terça-feira, 31 de agosto de 2010

Conjugação


...e assim foi embora. Não que fosse das mais importantes. Não que fosse das melhores ou mais competentes. Não que tivesse grandes epopéias ou pudesse contar uma odisséia. Foi embora assim seca, assim crua, assim sem grandes dores. Na verdade, foi embora estática no lugar (já que tudo depende do tal referencial). Sem desmanchar-se no ar paulistano, sem qualquer brisa piegas (que já não passa de briga com a linguagem). Só sumiu, sólida, insólita, numa solidão momentânea. Assim ao deus-dará, logo seria recolhida pelos passantes necessitados de quem possa acolhê-los. Não vi quando se esvaiu de minhas mãos porque o calor equatorial pede abano, e não apêndice ou carga. Eu matando saudades amigas com gente das antigas, e ela lá, vermelha e quente, enrolando-se a meus braços, pedindo: carregue-me, por favor!, não me esqueças, pois deves lembrar que de estações é feito o ano e o caminho de trilhos!, que minhas formas e dobras de algodão doce já se adequaram a teu corpo também nem tão perfeito!, não caibo em pretéritos, mas até que aguento alguns meses em um armário, sabendo que voltarás a me abraçar por cima de ti! 


Não dei muita trela, o calor naquela viagem me estonteava, a saudosa colega de escolas passadas me contava de presentes, duvidosos futuros de pretérito, ríamos de imperfeitos passados nostálgicos, e havia uma quantidade um tanto quanto absurda de belas moças no específico vagão. E ela ali, pedindo um envergonhado suplício, acalorando-me mais ainda com seus fiapos e botões cor de batom. Eu levaria ela comigo sem pestanejos, admito e confirmo: não era má assim, e me dava muito gosto quando eu pedia proteção de ventos cortantes. A verdade é que sou malagradecida, é isso mesmo o que confesso. 

Desci do trem em alegrias férteis e caminhei pela avenida de artesãos, empresários, amputados, estudantes e modernosos. Aquilo estava cinematográfico demais, eu já devia ter imaginado. Os passos em compasso, a sincronia do piscar alheio com o mastigar de uma senhora acolá. As esquinas continuavam, todos semáforos a meu favor! E então, num mais-que-perfeito que parecia mais um imperfeito, conjuguei a rotina do dia, passo a passo, em análises de nossa relação quase conjugal dos tempos gelados, mas só vi a ausência dela, que agora esperava que alguém a catasse em alguma estação, num entupir-se de sangue, hematoma, que na verdade era a cor dela mesmo: como diabos fui esquecer a simplória blusa vermelha, de lãs tracejadas, no metrô? Oras bolas.

E afinal, tudo isso teria sido mais belo (porém não menos corriqueiro) se ela tivesse voado do varal, dançando e apontando a direção do vento, passarinhando com tom de pirata, os pregadores ao chão, vencidos.

domingo, 29 de agosto de 2010

Chatice vespertina (Terça-feira III)


Agora o verde já não é mais aquele verde. As folhas continuam vivas, isso eu sei, mas não me minta dizendo que a cor é a mesma: tenho acompanhado o cair leviano da sombra. Pois eu estou aqui de cotovelos à janela central. Qualquer falha na coragem rígida da trinca que mantém o vidro levantado trazendo-me brisa, e essa camada-vitral transparente de existir opaco me mata, cabeça para um lado e corpo para o outro, frações rolando pela rua ou por meu quarto de tolices desmundadas. Fechar a janela pode ser ou proteção ou covardia. Mas ah, paremos com isso, não me faça pensar em egocêntricas tragédias, ridículo maior não há! Além disso, a tarde está bonita! Emolduro em minhas palavras o eco dos pássaros camuflados. Cadê os pássaros desta bela melodia orquestral? Pi-pi-pi!, passarinhos, venham cá!, tentem-me ao mundo e escolham meu vestir-se como fazem à Bela Adormecida! Olho o céu e só vejo o avião em réptil lerdeza, em translucidez poluente de aparente inocência.

Minhas costas agora doem fininho, estou em posição de binóculo há tempos já! Mas aqui valsa uma brisa tão filhote... delicioso seria despir-me agora (creio eu, pois acabei por não testar). A cabeça me pende ao lado, alguns milímetro no máximo, não me duvide!, se sentir necessidade cate uma fita métrica e meça você mesmo, oras! Um piscar de olhos um pouco mais prolongado cairia bem, não se preocupe, não vou cair-me! Cochilar é dormir em alerta, lembre! Se eu vestisse os olhos com óculos escuros, ninguém nem perceberia. 

