que queria
e que lhe foi negado
durante toda a vida.

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O outro poema está neste link:
http://assimbemdepressa.blogspot.com.br/2013/07/encaminhamento-de-ana.html

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Dentro de dentro

Não escrevo
em entrelinhas.
Exponho o imaginário
num porta-retrato
de tudo que é sólido
por si só lido
sem poeta exato.

Durante a poesia
descrevo
cada incrível estrela
que não vejo
na noite nublada
e feia.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Falso eclipse

Meu amor,
e se eu te disser
que essa lua enorme
que você tanto fala
está na verdade
dentro dos seus olhos?

e brilha o reflexo
do brilho dos meus olhos
que te veem cair no sono
lentamente
como quem cai do céu
ou como um falso eclipse,
meu amor,
entre a tola corrida das nuvens.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Saudades de minha mãe

quis voltar, fiquei.
fiz feliz, mas não a mim.
de que vale tudo isso?
os sóis que partem,
as ondas a chacoalhar esta ribanceira.
vê? até os sóis partem!
e então se repartem em mil
quando passam pelos caleidoscópios de mamãe,
sua diversão diária, infantil e imatura.

seu barco se foi.
foram-se os sapatos
que guardava ao pé da cama
em desejos de promessa
não cumprida, coisa louca.

foi-se a boca de cor incolor
e os cabelos bem presos à nuca
que nunca permitiu-me pensar
na solidão em estado sólido,
permeando meu corpo todo
virginal petrificado de bom filho.

só me deixou às intempéries
sem documentos em mãos
sem décadas de experiência
ou noções de decência.
minha vida aqui largada
meus olhos, meus óculos, a camisa
às traças e às catracas da fronteira
no novo país.

por isso e por tudo o que lembro
marejo os olhos
toda vez que a vejo.
mas nunca vejo.
sobrou-me, o que? uma foto.
como eu, o resto do poema fica para trás
e nunca mais se recompões
clandestino, atracado na popa de seu navio
até que eu me afogue
ou que volte.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Mônica

Quando ela nasceu,
nasci eu
ainda que não tivesse nascido.

Quando eu rio
ria ela,
a gente não se aguentava
de dar gargalhadas.

Até que em abril
ela: Rio
(de Janeiro)
e a gente chorou
mas chorou bem pouquinho

a ponto de rir no final.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

O cão

cego
o cão atravessa a rua
o cão
no chão quente, no asfalto
que mente ser céu
e tudo
de ponta cabeça
aos olhos sem olhos
do cão amarelo
torto e esbelto
que some
que fome!
debaixo dos carros

ou será que são os carros
tratores urbanos
catarro de ar poluente,
será que são
os carros que surgem
por cima do cão?

vermelho, o cão
de olhos vazios pedindo
fechem-me.

terça-feira, 4 de junho de 2013

As linhas das mãos

as mãos não eram,
desde o princípio,
de todo, mãos.
às mãos de minha mãe
não custava levar-me ao colo
quando eu era criança.

mas as suas são diferentes,
as suas mãos,
mãos de cinco dedos
cinco unhas
cada uma
são as mãos somente suas
que te fazem fazer
tudo aquilo que faz
e de mil propósitos me encanta.

porque de todo o tempo
que juntos passamos,
cresceu sobre nós
de maneira inexplicável
o tamanho de nossas mãos
e cada qualquer motivo
para suas novas funções
que nos felicitam em dias
de chuva.

suas mãos,
imperfeitas e tortas,
de dedos delgados,
avançam e agarram
me dão de comer
nas horas que peço.

como se fossem
mãos de cetim
desfiando, aos poucos,
as linhas da vida
em meu corpo inteiro
e nu de destinos.
até que eu nunca pense
nem chegue a morrer.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Coube em mim o universo inteiro


de tanto não poder dormir
lembro que existe o mar e existe a Bahia
lembro da areia do Chile e de outras estradas rodadas

e lembro do cão
que vi se esgotar na terra batida
sob a carga de um caminhão brutamontes
as rodas manchando sangue pela rota
até se esquecerem.
e lembro do cão
o cão de pelúcia que me abraçava
quando eu, pequena, deitava na cama
e dormia de vez
como se por horas
piscasse
no pêndulo parado de um relógio.

de tanto ter que cedo acordar
não pude dormir
até o dado momento.
olhos abertos de olhos para cima
ao teto escuro, à janela fechada
olhos abertos como que fechados
achados no rosto, a serem perdidos
no sonho que não chega nunca.

