sábado, 6 de dezembro de 2014

Noite de lua cheia

Queiram ou não queiram
queimadas nas fogueiras
atreladas nas fugas dos vagões
pisoteadas, chacoalhadas, demolidas
tal qual pedaços dispersos de árvores
frutíferas
histórias aconteceram
aconteceram corpos e desejos
pontas de fumo
bocas desbeijadas
gritos e mãos e tropeços e bandeiras
e a esperança a alçar voo.
Mas também guilhotinas e facões
espingardas, pênis, força bruta
gritos de pavor;
mas também cantiga, abraço e gozo
mas também o corpo unido ao outro corpo
que é torto
que é muitos
a projeção dos corpos no mundo
e vozes e ardência e calor
e o mundo cuja história
é de terras e mulheres
o mundo que gira ao redor da lua.
Hoje é noite de lua cheia
e clareia a estupidez das falsas alegorias.
Hoje sangra.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Uma mulher parada no meio do mundo

*pensando em Mercedes Sosa


Uma mulher
parada no meio do mundo
é a encruzilhada.

Uma mulher
parada no meio do mundo
é o monumento,
é o sentido e a flecha,
o arco e o índio
é o rio - o que segue e o que fica.

A mulher que para
tem cara de América
os olhos pequenos que correm
o mundo em mil milhas.
É a mulher o pé na raiz
o milho maíz
o matiz das ervas
é todas aquelas
é a mãe e a filha
a avó que sussurra.

Mas se essa mulher abre a boca
e canta suas cordas vocais
é como se o mundo fosse ela.
O resto, torto, é desnorteio
que nem vale a pena cantar.

Uma mulher
parada no meio do mundo
é o mundo em movimento.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Origem

meu sangue
é o sangue do norte
Pará, Piauí
sangue da terra quente
terra da mulher forte.
assim aprendi.
quem quiser que me aguente.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Depois do céu

a maior lua do ano
sumiu
em seu lugar apareceu
um buraco branco e redondo
cortando o céu à tesoura
a mostrar que o infinito
não é tão infinito assim
no pretume da noite
sem estrelas
povoada por arranha-céus.

a maior lua do ano
brilha tanto
tão gigante
que parece o invisível
fenda nova no horizonte
buraco das fechaduras.

este céu
pode ser
só mais uma das portas.
e detrás da porta
há outra porta
maior que a maior lua do ano.

11.8.14


segunda-feira, 28 de julho de 2014

Na busca das coisas

Está nos corpos
guardados nas fotos.
está nas manchas nos guardanapos,
está no ar, no lenço,
no meu pensamento, pois está,
bem como no seu
modo de pensar.

Procuro, procura,
mas está por ali e aqui
está nos invernos e nos lençóis
está nos mares e sob os pés
está aos seus pés!
E bem debaixo da ponta do nariz
esquece de procurar
e limita as buscas
pelo que é provável.

Façamos o caminho contrário.

Está em seus ossos, em seu quarto,
seu modo de escrever, suas calças
está preso na barra mal feita
que escorrega pelo chão imundo.
Está no chão, está na sujeira, está na imundície do...
mundo.
Está na materialidade,
por incrível que pareça.
Basta procurar,
logo irá ao encontro.

Quando acontecer, vai tomar um susto.

domingo, 22 de junho de 2014

Uma gata grávida é uma ameaça ao mundo dos homens

E no entanto venceremos.
É o que me cabe dizer.
A resistência será brava
como uma gata grávida
prestes a parir.
Partir os escombros,
rotas abertas
espadas em monstros.

A gata ruge enquanto saltam suas crias,
invenções da biologia.
A gata no parto
se torna parteira
e ao mesmo tempo pantera.
Ninguém a segura.
Mieeeeeeeeeeeeaou.

E no entanto venceremos.
E nesta vitória
comeremos nossa própria placenta.

Feito bicho.

sábado, 24 de maio de 2014

Constelação

Pouso as mãos sobre meus seios
no vão central do peito,
os dedos acolhidos.
Os seios quentes, quentes
mais ensolarados
que os dias lá fora.

