segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Orquestra

Noite gera poema
amáveis durante o dia
parece palavra bonita
parece nuvem ovelha

Poemas regem a noite
cachecol xadrez
no vagão vazio
parece sombra de estrela

Noite
         Guerra
                    Poema
a embrumecida palavra
vê janelas se apagarem
e o caos cair silente

Cidade artifícia sem estrela cadente.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Cinema brasileiro ainda existe


Semana passada a Cinemateca Brasileira estava com uma mostra de cinema silencioso e eu confesso que senti preguiça de comparecer, apesar de achar interessante. Os dias lotados, a correria, o cansaço -- achei que precisava de alguns filmes mais ágeis, por assim dizer. Mas parece que o silêncio iniciou uma perseguição às minhas últimas idas ao cinema e, não, não estou dizendo que tenham sido experiências de todo ruins. A primeira, muito pelo contrário. Para ir bastante ao cinema é preciso ficar sempre fuçando guias culturais, encontrando sessões gratuitas ou dias mais baratos. Assim cheguei em Ex Isto, filme nacional da série Iconoclássicos, que já lançou um documentário sobre o genial Itamar Assumpção e está na reta final para um longa sobre o mito vivo do teatro Zé Celso. O fato de o filme nascer de um incentivo público e por isso ter todas suas sessões de graça me fez entrar na sala com um sorriso já querendo despontar. A sensação prosseguiu durante os quase noventa minutos da novíssima obra do não muito conhecido diretor Cao Guimarães. 

Ex Isto, através de imagens lindíssimas, remonta (melhor dizendo, interpreta) livremente o livro Catatau, de Paulo Leminski, cuja história é a hipotética vinda do filósofo René Descartes ao Brasil, junto com Maurício de Nassau. O Descartes do ator João Miguel é contemplação pura, quase não abre a boca e, imóvel, parece existir na paisagem como um elemento ao mesmo tempo interno e externo. Aí brinca-se o bem pensado trocadilho do título, claramente relacionado à célebre frase "penso, logo existo" de Descartes. Aceitando a eterna mudança do ser humano através das descobertas, observações e relações com o mundo, faz sentido pensar que existir significa, ao mesmo tempo, ser algo e deixar de ser um algo passado, um ex-isto, ex-aquilo. O Brasil de Ex-Isto mistura seus tempos, passa ao futuro sem largar o passado para trás. É selvagem e vivo, e ao mesmo tempo gracioso, seja no espaço estritamente natural quanto com toda uma cidade contemporânea ao seu redor, por entre as graças e comicidades do dia-a-dia. O personagem mantém-se quieto mas diz muito durante toda a obra, recurso este que o mantém humano, ativo, como se fosse uma intervenção viva, ao mesmo tempo que o país intervém e dialoga com ele próprio e com todos os outros à sua volta.

O mesmo não se pode dizer de Transeunte, longa de Erik Rocha, filho de nosso consagrado Glauber. As pouco mais de duas horas em frente à tela de imagem preta-e-branca trziam consigo uma sequência de belos ângulos, belos closes, belos detalhes. Tudo isso no decorrer de passos da infindável caminhada de um senhor aposentado (Fernando Bezerra), que vai a lugares triviais da rotina carioca, sempre quieto e solitário. Poderia o filme ser grande coisa se conseguisse comunicar as tantas imagens capturadas umas com as outras e, acima de tudo, comunicar o personagem a qualquer coisa que não o vazio aparentemente desproposital expresso por seu não-olhar. O resultado é um filme de tédio, de pouca brasilidade apesar de tanto tentá-lo ser. Chega a ser esquisito que a produção tenha créditos a Walter Salles, pois minhas maiores recordações de seu cinema são a emoção e as vontades por necessidades. O filme Transeunte não traz o transeunte ao público -- prefere mantê-lo isolado, andando sem chegar a lugares significativos, como se pensar, criar e intervir não fossem parte de seu vocabulário. O transeunte parece, inclusive, impedir o transe da terra que Glauber Rocha mostrava. Lembro que saí do cinema cansada, os créditos rolando e um casal de pseudo-intelectuais assistindo-os até o fim, com uma expressão de grande interesse. Amanhã, saio em busca de Catatau nos sebos da cidade, transeunte de verdade, transeunte que existe e deixa o resto existir junto. E que venham os próximos Iconoclássicos!

