domingo, 26 de junho de 2011

Curta-metragem

Todo dia é um cinema
(Teus cachos, teu queixo furado)
Toda câmera é persona
(Tua sombra, tua fumaça opaca)
Todo amor é coisa boa
(Nosso filme independe dos créditos)

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Metalinguarte

Outrora já fora primeira linha, modelo de exemplo. Daqui em diante, como o tem sido ultimamente, há de viver rangendo. Até que pare, e então não tem volta. Era lento o elevador, de fundos botões cujos andares apagados só a ascensorista conhecia. Tinha já rosto enrugado e cabelo rarefeito, mas seu gosto por puxar conversa mocejava toda ela. “Oitavo andar, né? Como tem ido? Sabe que nesse frio eu sofro, né. Ai, minha rinite, minha sinusite, quase arrancam meu nariz pra fora!” No que Heitor respondia monossílaba e sorria largo, ponta a ponta, observando o pisca-pisca dos andares sobre a porta. Marcava presença no velho edifício pelo menos uma vez na semana, que lá se concentravam seus afazeres. A ascensorista prosseguia o papo enquanto atentava nas noticias levianas de seu radinho de pilha, que por uma corda fraca ficava pendurado em um dos botões inúteis do painel. A porta abria, feito som grave de piano, e Heitor saía acostumado, sem tropeçar no desnível entre pisos. A grande porta, trancada, demonstrava o atraso do maestro Aurélio, que sempre brincava ter pulso muito fino e perder por isso a hora. “O relógio cai no chão e, depois, nunca mais, não é?” era seu cumprimento quando deixava o garoto esperando. O corredor desembocava em uma pequena sala, que por sua vez se bifurcava em duas escadas, para cima e para baixo. Na última parede, uma janela solitária marcava presença. Heitor se debruçava em seu parapeito todo dia que o maestro atrasava, mas não gastava muito tempo, não. A vista era chata, só levava a velhas passeando com cachorrinhos de raça ou a uma e outra persiana de escritório. 

No frio, que é tudo mais quieto, um pombo gritou lá do alto do céu. Só como gritou, foi-se só, talvez até um pouco cabisbaixo, vagueando nortes-suis. Heitor levantou a cabeça que, gélida, rangeu como o idoso elevador. A pomba já havia ido embora, e talvez já houvesse pousado em um poste qualquer ou até soltado suas alvas merdas em cocorutos quaisquer. “De quê...” importa, ele completaria a própria frase, caso esquecesse que sua voz fazia som e ecoaria por todo o corredor. Heitor subiu os óculos e o céu estava branco, num chove não molha com um quê de garoa ou toró, um dos dois havia de ser. No prédio da frente, porém, dois andares acima, uma pequena janela aberta esvoaçava as cortinas cor de vinho. Eram finas e translúcidas, essenciais. Entoavam mudas, ao som do vento, a dança do ventre de seu tecido algodoado. 

Heitor forçava os olhos e as cortinas lembravam seus tempos de menininho, quando nas férias ia à praia com a tia e com ela fazia as pipas mais bonitas, do melhor papel de seda. Por detrás dos lenços, a janela exibia o interior da sala, que parecia aconchegante, apesar das paredes brancas de reboco. No canto, de boca calada, uma mulher olhava nada. Cor dos olhos não se sabia, nem qual forma tinha a boca. Se tinha seios fartos ou cabelo cacheado, não, as cortinas não permitiam tanto. Só se sabe que examinava as paredes, meticulosamente, intacta e imóvel como se pombos não gritassem. Como se elevadores não rangessem e relógios não delimitassem o tempo. A janela de Heitor, no fim do corredor, era nua de tecidos, e nem assim ninguém olhava. De quê importa? Se o coitado, sem mais falas, só sabia olhar pra lá. O rapazote, de penugem despontando sobre os beiços, parecia guache seca, com suas rudes feições. 