Gosto de tocar-me na pele
percorrer-me.
Aprendo agora que são belos,
meus caminhos.
Sóis não passam de estrelas.
Minhas mãos abraçam estrelas.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

O fim do oceano

Há corpos boiando
nas profundezas.
Às vezes ainda se vê
restos de luzes piscando
nos cômodos dos navios
oblíquos
ou talvez seja apenas
mentira dos peixes,
loucuras.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Diagnóstico

De amor não morreremos.
De fome, de droga, de tiro
de dores, cansaço, ciúmes
acidentes e desvios biológicos,
disso tudo morreremos.
De amor não.
O amor não serve para isso
não cria vítimas por aí.

Mas confundem tudo
tomam o amor por qualquer coisa
um sopro de domingo
pronto, já insistem ser amor.
Até um soco no rosto inventaram
chamar de amor.

Mas soco dói,
quebra,
sangra,
entorta,
emudece.
Amor não.
Amor é mais bonito.

Chega das tolices
desse mundo viciado
que gira, gira, gira
faz rotas, translada
e nunca dá passos novos.
O amor nunca matou ninguém.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Para dizer alguma coisa

Antes de tudo o que houve
acreditei piamente no trágico e no fim
das coisas.
O finito, o limite
os pulmões para o ar,
soleiras de porta.
Como se não pudesse existir
algo que seja tudo
porque sempre falta alguma coisa --
e nem é "sempre"
porque se houvesse sempre
teríamos tudo.

Quem garante que não haja mastodontes voando no céu?
Bem na hora em que se pisca
ou talvez escondidos pelas nuvens
pelos prédios atrás das cortinas
rindo.
Existem linhas retas
ou apenas segmentos?
Os pontos são quantos
dentro da palma da minha mão?
Creio que todos,
reticentemente.

As estátuas estão se mexendo,
basta olhar
mas olhar com muita atenção.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Atrasos

Não sei o que se passa
em meu ventre
nunca foi de clamar por mim
mas agora está aqui
mudo e calado
numa desonestidade suprema

essa de não me deixar
dormir
pensando quais conteúdos
e infortúnios
meu ventre prepara
ao meu futuro.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Solitária

Tive medo de baratas, Ricardo
em tempos distantes que virão.
Vi e previ, precavida
o reflexo dos vidros
e das rugas monstruosas em meu rosto
até encontrar, no estático
o relance do vento central
aquilo que move os períodos
as determinações lexicais
a luz e sombra no contraste
daquilo que vejo
e que move o foco dos olhos.

As pupilas balançam
impressionáveis
como pedaços pesados de granizo
em chuvas mal programadas.
E ainda assim
lentas
não alcançam o corpo que sentiram passar
não conseguem encostar
em coisas outras que não sejam
o reflexo apenas mal dormido
de um cômodo meio sujo,
com barulho próprios, invisíveis,
de qualquer cômodo.

Ricardo, Ricardo
já deve ter passado por passados parecidos
quando partiu para o Rio de Janeiro
quando Rita arranjou um emprego
(pobre Rita, presa em seus punhos)
e quando morreu sua cachorra branca
vítima de doenças neurais.

O medo dos fantasmas
é o pior dos medos
dentre todos o mais exclamado
ou escondido
nos escombros do que há de vivo
arfando pelos narizes.
nunca se sabe o que pode aparecer.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Quando eu crescer

quando eu crescer
quero ser
que nem a ana cristina cesar.
quebrar vidraças coloridas
e, no canto final
exposta ao mundo e à avenida da frente
encruzilhada
esconder os segredos das ostras.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Organismo

Hoje tive dor nas costas
arranquei as costas fora.

Ontem tive dor nos pés
os pés já se foram embora.

Anteontem encravou-me a unha
foi-se a unha
e todas as demais
para evitar problemas
entrando na carne lateral.

A carne lateral eu raspei no asfalto
no dia em que tropecei
e hoje não a tenho mais.

Na semana em que o sangue desce morri
com cólicas envolvendo o útero
o ventre a explodir.
Não tenho mais útero e ventre
não tenho mais sangue.

E sinto que me chega
neste instante como um prego
uma dor de cabeça...

O coração, esse sim
segue intacto
mas tão intacto que nem bate mais.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Os sons da cidade

passarinho passarinho passarinho passarinho
passarinho passarinho
passarinho passarinho passarinho
passarinho
passarinho
passarinho
passarinho
passarinho
passarinho passarinho passarinho passarinho passarinho passarinho, passarinho
passarinho?
e os edifícios.