o olho fechado
pensa estar bem aberto
como a mais nova luneta
de um planetário chileno
sob o controle apagado das luzes.

ali
é uma estrela?

não, é Netuno
nos meus pensamentos noturnos
de tanto não poder dormir.

domingo, 12 de maio de 2013

Urubuqueçaba


Num salto de sombras
voou o urubu em pleno dia
de carnaval e folias
por entre os grãos de areia
a trespassar suas patas sujas
e sem brincadeiras

pisava torto e sem jeito
o animal de defeitos
à caça de lixo e de queixas
do podre das maçãs
e do sal presente nos restos dos flocos de milho

depois, com certeza,
cagava o lixo do lixo
o podre do podre
a sujeira em dobro.

as crianças pequenas
arregalavam os olhos
já da infância arregalados
e davam meia-volta lotadas
de medo
como se fosse o urubu
o vilão de todas as fábulas
(e quase era mesmo)

o pretume do passarão o trajava em uniformes
tal qual vestimenta de polícia
ou de segurança assassina.
ele alçou voo, batendo forte as asas
e poderia inclusive batê-las
sobre a cabeça de alguém.

no céu de praia festiva
um mar de urubus se encontraram
em ronda sobre tudo que havia
os picolés e amores
as revoltas mais íntimas.

botaram no povo
um medo danado
e, depois, cheios de si,
voaram todos, urubus, à ilha Urubuqueçaba,
o seu quartel-general.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

O mundo no asfalto do medo

Na rua de baixo
tem um homem
cujas partes de baixo
e linguajar baixo
me dão medo.

Assombra-me os passos
de noite e de dia
sua voz sombria
que se soma às injustiças
fincadas nas sombras do mundo
durante a penumbra da noite.

O homem
que me amedronta
não ama a ninguém
e nem ama a mim
quando silva assovios
e cospe elogios
em meus ouvidos.

Não ama nem a si próprio
este homem
homem ingrato e folgado
só serve para servir-se
e cobrar os serviços
de suas domésticas.

Caso se amasse
veria a verdade
que exala nos pelos do corpo:
todo homem que se impõe
- HOMEM!
Com tudo que tem direito
vira um monstro
tal qual este ser asqueroso
de zíper aberto
volumes expostos
na busca de caça
para exercer o privado
no meio público
sob a força dos braços
e das ameaças.

O homem me dá medo
mas é por pouco tempo:
em breve serei mais forte
que os cortes e sustos do vento.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Não me esqueci

Quando eu olhar para os lados
verei somente o espelho do céu
sobre o chão de miragens
da estrada mais que sozinha,
eu na estrada vazia.

Meus amigos estão longe
levaram mala, cuia, tudo
foram cada um ao seu canto
tocar a vida
em estudos e artes,
nas novas cidades,
no dinheiro que a vida cobra
e nos descobre adultos.

No frio das europas ou
no calor do interior
meus amigos devem estar bem.
Devem cantar aos pouquinhos
e dançar escondidos
pelados no quarto
sozinhos ou, quem sabe,
com novos amigos.

Quisera eu voltar aos tempos
em que a tarde era livre
para fazermos comida
sentarmos em roda
por entre os abraços.

Pois na verdade meus amigos
são mesmo lindos
pensam no céu como um teto azul
nas nuvens como um algodoal
e gigante sinal da chuva.

Nós amigos cobramos de nós
igual:
que sejamos o nosso básico
que é o fácil que somos
quando em plena felicidade.

Quase muitos, quase todos
meus amigos já saíram da cidade
e eu fico aqui
afogada
em afazeres que me alegram.

Amanhã caço uma brecha
e, pensando,
faço uma breve visita
àqueles que por anos
fizeram à minha vida.

terça-feira, 26 de março de 2013

Cochilinho


desde que eu era criança
tinha o frequente hábito:
mal entrava num carro
já dormir
e dormia tanto
(mas tanto!)
que chegava a babar

hoje tenho dezessete
e sei bem
que verdadeira adulta ainda não sou
pois é tiro e queda:
mal entro num carro
já faço minha ridícula
piscina
de saliva

dessas breves dormidas
ficou a lembrança
dos sonhos malucos
que tive quando criança.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Noite no litoral


o mar me olha
como eu nunca olhei ninguém
não é por querer
ou por malquerer:
para ele
tudo não passa de uma questão de hábito.