domingo, 21 de agosto de 2011

A valsa do galho

Era bonito, oblíquo
Quase desimportava


Doía cabeças
Caía canelas
Despenteava dondocas


Que amor sempre existiu
Bruto, desconfiado
Beirando calçada
Com olhos de esguelha


Era saúde, era altura
Quase ninguém bizoiava
Era choro recatado


Soava o apito de trânsito
Hora certa toda justa
Pro menino dançarino


Passo linha
Passa linha
Passa palavra
Passo de letra


Nas nuances singulares
Simbolismo analfabeto
O menino cabisbaixo
Passeava nos versinhos


Era valsa, era verdade
Pouco antes da esquina
Na avenida sem sinal


Todo dia em hora certa
O menino desatento
Caminhava lendo poemas


Hora de sinal errado
Hora desonrar demora
Hora fora de semáforo


Dançarino era o galho
Tão bonito tão oblíquo
Segurava menino, lia dois versos
Menino parava e olhava a rua


Ontem cortaram o galho
A saúde altura valsa
A verdade salvação


Ontem cortaram o galho
(Pobre galho)
E o tronco murchou
E o menino dançarino
Atropelado morreu
A dança voada nos ventos
O poema jogado no meio da rua.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Fim de tarde

Onde o atraso de luz acende à madrugada
lamparina antiga
escada antiquíssima
cidadela antiquada

Onde a velha dos bijus joga migalha
pombos de fome
pombo desforte
pombos de gula

Onde tu já perdeste uma tiara
ouvindo a sanfona
sanfonético violino
sem falar nem me dar vistas

Onde se amontoavam os domingos
solstício matutino
suplício do ouvido
clave de verões

Onde mais haveria de ser?
borboleta ou grama seca
o silêncio de meus músicos
Um minuto ou marcha fúnebre

Onde senão velho coreto
belo coreto branco
altar manso de minha juventude

É no coreto da praça
Lá é onde vou morrer.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Quatro Segundos


Toda noite, depois do copo de leite morno que por sua vez é depois da janta, Mirtes toma banho. No inverno, ela já escova os dentes debaixo do chuveiro, para não precisar encostar na água gelada da pia. Toda noite, três segundos depois de desligar a água, uma gota gorda cai no nariz de Mirtes, que portanto leva um susto besta toda noite. Essa noite, Mirtes contou até três e a gota não veio. Olhou para cima, surpresa, e a gota atrasada jogou-se, acrobática, em seu olho direito no segundo seguinte. Na noite depois daquela, em seguida do copo de leite morno que por sua vez foi depois da janta que por sua vez foi depois da ida ao oftalmologista, Mirtes toma banho olhando para baixo. É preciso cortar as unhas dos pés. 

sábado, 6 de agosto de 2011

Piscadela

Essa exuberância que tu tens
Não vale
Nada.

Tanto ouro prata tinta
Tanto salto pedra banha
Pronome que te requinta.

Não vejo jaboticabas
Atrás das tuas negras lentes.
Tuas mãos apodreceram
Pois as de cera
Eu não defino verdadeiras.

De que te serve, caveira,
Tais apetrechos,
Se és insossa em natureza?

Belo é o mar
Aparece em transparências
Brinco de pérola é todo ele.

No mar, toda gente
É sereia, sereio
Que seja;

Se sorrisos tem janelas
No mar a dentada é bela
Pois a maior beleza do mundo
É porta aberta sem assalto
Sem estupro, morte, soco, assassinato.

Mi casa
Se casa.
E se o mar é horizonte
Cujo fim nem Colombo sabe
Façamos do mar o pleno lar
O infinitivo do verbo
Beijo, sal, dança, amor
Sorriso largo e certo.

As ondas são gargalhada
Do mar que o mundo reflete
No cílio da gente.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Vista fraca ou boa demais

Que é isso no teu olho?
Tipo brilho, negro choro
Talvez só memória antiga

No teu olho, que é que há?
Cílio longo de além-mar
P'ra dar sorte em quase figa

Teu olhar não mais confio
Nem por triste nem por cisco
Lá só tinha uma formiga