sexta-feira, 29 de julho de 2011

Passeio

Vamos passear
Por entre as praças
Pelas pedras, pelos postes
Pelas peças encaixáveis
De seu coração quebrado

Vamos passar em paz
Perceber a paciência
Dessas preces despedidas
Pensamentos passatempos
Em cidade de pocilga.

terça-feira, 26 de julho de 2011

A Malvada

Desta vez, não havia grande escada nem tapete vermelho. Nem corrimão dourado, impecável. A festa, porém, seguia a mesma linha. Diálogos intermináveis sobre futilidades quaisquer, do somente superficial ao extremo leviano. A campainha tocou e a família entrou em alarde, ó meus deus!, ansiando a chegada do irmão de um político famoso e canalha. Escondiam que o motivo fosse esse, ora essa, que absurdo!, o homem é amigo de longa data, antes mesmo de enriquecer e perder o próprio nome!, as bocas em batom bordô bradavam, invocadas, a maquilagem grossa grudando nos cantos rugosos dos lábios. Chega a tomar graça lembrar que, em juventudes, o canto do lábio parecia como um leque, era o mistério, era o flerte. Era bonito o canto do lábio assim como o canto dos olhos, canto de paixãozinha cantado baixinho, quase em sussuro. E então os jovens crescem e viram criaturas ranzinzas. Seus sussuros viram cochichos, ti-ti-ti maldoso sobre a roupa de uma ou a bebida do senhor ali -- está vendo só, que baranga! desses modos, não é de admirar que de vez em quando o marido dê umas escapadas, não é?, mal sabiam estas que os senhores do outro lado da sala comentavam justamente seu mal uso das jóias, emborcadas no pescoço molengo, beirando o ridículo. E assim, o tão requintado círculo social lembrava mais um ciclo vicioso, rígido, sobre terceiros. Em cochichos, em sibilos. 

Perto da vitrine de porcelanas, a mais idosa das senhorinhas presentes, já quase surda e toda embaralhada, caiu-se, sorrateira, em rápido cochilo. Nem ouviu a campainha.  A anfitriã num salto girou a maçaneta como se fosse de grande valor. Quem chegava era o sobrinho e sua esposa, já adultos, com uma indiscrição de meninas atrás. A festa estava entediante e, apesar de tudo, não havia nem cheiro de high society naquele salão. Porém, todos os presentes queriam parecer gente importante, sem problemas financeiros ou de trabalho. Trabalhar, qual o quê?, na frente dos outros era preciso fingir que não precisava emprego, empregava. Das coisas do mundo, ninguém fazia ideia. As revoltas na Espanha, as revoltas na Grécia, as revoltas no Chile, Tunísia, Líbia. São Paulo. Nem ideia, para quê essas coisas todas, pensavam todos. Nisso, não havia um que discordasse. Ao contrário, entretanto, se davam todos os outros assuntos, que geravam bate-boca à toa, juntando com lembranças ruins de infância de irmãos e primos só para gerar balbúrdia. As sapatilhas coloridas, joviais, pisaram o tapete de boas-vindas, na soleira da porta, e entraram. Um cumprimento a cada convidado, dando uma completa volta em torno da farta mesa de doces, que só se repete ano a ano. As meninas eram quatro. Duas delas, apêndices, não faziam grandes diferenças nem ao cenário, pobrezinhas. As outras duas, irmãs e realmente pertencentes à enorme família, fizeram certo rebuliço, aqueles sorrisos um pouco hipócritas lançando frases prontas, como vocês cresceram, estão moças, estão lindas, você é a cara da sua mãe, você pode até dizer que parece sua avó mas na verdade é idêntica ao pai!, no que elas riam de volta, sempre iguais. Seguiam as saias da mãe, para depois se soltarem aos poucos. A mãe, de rosto fino e cabelos pintados, já unira-se às outras da mesma idade, todas emocionadas com o álbum de casamento de uma das perfeitas sobrinhas. 

