terça-feira, 26 de julho de 2011

A Malvada

Desta vez, não havia grande escada nem tapete vermelho. Nem corrimão dourado, impecável. A festa, porém, seguia a mesma linha. Diálogos intermináveis sobre futilidades quaisquer, do somente superficial ao extremo leviano. A campainha tocou e a família entrou em alarde, ó meus deus!, ansiando a chegada do irmão de um político famoso e canalha. Escondiam que o motivo fosse esse, ora essa, que absurdo!, o homem é amigo de longa data, antes mesmo de enriquecer e perder o próprio nome!, as bocas em batom bordô bradavam, invocadas, a maquilagem grossa grudando nos cantos rugosos dos lábios. Chega a tomar graça lembrar que, em juventudes, o canto do lábio parecia como um leque, era o mistério, era o flerte. Era bonito o canto do lábio assim como o canto dos olhos, canto de paixãozinha cantado baixinho, quase em sussuro. E então os jovens crescem e viram criaturas ranzinzas. Seus sussuros viram cochichos, ti-ti-ti maldoso sobre a roupa de uma ou a bebida do senhor ali -- está vendo só, que baranga! desses modos, não é de admirar que de vez em quando o marido dê umas escapadas, não é?, mal sabiam estas que os senhores do outro lado da sala comentavam justamente seu mal uso das jóias, emborcadas no pescoço molengo, beirando o ridículo. E assim, o tão requintado círculo social lembrava mais um ciclo vicioso, rígido, sobre terceiros. Em cochichos, em sibilos. 

Perto da vitrine de porcelanas, a mais idosa das senhorinhas presentes, já quase surda e toda embaralhada, caiu-se, sorrateira, em rápido cochilo. Nem ouviu a campainha.  A anfitriã num salto girou a maçaneta como se fosse de grande valor. Quem chegava era o sobrinho e sua esposa, já adultos, com uma indiscrição de meninas atrás. A festa estava entediante e, apesar de tudo, não havia nem cheiro de high society naquele salão. Porém, todos os presentes queriam parecer gente importante, sem problemas financeiros ou de trabalho. Trabalhar, qual o quê?, na frente dos outros era preciso fingir que não precisava emprego, empregava. Das coisas do mundo, ninguém fazia ideia. As revoltas na Espanha, as revoltas na Grécia, as revoltas no Chile, Tunísia, Líbia. São Paulo. Nem ideia, para quê essas coisas todas, pensavam todos. Nisso, não havia um que discordasse. Ao contrário, entretanto, se davam todos os outros assuntos, que geravam bate-boca à toa, juntando com lembranças ruins de infância de irmãos e primos só para gerar balbúrdia. As sapatilhas coloridas, joviais, pisaram o tapete de boas-vindas, na soleira da porta, e entraram. Um cumprimento a cada convidado, dando uma completa volta em torno da farta mesa de doces, que só se repete ano a ano. As meninas eram quatro. Duas delas, apêndices, não faziam grandes diferenças nem ao cenário, pobrezinhas. As outras duas, irmãs e realmente pertencentes à enorme família, fizeram certo rebuliço, aqueles sorrisos um pouco hipócritas lançando frases prontas, como vocês cresceram, estão moças, estão lindas, você é a cara da sua mãe, você pode até dizer que parece sua avó mas na verdade é idêntica ao pai!, no que elas riam de volta, sempre iguais. Seguiam as saias da mãe, para depois se soltarem aos poucos. A mãe, de rosto fino e cabelos pintados, já unira-se às outras da mesma idade, todas emocionadas com o álbum de casamento de uma das perfeitas sobrinhas. 

As duas, Vitória e Isabela, espiavam tudo enquanto mordiscavam bolo de chocolate. Eram moças bem jovens, ainda nem haviam debutado, não digo pela festa que é um porre, mas pela idade das pequenas.  Vitória tinha olhos negros e saltados, inconscientemente encaráveis, nem de ressaca nem de mel. Eram olhos de cobiça, como se cada glóbulo, pupila, íris e cílio pedisse foco, papel principal e novo vestuário todo dia. O corpo já se formava, condizente às ondas dos cabelos escuros, jogados para o lado como quem não quer nada. O sorriso dentário, pré-fabricado, repetia-se a qualquer um que a rebitasse. Isabela, algumas estações mais nova, era doce e alva, delicada feito brinco de neném que acabou de furar a orelha. No centro do rosto largo, de grandes bochechas, o nariz arrebitadinho separava os olhos de filhote. Ficava quieta, ouvindo tudo como se nada importasse além de seu pratinho de bolo de chocolate. Ria fino guardando lábios e espremendo olhos, meio fundindo cílios, quando as senhoras diziam-lhe paparicos e gracejos. Ainda não fazia as sobrancelhas. Tinha, porém, a voz rouca, contraste de si mesma. 

As duas, uma ao lado da outra, se cutucavam disfarçadas, fingindo santidades. A campainha tocou de novo e a mais idosa das senhoras acordou assustada. Levantou-se com vontades de açúcar, sem dar um trisco de atenção ao homem que chegava parecendo importante, o tal do irmão do político. Não que não o conhecesse, pelo contrário. Era ruim dos ouvidos mas a vista prosseguia na medida do possível. Lia o jornal de cabo a rabo toda manhã, durante o lanche. Não tinha era porquê se preocupar em fazer alvoroço para o tal homem. Lenta, lentíssima, rodeava a mesa de doces escolhendo qual seria seu prazer da vez. Passos curtos, inséticos. Mais devagar ainda ela andava, pois devia se atentar aos pés das muitas cadeiras que atrapalhavam o caminho. Quando chegou perto das meninas, levantou os óculos de aro grosso, incolor, como se tentasse identificar. Então foi assuntar. Disse que nunca entendeu muito bem quem era de verdade a malvada. A intromissão de Eve, dissimulada, não exclui a esnobação de Margo sobre ela. Bette Davis e Anne Baxter se cutucavam enquanto comiam bolo de chocolate, ora!, isso não é coisa que se encontre todo dia, ainda mais em uma festa chata como essa!, a velhinha riu-se toda enquanto as meninas se entreolhavam, incrédulas. Bette e Anne, quem são essas?, pensaram Vitória e Isabela. A velha, toda de bem consigo própria, terminara seus cumprimentos dizendo que as maldades não se anulam. Pegou um pedaço generoso de torta de frutas e deu meia-volta, lenta lentinha, um riso no canto da boca. Até quenfim conheceu suas atrizes preferidas, até quenfim entendera o antigo filme, sucesso em preto-e-branco, que assistira sozinha na estréia, num outono dos anos cinquenta.

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