como se fosse fácil
ler os céus
tornar-se estrelas
quando em noites de onda crua.
como se fosse nu
e não doesse ver seu corpo
seu ângulos, seus jeitos
que esconde em verdes águas
às vezes azuis
ou cor de areia.

bem que o mar poderia ser desprezo
o gigante
o insuportável
o rouba-atenções da lua
o movimento sem medo
mas não:
ele me acolhe
(sereia)
a mim e a toda minha inveja.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

A pistola


Podia ver o céu, podia ver a terra, e os montes, os telhados, as árvores, os grãos: não tinha explicação. Tudo começou com um nó na garganta que se desatou no molhar de olhos. Era uma gota graúda, brilhosa, mal cabia no peito. Nos cílios também não cabia, pois aos poucos desabou das pálpebras, direto para a pele fina onde se concentram as olheiras. Matias mal as tinha, por ser demais criança, mas aquela noite sem dormir deu à sua face redonda o máximo dos ares adultos que poda a sua vã anatomia. Ali, naquelas bolsinhas de pele e insônia, deitou-se a lágrima e, por questão de segundos, recuou no sentido inavançável – lá ficou, parada como quem espera no sinal vermelho. Depois deu um salto e transcorreu todos os poros quentes das maçãs morenas de Matias, num ângulo de trinta graus ao lado esquerdo quando se aproximou das concavidades infantis daquela bochecha. A lágrima permaneceu intacta. O tempo todo. Passou pelo rosto como se dançasse em pedra polida, ou se sua tensão superficial estivesse acima do padrão e não permitisse que aquele choro se esparramasse. Quando chegou à boca, sentiu a pele fina e os lábios tão pequenos, da grossura de uma linha, demorou-se mais em seu caminho e, por fim, acabou por perder-se nos limiares e entrou na pequena boca. Era uma lágrima aguada, acuada, mal tinha sal. Tocou as gengivas e sentiu o sangue das escovas de dentes mal utilizadas.

O mesmo se repetiu todos os anos ou quase, mas aquela, aos oito, foi a primeira vez, e também o motivo para todas as outras vezes. Era dia de natal. Matias corria para todos os cantos levando cadeiras, guardanapos e colheres para ajudar nos preparativos da festa. A família era grande, enorme na verdade, com um verdadeiro bananal de primos e tios. Lembrava pouco do ano anterior mas, em compensação e por malgrados, sabia de cor o decorrer de uma semana específica.

Eles nem, nesta data, estavam ainda preparados, e a campainha ressoou por detrás da cozinha. Era o tio mais velho, com a esposa por detrás, escondida em timidez. O tio mais velho sempre fora assim, motivo inclusive de chateação: sempre perfeito e de método; sempre o primeiro a chegar. Quando pequeno, corria direto ao ouvir a mãe chamando para o almoço. Chegava primeiro e fazia questão de escolher o lugar, sempre revezando entre canto esquerdo da frente e canto esquerdo de trás. Desta vez, portanto, não seria diferente, e já esperava na porta. Matias levou seus pés até o porta-chaves e, em seguida, ao portão, tudo com passos pesados, cavalares. No fundo, bem no fundo, achava o tio um pé no saco. Para quê ser certo o tempo inteiro? Acabava por demonstrar-se sempre inconveniente. Na família, se marcavam seis horas, é porque o horário de chegar mesmo seria seis e meia, sete horas, algo assim, e não seis horas em ponto. O pai de Matias, cada vez mais, botava fôlego em suas pressas a cada atraso. Bufaria, não fossem as normas de etiqueta, uma bufada de cansaço e raiva, ambos em uma mistura forte, bem no rosto barbado do tio. Em compensação:
- Olá, quanto tempo!
- Quanto tempo digo eu... você some, Agenor, até parece que nem sente falta de nós!
- É que está tudo muito difícil, você sabe. Quando tudo se ajeitar, o tempo vai render.
- Ah, eu entendo, Agenor.

Não entendia coisa nenhuma. Sua perfeição chateante impedia qualquer desvio do padrão de vida. Não fazia a mínima ideia do que estava muito difícil. Estava tudo muito difícil desde o ano de antes, da véspera, em que tudo mudou para pior. O tio voltou à sala, onde a esposa guardava um lugar no sofá, em frente à tevê aberta e seus filmes de papais noéis. Matias montava a mesa como se fosse um quebra-cabeça, detalhe por detalhe, como fazia ano a ano. Quando menor, saía tudo meio torto, e precisava vir a avó rearrumar cada talher, deixar a mesa inteira nos trinques. Então já era grandinho e podia fazer sozinho tal tarefa. Fazia com gosto, provando-se: não era uma arrumação qualquer de mesa, ainda que de almoços de domingo. Era mais. Era natal, a data mais importante para crianças depois de seus próprios aniversários. O segundo dia de casa cheia depois de apagar velas e cortar bolo recheado.