Seus óculos, escorregando pelo nariz oblíquo, precisavam maior grau. Rapaz, crescido, poucas falas. Arrancou, brusco, a mochila das costas e do bolso da frente pegou com dedos delicados uma pequena câmera de filme, da época de sua tia. Das trinta e seis poses, esta fora a sétima. A revelação demoraria em proporção aos atrasos do maestro. Em agonia, ouviu o abrir rangedouro do elevador, de onde saltou o Maestro Aurélio, com a mesma graça de sempre. Heitor riu seco e virou-se rápido, de uma vez só e sem titubear, que não gostava de despedidas, mesmo que irrecíprocas. A semana passou rápido, em fotografias aleatórias pelas calçadas rotineiras, num desespero desejoso. Na vez seguinte, de novos óculos e mesmo intento, saiu do elevador aos tropeços e encontrou o Maestro Aurélio bem à porta, procurando as chaves na enorme mala de couro. A chave tilintava lá dentro e ele, meio cegueta e com calos na mão, custou a encontrá-la. Heitor esticava a cabeça para frente, inquieto para começar logo aquilo e sair para a janela. A revelação se completaria no fim da tarde, na hora em que as ruas lotam. Quando saiu pela grande porta, a voz enroucando os desafinos de minutos passados, debruçou-se à janela do corredor, que era feia e sem cortinas, sem mistérios para sonhos se remoerem. Os pombos passavam e gritavam, coisa normal da gigantesca metrópole. Mas, dois andares acima no prédio da frente, a cortina estava em total reclusão. Os ventos não sopravam, não abusavam da boa vontade da mulher que ao nada olhava. Talvez ela, só com a gelidez seca da vista, os tivesse mandado tomar rumo e parar de curiosidades nela. Ou quem sabe, quem sabe?, podia ter acordado doente, gripada, com tosse, enxaqueca ou dor de garganta. Podia ter saído com o marido ou com o amante, podia ter ido ao mercado comprar a janta, vai saber. 

Não ventava, mas Heitor fechou o vidro da janela e foi-se embora de cabeça baixa, prestando atenção aos leves movimentos do corpo e ao apertar do botão do elevador. A ascensorista chegou rápida, como se estivesse de tocaia, e comentava a gravidez de alguma atriz das novelas noturnas. O rapaz riu, sem-graça e, ao se despedir, percebeu que não fazia ideia do nome da ascensorista. Foi-se rápido antes de perguntar, e a ele só restou maquinar qual podia ser, enquanto esperava o ônibus na esquina. Em casa, abriu o envelope com cuidado, como se desdobrasse um origami para depois seguir os moldes e montar mais uma vez. A mulher fora encantadora por não pedir nada a ninguém, implorando canto ao mesmo tempo. A fotografia ficou bela, com a luz no ponto certo e o foco mais perfeito. A cortina imobilizara-se no flagra, desnudando por completo a janela da tal mulher. A fotografia ficou bela e a mulher, que era tão calma, fora fruto das mãos ágeis de algum pintor qualquer, de assinatura desconhecida. Heitor emoldurou a mulher, metamórfica e metonímica, bem ao centro de sua parede branca. O elevador, dias depois, ruíra. Era preciso subir pelas escadas, o que atrasava mais ainda o Maestro Aurélio das pernas fracas. Heitor ia à janela, levantava os óculos, mirava as pombas evitava meter olhos no quadro da mulher que via tudo. Via tanto que fingia zombar do coitado, só pra judiar, só pra fazer arte.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Café perfume

Quantos dias, quantos dados
Quantas noites de mil fados
Nessas noites de falências?

Marieta na cozinha
Beirando avental queimado
Todo flores corderrosa
Em lembrança de um natal

Na janela, Marieta
Íris rude sem jardim
Peito murcho de parado

Da janela, detrás cerca
O perfume da vizinha
Cheiro caro da vizinha
Que chegava em Marieta

Quantos dentes, quantos dados
Quantos doces redimidos
Às dosagens de indivíduo?

"Marieta, ô muié
Teu café tá água pura"
Sem aromas europeus
É só lágrima barata

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Os nomes da revolução


Amor é revolução. Sexta-feira, a tarde livre e animada, ainda úmida dos pingos gordos da chuva de ontem. Saí do cinema como que amando. Revolução é mais um, talvez o mais imprescindível de todos, dentre os nomes do amor, captados com maestria pelo diretor francês Michel Leclerc. Integrando o Festival Varilux de Cinema Francês, Os Nomes do Amor traz uma nova França, que explode humanidade e expressão. O belo trabalho da fotografia não presta para afrancesar as cenas com paisagens, marcos culturais e vielas bonitas, mas sim como incentivo ao poder das pessoas. A França de Leclerc, fascista, xenofóbica, ressentida e escondida, se escancara pelos corpos, não pelos meios. A França de Leclerc, politizada, vai além da chatice blasè que se idolatra no tal cinema francês. A França de Leclerc traz a história de amor entre Bahia Benmahmoud (Sara Forestier), moça extrovertida de origens árabes, interpretada por e Arthur Martin (Jacques Gamblin), um homem mais velho e recatado de origens judaicas.