As duas, Vitória e Isabela, espiavam tudo enquanto mordiscavam bolo de chocolate. Eram moças bem jovens, ainda nem haviam debutado, não digo pela festa que é um porre, mas pela idade das pequenas.  Vitória tinha olhos negros e saltados, inconscientemente encaráveis, nem de ressaca nem de mel. Eram olhos de cobiça, como se cada glóbulo, pupila, íris e cílio pedisse foco, papel principal e novo vestuário todo dia. O corpo já se formava, condizente às ondas dos cabelos escuros, jogados para o lado como quem não quer nada. O sorriso dentário, pré-fabricado, repetia-se a qualquer um que a rebitasse. Isabela, algumas estações mais nova, era doce e alva, delicada feito brinco de neném que acabou de furar a orelha. No centro do rosto largo, de grandes bochechas, o nariz arrebitadinho separava os olhos de filhote. Ficava quieta, ouvindo tudo como se nada importasse além de seu pratinho de bolo de chocolate. Ria fino guardando lábios e espremendo olhos, meio fundindo cílios, quando as senhoras diziam-lhe paparicos e gracejos. Ainda não fazia as sobrancelhas. Tinha, porém, a voz rouca, contraste de si mesma. 

As duas, uma ao lado da outra, se cutucavam disfarçadas, fingindo santidades. A campainha tocou de novo e a mais idosa das senhoras acordou assustada. Levantou-se com vontades de açúcar, sem dar um trisco de atenção ao homem que chegava parecendo importante, o tal do irmão do político. Não que não o conhecesse, pelo contrário. Era ruim dos ouvidos mas a vista prosseguia na medida do possível. Lia o jornal de cabo a rabo toda manhã, durante o lanche. Não tinha era porquê se preocupar em fazer alvoroço para o tal homem. Lenta, lentíssima, rodeava a mesa de doces escolhendo qual seria seu prazer da vez. Passos curtos, inséticos. Mais devagar ainda ela andava, pois devia se atentar aos pés das muitas cadeiras que atrapalhavam o caminho. Quando chegou perto das meninas, levantou os óculos de aro grosso, incolor, como se tentasse identificar. Então foi assuntar. Disse que nunca entendeu muito bem quem era de verdade a malvada. A intromissão de Eve, dissimulada, não exclui a esnobação de Margo sobre ela. Bette Davis e Anne Baxter se cutucavam enquanto comiam bolo de chocolate, ora!, isso não é coisa que se encontre todo dia, ainda mais em uma festa chata como essa!, a velhinha riu-se toda enquanto as meninas se entreolhavam, incrédulas. Bette e Anne, quem são essas?, pensaram Vitória e Isabela. A velha, toda de bem consigo própria, terminara seus cumprimentos dizendo que as maldades não se anulam. Pegou um pedaço generoso de torta de frutas e deu meia-volta, lenta lentinha, um riso no canto da boca. Até quenfim conheceu suas atrizes preferidas, até quenfim entendera o antigo filme, sucesso em preto-e-branco, que assistira sozinha na estréia, num outono dos anos cinquenta.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Cantoria


pra Nicole, pro Barza, pro Ive (que não canta mas é amigo) e pro Pita


Ando mato e calçada
Os pés são calo doído
Bolha nos dois mindinhos
Uma unha por cortar

Trouxe junto uma matula
Trouxa mansa, essencial
Os cacarecos importantes
Em nó firme às minhas mãos:
Na toalha de um antigo piquenique
Enrolei lembranças boas
Para onde quer que eu fique
Para onde quer que eu me tente tolices

-- Em minha trouxa guardei, calma,
Um lenço vermelho 
O caco de espelho
Um riso, uma palma

Na trouxa que eu tenho
Só coisas bonitas
Cocada de fita
Vontade de empenho

Caderno brochura
A caneta preta
Fotos de gaveta
Polenta-ternura

E levo, afinada
Com frestas de vento
A fim de nem-nada
Só pra pensamento

A música atenta
Das bocas abertas
Gente que liberta
E me acalenta --

Todos os meus amigos cantam
Soltam voz de boniteza
Perco as rimas ao lembrar
Perco métrica e gramática

Enquanto vou em pura inércia
Minha trouxa axadrezada
Vai cantando meus amigos 
(meus amores)
E eu, andando, nem tropeço
Só me alegro.