Matias até que estava feliz, mas nem tanto. Mudara muito no decorrer do último ano. Em trezentos dias para menos, havia assumido mais que tarefas: denunciou a si mesmo cada um de seus sentimentos, em um processo difícil, que machuca, rala, coagula. Foi assim que cresceu, não que seja esta a única forma de crescer, com tristezas e baques. Existe tempo feliz, bem como existe ar e terra e existe cada peça de porcelana da mesa de natal. Não podia dizer que existe pai, ou avó, ou tio. Esses todos acabam. E junto acabam os abraços e os colos, acabam os filmes no fim da tarde. Às vezes, sem nem querer, voava em sua cabeça novamente a imagem da morte de sua mãe. Esquisito para uma criança ver assim a morte. É a idade em que se cresce vários centímetros por mês, é preciso trocar sapatos e o tempo passa rápido. Mas de quê importa o tempo? É a idade em que não se imagina ficando velho, sequer adulto. Como se pairasse.

Um ano atrás, Matias já ia à escola e ia bem, por sinal. Tirava boas notas e muitas dúvidas em sala de aula. Consolidara um trio de meninos que brincavam sempre juntos, todos morando em ruas paralelas: Matias na Rua dos Rojões, André na Rua Ibisco e Márcio na Doutor Paulo. Conforme suas pernas finas se firmassem no chão – e cada vez mais se esforçassem no futebol – ambos passaram a voltar para casa em conjunto, falando sem parar sobre desenhos, jogos e atividades em sala. O pai de Márcio trabalhava durante a noite e, com sua disponibilidade de tempo, era o responsável por esperá-los no portão da escola. Geralmente demorava a chegar, para mais ou para menos, quinze minutos depois da aula, o tempo de os meninos brincarem mais um pouco. Brincar, naquela idade, parecia ser a coisa mais saudável de se fazer, mais importante ainda que as aulas básicas. Era o que os fazia correr, falar, soltar risadarias e entender o que é criar laços. Em casa já sabiam bem, não com essa palavra propriamente dita, mas com as horas de paz familiar. Assim, era rumo a suas casas que iam, os quatro, andando. Não era muito longe, bastavam quinze minutos. A primeira casa era a de André. Depois deixavam Matias em casa e voltavam um pouco o caminho até a do Márcio.

Matias tocou a campainha. A mãe sempre aparecia na janela e, depois, destrancava o portão. Do lado de fora podia ver as luzes do quarto acesas: havia gente em casa. Tocou a campainha mais uma vez. Ela poderia não ter ouvido somente; mais um toque e apareceria na janela. Olhou para trás, em um giro brusco de pescoço, mas Márcio e seu pai, de mãos semi-dadas, já haviam sumido na dobra da esquina, em exatos noventa graus. À sua frente, Dona Maria estava sentada como todas as tardes. Pois Dona Maria era uma senhora de muita idade e, paralelamente, muita doença. Gostava de criança e fazia gracejos a Matias desde que passou a morar na casa em frente à dele, falando coisas vez ou outra ininteligíveis aos ouvidos pouco treinados do pequeno menino. Um dia, sumiu e parou de aparecer no portão para olhar a rua. A doença se agravara, não podia mais passear ou carregar peso; e, de qualquer evento que fosse, por advento, se esquecia. Ficava mal por esquecer-se, a Dona Maria, em uma espécie de vergonha, como se, depois de tantos anos de vivências, se tornasse uma criatura irresponsável. Por isso sumiu, e assim ficou por alguns cinco meses, até que reapareceu detrás do novo portão – construído especialmente para ela, que não o queria e nem imaginava ser o motivo detal instalação. Estava como sempre bem sentada em seu banco de madeira, sem encosto nem almofada, mas desta vez não praticava seu crochê e tinha ao seu lado uma cuidadora muito nova, de cabelos esparsos, que podia muito bem ser sua neta, mas obviamente não era. Não havia nenhum traço comum entre elas, ainda por cima após todo este tempo de envelhecimento pelo qual sofreu Dona Maria. Era a primeira vez que reaparecia, com o fim do inverno, mas não podia ajudar em nada. Matias, de longe, balançou a mão em largo aceno, mas já sabia: ela não podia ajudar em nada. Não podia ajudar em nada porque não podia sequer ajudar a si mesma – sua cuidadora já se encarregava desta missão.