Bahia, cujo crescimento se consolidou com grande viés esquerdista, inventou seu próprio tipo de militância, a partir do famoso dito hippie “faça amor, não faça a guerra”. O amor de Bahia é política pura, pois consiste no sexo como ambiente argumentativo. Em um caderno vermelho já bem recheado, ela registra todos os homens de extrema direita que, após as palavras revolucionárias ditas durante o sexo, tornaram-se pessoas muito melhores. É sabendo isso que Arthur Martin, o estereótipo do homem desinteressante, aprende a lidar com Bahia e todos os conflitos que ela acarreta. Enquanto Bahia tem orgulho em exibir suas origens familiares, Arthur esconde as próprias, reflexo da atitude da mãe, que sempre se calou sobre Auschwitz e envergonha-se de não possuir nacionalidade francesa, diante da retalhação indireta vinda da direita francesa. Os olhos enormes de Bahia, a saúde de seu corpo e os cachos de seus cabelos fazem Arthur se libertar mais e conhecer coisas novas. Ao mesmo tempo, ela sempre soube da visão política esquerdista de Arthur. Vai atrás dele sem o intuito de “desreacionalizá-lo”, porém é impossível dizer que não causou nele revolução alguma.

Em meio a situações cômicas e bem-humoradas, Os Nomes do Amor é um retrato divertido da Europa atual e, mais profundo ainda, dos pedaços de passado presentes no cotidiano contemporâneo. O cotidiano contemporâneo, independente do lugar, pede amor. E é com amor que cenas inteligentes se exibem, maduras, na tela do cinema. Bahia e Arthur vão juntos à feira e ela pergunta o valor de três lagostas. Diante da resposta cara, ela pergunta quantos caranguejos podem ser comprados pelo mesmo preço, no que o feirante responde serem sete. As cenas que se seguem, risonhas, são um dos muitos ápices do filme, que se revoluciona a todo instante, à medida que o amor dos dois se revoluciona. Pela estrada, vai o carro deles até o litoral, com a caixa de caranguejos vivos, prontos para serem jogados no mar. “Por que a vida das lagostas vale mais que a dos caranguejos? Sinto pena das lagostas”, diz Bahia, aflita e inquieta como sempre. Na praia, o casal faz da revolução o amor, em câmeras nostálgicas que parecem, todo o tempo, ter como foco as coisas boas ou, mais ainda, as coisas ruins que podem vir a se tornar boas. Porém, ainda inconformada, a moça prossegue a linha de raciocínio: “é melhor salvar sete caranguejos do que três lagostas, não é? Digo, eu posso salvar quatro vidas a mais. Mas... e os camarões?”

O filme acaba, os créditos rolam e uma alegria invade minha sexta-feira. Saí da sala escura e o vento frio havia cessado. Nas escadarias da Gazeta, onde duas horas antes todos os estudantes da região se sentavam para rodas de conversa, só um ou outro prosseguia. De olhos atentos, como costumo ficar após idas ao cinema, pensava sobre Os Nomes do Amor sem conseguir encontrar palavras concretas para ele. Na escadaria, um moço bem novo, de barba rala, estudava um calhamaço de folhas xerocadas, cujo autor tinha letras miúdas mas o título, garrafal, era só o que eu precisava. “Amor e Revolução”.