domingo, 17 de julho de 2011

Feito romance de livro

A escada em espiral denunciava toda pegada como um infinito flagra. Quando o sol vinha, laranja feito quitanda, das noites calorentas, já encontrava a janela aberta. O gato da izinha, malandro de jeito, passava pela fresta que dava para a sala de estar. Lá no andar de cima, o menino de olhos pequenos. Na sala, o tapete duro de trança exata, milimetrada. Foi por conta do rangido da escada, rangido maldito que acordava a mãe do menino, que o gato da vizinha aprendera a andar pelas paredes em tipo reptílico. Depois, se engruvinhava silencioso na cama quieta do menino, cúmplice meio acordado. Poucos minutos depois, a mãe levantava em histeria furiosa e botava para fora o insistente bichano que, apesar de tudo, ainda não aprendeu a ser feliz sem ronronar.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Pré-socratismo

As luzes de celofane colorido imitavam o poncho sobre a mesa. Os colegiais, todos muito bobos, pisavam nos pés uns dos outros ao som das baladas românticas de Nat King Cole. Não sabiam muito bem o que fazer, mas iam porque, bem ou mal, viam no baile da escola o evento mais esperado do ano. Os que já tinham par grudavam no companheiro, na esperança de que ele soubesse o que fazer. Os outros observavam, enquanto enchiam a tacinha de poncho a cada dois minutos, achando um qualquer coisa para brilhar olhos de acontecer. Brincavam consigo mesmos de apostar talvezes. Ela estava bonita em seu vestido azul, de cetim fosco e alça fina. A mãe, toda graça, largara seus afazeres durante a manhã por uma semana para preparar a roupa sem que a menina soubesse. Durante a noite, esperou o sono da filha para medir seu corpo -- se é para fazer, que se faça direito, é o que eu sempre digo -- assim sempre dizia a mãe. Suas mãos leves, quase ventríloquas, arrastavam a fita métrica durante o início da madrugada por entre a pele pelada, cor de goiabeira, da menina cujas goiabinhas ainda eram botão. Ali percebeu que em algumas semanas precisaria comprar um soutien, no menor de todos os tamanhos. Porém, ainda era jeca demais para falar de qualquer coisa envolvendo intimidades, imagine então falar das suas intimidades refletidas no íntimo da filha e de todas as outras mulheres do mundo? O marido saía cedo, em relógio exato que a esposa adiantava para que ele pensasse ser rápido andando até o trabalho. Voltava tarde e assistia televisão até altas horas, pois toda noite um bang-bang diferente se explodia no preto e branco em frente à sua poltrona. Era uma poltrona confortável, pois tinha nas costas três botões brancos que massageavam a medula.

No baile, a menina olhava em volta com olhos de pára-brisa, sentada em uma cadeira confeitada. O vestido, bonito, escondia bem, seus culotezinhos, que contrastavam com seu rosto fino de gente grande. O caimento do cetim se exuberava com discrição graças à aplicação dos botões brancos da mãe, em efeito vingativo, em sua primeira tentativa ínfima de rebeldia. A barriga já reclamava do tanto de poncho que a menina tomara e, ao chacoalhar-se, fazia um barulho baixinho de aquário. Estava feliz por Denise, a amiga bonita, que dançava com um menino desejável. Achava surpreendente que Eugênio estivesse conversando com uma menina mais velha e, no íntimo, observou com olhos duros a ridícula maquiagem de Raíssa para esconder uma pequena espinha. Chegou à conclusão de que seria melhor a menina não usar maquiagem nenhuma, uma espinha não ia jogar fora seu jeito bonito. Ao lado da mesa do poncho, dois meninos conversavam e olhavam para ela, sentada sozinha. Eram meninos, no mínimo, peculiares. Um pouco estranhos, mas ela observava com curiosidade, apostando seus talvezes. Usavam óculos garrafais e tinham nomes bizarros, mas eram bem inteligentes. Apesar de tudo, pareciam saber rir. Um deles era mais carrancudo e o outro, de cachos grandes e camisa mais solta, parecia mais aberto. Ela entendeu, teria que levantar e ir até um deles, antes que brigassem e jogassem poncho para todos os lados. Lembrou-se de alguns estudos que fizera na escola e decidiu pelo segundo menino. Pela lógica, pensou escolher Heráclito pois, se Parmênides ainda nada fizera, sua teoria da imutabilidade o impediria de qualquer novidade, enquanto com Heráclito tudo poderia acontecer. Levantou-se e Heráclito, mirrado e esquisito, deu alguns passos à frente. Parmênides passou o resto da noite mijando por ter tomado tanto poncho e o pai da menina com dor nas costas pela ausência de botão no bang-bang da poltrona.