Tocou mais uma vez a campainha, a última vez antes que desistisse. Arregaçou as orelhas para ouvir o soar agitado que tilintaria direto da cozinha. E não tinha problema nenhum, fizera o mesmo barulho de todos os dias. Cecília devia ter ido ao mercado, ou ao banco, a mãe devia ter feito isso mesmo, era só para isso que saía. Ou então estava debaixo do chuveiro, logo ela que gostava de cantar durante o banho, e só durante o banho porque no resto do tempo sentia uma vergonha absurda do esposo, do filho, da mãe. Se cantasse não teria ouvido suficiente para atentar-se à campainha. Em dez minutos sairia do vapor quente que envolvia as janelas fechadas do banheiro e abriria a porta. Foi sentar-se a única opção plausível para o meninote Matias, ao lado da lancheira vazia que aplaudia à sua fome de almoço. Já o medo o envolvia como uma toalha encharcada. E pingava cada vez mais água gelada sobre suas pernas que nunca antes haviam passado por nada como aquilo. As mesmas luzes seguiam acesas, enquanto Dona Maria continuava sentada ao lado de sua cuidadora. Assim ficariam as duas até mais tarde, imaginava Matias com conforto. Elas eram um mínimo de segurança a quem nunca esteve sozinho, completamente sozinho, no mundo dos asfaltos. A cuidadora levantou-se sem pressa – do que poderia ter pressa, se levava uma vida de idosa? – e para matias, que via tudo com muito mais grandeza do que meus olhos crescidos, ela já era muito adulta, de seios saltados e cabelos amarrados. Mas bonita não havia de ser, nem para mim, que tenho a vista viciada pelo que os homens dizem ser belo, nem para Matias, que era criança e não tinha razão para ver beleza ou teor estético em qualquer gente maior. Ela estendeu o braço, e era fino o braço, para Dona Maria fazer força e levantar-se. Saíram juntas rumo à porta da sala, um passo, outro passo, mais um passo, com calma. Fecharam a porta. Do lado de dentro, sobre os tacos apodrecidos e úmidos pelas recentes chuvas, a rua inteira – era pequena – podia ouvir os passos mancos de Dona Maria, que mal se podia em pé.

Algum tempo se passou quando o Ford cinza do pai de Matias apareceu na esquina. Duas buzinadas breves se seguiram à pergunta.
– O que diabos você faz aqui fora, menino?
– Mamãe não me abre a porta.
– Que é que você aprontou?
– Mas não fiz nada! Ela sumiu, não apareceu nem na janela.

O pai já xingava. Como podia ela ser tão irresponsável? Sair sem avisá-lo? E, ainda por cima, deixando as luzes da sala acesa? Questionava a si mesmo e estava, acima de tudo, pocesso. Caçou o molho de chaves na mala e abriu o portão de zinco. O portão era horrível, mas com ele pensava se proteger das maldades do mundo. Mal sabia ele o tanto que fazia dentro de sua própria casa. Matias saiu a correr até a porta da sala, chacoalhando sua lancheira, o estômago a rugir de fome. Sentia uma mescla de alegria por entrar em casa, junto à chateação de ver o pai irritadiço com a mãe. Na certa, já sabia, haveria choro durante a noite. E hematomas escondidos sob as roupas.

Girou a maçaneta com força e fulgor, com um tanto até de amor, e gritava pela mãe aos ventos (que não existiam porque o dia estava mais abafado que nunca), e chamava. Poderia estar cochilando. O braço empurrou com força a porta enquanto o pai fechava o portão. Matias era tão pequeno, não tinha porque ver uma coisa dessas. Seus olhos se arregalaram e o espanto foi tanto que deu meia volta e agarrou-se às pernas do pai, com uma força que ninguém sabia que tinha. Nem ele mesmo. A visão da mãe morta, estatelada no chão, não lhe saía da cabeça, e gritava. Agenor correu, deixando Matias sozinho junto ao portão, e parou no limiar da porta. Por um instante ficou atônito, aturdido, e não sabia quê fazer. Em seguida, chorou absurdamente, gritando e aos prantos. Tomou o filho nos braços com um abraço envolvido, e lembrança de algo semelhante a isto não havia na memória. Esperneavam juntos, bem como juntos caíram ao chão a olhar com olhos fixos o declínio da Cecília, boa mãe e boa esposa, que se suicidara com a pistola da gaveta do marido. Agenor lembrou-se que era pai, e de súbito ergueu-se junto ao filho e saiu pelo portão. Tocou a campainha de Dona Maria e quem abriu foi a cuidadora.
– Preciso que cuide. Moro na casa da frente, e é muito urgente. Cuide que coma alguma coisa, qualquer coisa, e volto aí em duas horas. Obrigado, obrigado mesmo.