  

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Caixas



"É o mistério profundo, é o queira ou não queira" (Tom Jobim)


Gosto muito de caixas. Grandes e pequenas, de sapatos ou brinquedos velhos, de surpresas ou descobertas. Caixa que fecha sempre há de abrir, e por isso gosto também das tampas das caixas. A verdade é que gosto muito de tralhas, sempre me deixam com uma impressão de que elas um dia, vai saber? venham a prestar para alguma coisa. Não que eu tenha muito tempo de sobra, mas quando essa folga aparece costumo me dedicar a decorar as tampas de minhas caixas, talvez para lembrar de abrir depois. No verão tinhoso das férias, lá estava eu arrumando as bagunças de casa. Sóis abertos e janelas em nulidez, era um tanto gigantesco de caixasque, carambolas! o tempo nem cabia em caminhadas matutinas. 

Nas caixas menores, os velhos amigos playmobils e dedoches, nadando em um mar empoeirado de clipes e rebarbas de papel. Nas caixas maiores, cadernos e provas dos tempos de ginásio, cujas respostas absurdas faziam valer o dia de cansaços. "O texto é muito legal e interessante", dizia eu-toda-boba sobre uma croniquinha juvenil. E, enfim, a caixa mais esperada e embolorada, porém a mais vitroleira de todas. Abri com cuidado, lembrando dos causos que vovó contava nas tardes de tempinhos atrás, tudo sobre as desventuras daquela família distante (o Nordeste não é tão perto assim daqui!) que, vejam só!, também me é. Foi nesta caixa que descobri minha amizade, uma espécie de hereditariedade. Enriqueta, que fazias tu ao lado de mamãe naquele outono tropical de 86? Enriqueta é amiga antiga, não só sábia mas também sabida e sabichona. Entende o ser humano melhor que qualquer um, porque sabe ler os olhos de toda gente, claridade foco abrigo. Mamãe pode até ter crescido, mas encontrei Enriqueta num desses cantos da cidade, uma graça feito sempre, e com ela passo bem. Acontece que Enriqueta é a cinquentona mais jovem que eu conheço, encoraja o mais deprimido dos homens a levantar e andar além-bairro. Ela canta baixinho para mim, toda sinestésica que só. Faz-me bem a Enriqueta, faz surpresas que transformam negativos em bondades que foram e ninguém nem lembra data porque se espicha além das ampulhetas, todo matte. 

Dia desses fomos juntas viajar, que o interior paulista é sempre uma delícia. Café, queijo e pão caseiro, bolo de frutas, o galo que ressoa o início da manhã feito reinado solar. Aquilo tudo que não precisa adjetivo. Eram bonitos os dias no sítio, acabavam com gostinho matutino, talvez também de matutâncias. Começava farto de amarelos, seguido de uma baita preguiça e alguns parágrafos de fibra de papel. Depois, hora de botar os pés pra funcionar. Que coisa bonita, sô! É boi (ê, boi!), é cão e canção. É grama de forças, é borboleta de asa capenga e é uma botina no meio do caminho que, ora essa!, antes fosse, pelo menos, bonita. Enriqueta aguentava as incertezas do morro e dizia sem reclames tudo que tinha pra contar, feito causos de vovó, feito caixas da infância. Que dentro da gente sempre tem uma parte meio caixa; só precisa ter jeitinho de abrir e fazer toda tralha ter sentido. Que vezenquando as tralhas se encaixam e isso eu não sei se pode chamar de amor, mas a esperança dos olhos de Enriqueta dizem que sim. E veja lá, não estou falando de amor besta, longe disso. Esse amor é amor todo, é dar gosto no outro em ser mais um outro. Que ser sempre mesmo tem vez que chateia. 

Enriqueta, eu só tenho a agradecer, muitobrigadaliás. Talvez a graça das pseudonaturezas seja pescar o que é pseudo, pseudônimos do homem. Uma botina, um ancinho, um tijolo e os ventos com uma voz de Elis Regina. Enriqueta, querida Pentax Spotmatic de meus piscares, tem conseguido abrir caixas entrincadas do meu quarto e da varanda que se abre dele feito apêndice e idolatra as luzes da manhã. A nossa antologia analógica cresce aos poucos, de trinta e seis em trinta e seis. Que toda caixa aberta guarda resquícios para tocar a campainha e trocar palavras com gosto de sítio. O que já é belo não é muito de meu gosto. Já está pronto e qualquer respiro deixa mais feio. Gosto mesmo é daquela ranhura ou pedaço de tralha, daquilo que pode ser, daquele belo que não se faz sozinho, mas que se revela só depois, em construção.