sábado, 9 de julho de 2011

Elipse

A verdadeira poesia
Tem franja torta e calo no pé
Mas sabe ter graça

Poesia de verdade
É presente de bom grado
Em coincidente aniversário

Sincronia de mundo
O trem que vem rápido
Ou a porta que fecha na cara

O desconfio da conversa
O fio da meada
A sílaba certa

A verdadeira poesia
É grafia fluindo
É a surpresa do encontro
Nada além  do eclipse,
Elipse do ponto.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Conversa de mãe e filha

Mamãe, mamãe!
Quero uma botina
Cor terra, de couro
Sem fitas, sem ouros!

Mas filha querida
Tu és só menina
De pés delicados
De canela fina.

Mãezinha, mãezinha!
Meu osso é bem forte
E a vista mira longe
Quero mundo antes da morte.

Fique quieta sem besteiras!
Não me invente mais ideias
Vai-te embora e não me és filha
Não queres mesmo uma sapatilha?

Mãe, não adianta
Sapatilha causa calo
Não foi feita para aventuras
É superficial formosura.

Minha filha,minha filha!
És bonita, és meu orgulho
Tens um pouco de desleixo
Mas botinas? Eu não deixo.


Mãezinha, mãezinha!
Quando voltar contarei tudo
Insuportável é felicidade falsa
Aventurar-me-ei; descalça.

domingo, 3 de julho de 2011

Todo o mal do mundo no prego da propriedade

Era menina ainda, dessas pequenas pequeninas. Nem ousava pensar em ser moça ou gente do gênero. Andava no canto da calçada, a mão atada à da mãe, que tinha medo dos perigos da metrópole. Foram até a locadora buscar algum desenho animado para animar o cobertor do sofá e o chocolate morno, numa temperatura que não queimasse sua língua infantil. Na volta, um caminho de edifícios baixos lembravam os anos cinquenta, os tais dos tempos dourados. As casas antigas eram simpáticas, combinavam com a singeleza do bairrinho, gentileza entre os escombros do real e grande bairro. Passaram frente a uma casa que se escondia atrás de um muro alto, escuro, de grades gordas impedindo qualquer mexerico. Fora há alguns anos a casa de um velho oficial da polícia militar, que na certa tinha medo do retorno daqueles que ferira sem motivo. Os tantos manifestantes de setenta e pouco, que morriam depois dos desaparecimentos, podiam muito bem, plasmáticos feito chama de fogo, pular o portão a qualquer momento atrás de justiça, era o que pensava sua cabeça amedrontada pela culpa de seus crimes legalizados. O policial já havia se mudado há alguns anos, mas o muro prosseguia no mesmo padrão. Dele saía um prego torto, sem ponta, prova da violência que aquela casa abrigara. A menina passou e o prego num baque puxou sua blusa de lã vermelha. Ela tentou prosseguir e por um minúsculo segundo, despreparada, deixou-se ter o corpo empurrado para trás. O pescoço criou marquinha da gola fechada, que em poucos minutos se fizera esquecido. A blusa, tricotada pela avó no inverno passado, tinha então uma das mangas esgarçadas, o enlace do tricô arrombado pelo prego. Bem menina, menina mesmo, ela tirou suas primeiras conclusões sobre os muros e a propriedade. Conclusões nada boas, diga-se de passagem. Chegou em casa desanimada, tentando de todo jeito juntar os fios de sua blusa.