Matias, na casa de Dona Maria, chorava mais do que seu organismo podia. Ela o olhava, sorria, tentava levantar e a cuidadora dizia que não, que dissesse o que queria, e Dona Maria: “aqueles biscoitos de mel para o menininho.” Ele tentou voltar para casa, mas era impossível. Não havia ninguém que passasse pelas grades daquele portão. Enquanto isso, Agenor ligava a polícia, jogado sobre o sangue já viscoso de Cecília Sua Esposa, espiando de tudo a procura de resquícios. Não havia bilhetes, sequer erros de cotidiano. A feira havia sido feita, o almoço esfriara nas panelas, e ela estendida, estendida e vermelha, estorvando a rotina da casa.

A partir deste dia, Matias passou a visitar a avó muito mais vezes do que no passado, primeiro por não ter com quem estar quanto a ausência do pai impera, e segundo para amaciar a tristeza da avó, que a partir da lastimosa data, nunca mais trocou palavras com Agenor. Via nele a culpa de tudo, a pressão e a regra, de onde veio o suicídio como exceção. Voltaram a trocar palavras somente naquele natal, o primeiro depois de tudo, e o fizeram não por si, mas por Matias. Era o primeiro natal sem Cecília, a mãe, a filha e esposa. Ela fazia de um tudo para o dia, embrenhada o dia inteiro na cozinha. Provável é, na verdade, que odiasse tudo isso, mas nunca disse nada a ninguém porque, se pudesse, teria vergonha até de falar. Os outros convidados chegavam, todos de parte paterna, e Matias abria a porta a todos. O andar de baixo da casa se amontoava de pessoas, mas sequer Matias tinha primos que o entretesse. Juntou-se à avó e com ela, sem perceber, iniciou seu estado de braveza ante todos aqueles que mal se importavam. Ficaram um ao lado do outro, calados, como Dona Maria e sua cuidadeira, porém, desta vez, ambos se cuidando.

A hora da ceia se aproximava quando aquele primeiro tio a chegar levantou-se do sofá e, desatento, esbarrou na estante de madeira escura que, sem chamar muito as vistas, acolhia um vaso bonito, em cintilâncias de amarelo. O cotovelo malcriado passou violento e o vaso, na mais limpa porcelana, caiu como as lágrimas de Matias. No chão, esparramada, estava Cecília, nos minúsculos pedaços de cinzas que eram o único que havia sobrado dela. O pequeno Matias, num pulo, agarrou o tio pelas pernas e o derrubou ao chão. Subiu correndo as escadas e chorou seu choro agudo até o resto da noite. A avó, com pá e vassoura, juntou o que pode em um canto da sala, mas já estava tudo destruído. As poeiras da multidão se uniram em grandes flocos às cinzas; aquilo não era mais nada de Cecília. Montou ao neto um prato com todas as comidas que ele gostava e subiu vagarosa, em passos de muita idade. Chorou junto, encostada sobre seus baixos ombros. Enquanto isso, o andar de baixo não hesitava em fazer barulho e rir, rir muito, como se fosse de propósito. Agenor entrou no quarto muito quieto para dar um beijo no filho, mas não se demorou muito. Assim que desceu, Matias em seu quarto pôde ouvir o riso grosso e largo de seu pai. Por dentro de si, junto ao que lhe sobrava do coração de criança, sentia que a mãe não merecia tudo aquilo. Não, ela não merecia nada daquilo, e então se pôs novamente a chorar até dormir de cansaço. No dia seguinte, uniu-se à avó no ato simbólico de nunca mais falar com o pai, e assim o fez até o próximo natal, quando chorou, de novo, a noite inteira, como se a cada instante visse novamente a mãe morta pelas próprias mãos e pela pistola assassina do pai.