Cadê minha sombra, você a viu? pois ela estava bem aqui ao meu lado, emagrecendo minha silhueta, e agora...? Ah, sombra, aí está, mudou-se de lado comigo, só isso, engordando minhas formas já meio tortas. Por isso o verde fotossintetizante mudou, jaboticabas saltando de seu caule cor de cabelos. Na copa ainda sobra um raio de sol, ali as folhas se distinguem pelos amarelos que as invadem, amarelos patriotas momentâneos de vida e não doença. Ah, isso parece tom de cartão-postal. Nos extratos mais de baixo, o verde se crepuscula, a sombra está invadindo os arbustos mas a beleza ainda está, melancolizando em rondas junto de bem-te-vis e pardais. Janela é coisa bonita porque abre a sombra, parte com ela. Atravessando a janela partem jovens enamorados de épocas distantes e distintas. Janela é parte da casa, é o quadrado do cubo. E, ai!, eu bem que me avisei, ai!, que impropério de ações!: e agora, nesta calma estática de mundo quadro, recorte urbano, é a janela de trava hipócrita que me parte e decepa, corpos aos dois lados: agora sim minha cabeça deve estar rolando (ainda bem, convenhamos, isso já se tornava tedioso, esse em cima do muro, despejada à janela e ao ócio, de medroso olhar o mundo). As cores se transformam pela luz perspectiva, ah maravilha!, assim como um corpo navega a vida. Pois a folha que cai não é falha, é precisão da estação.

(ultimamente tenho vomitado textos-lixo. perdão.)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Vida: Verbo Vírgula

Eu virgulo
Tu virgulas
Ele virgula
Nós virgulamos
Vós virgulais
Eles virgulam

Ponto.



quinta-feira, 19 de agosto de 2010

De um rápido desespero infantil



Vem cá, meu querido! Quer dançar com a vovó? - Mas o que raios pensava aquela senhora de mangas bufantes? Ela estendeu o braço pelancoso e ofereceu a mão nodosa de brilhantes unhas descascadas nos cantos. Sorria. Sorria. Mantinha-se sorrindo. Sorria estatuamente, sem qualquer movimento minimamente fotográfico. O molecote hexagenário encarava atônito a sexagenária que armariava em sua frente. Os olhos foram subindo de leve, enaltecendo o contorno, e ele se empenhou na frustrada tentativa de esconder-se sob os gigantescos cílios de criança. Mas como tinha cílios lindo aquele menino, cada um deles sorrindo a todos os ângulos possíveis, todas as pessoas ao redor. - Luquinhas, por acaso um gato comeu sua língua?! - Um riso de medonha capenguice ecoou como montanha-russa nos caminhos do ouvido de Lucas. O garoto, que antes comia brigadeiros e doces de amendoins naquela festa-para-adultos-que-mamãe-obrigou-a-ir, agora retorcia os dedos atrás das finas costas. Pois afinal, tia-prima-avó não é vó. Tia-prima-avó tem casa cafona e não sabe a idade do suposto netinho. Tia-prima-avó é assim chamada porque tem nome desconhecido para infantes de encontros centenáricos. 


Lucas, com ávida esperteza inocente, espalmou as mãos no ar, mostrando toda a melequeira de chocolates e doces encocados que, sejamos sinceros antes de qualquer encucação, não foi tão sem querer assim, tão coisa de criança assim. Em pressas tontas, soltou um sorriso desengonçado de leite, esgarçou as falsas gengivas, idosamente veloz, e disparou pelo salão de tédio, entre velhas reluzentes, batons, delineadores, luzes focais, gravatas e chapéus. Um banheiro, um banheiro!, é preciso encontrar um banheiro, é preciso lavar as mãos e esconder-se no colo de mamãe! Por entre crepes e nomes, o peito em erupção, encontrou à porta metálica uma moça de longas rendas e adornos e até que um certo salto, sem cabelos desgrenhados, mas de rugas ao léu do relógio, aquela tal mamãe. De compostura bipolar, a mulher tratou de tratorar qualquer dizer ensimesmado do filho, perguntando em tom orangotango o que era todo aquele chocolate nas palmas da mão, chegando até os punhos, Lucas do céu! 


O menino foi se esgueirando com os pés quase polegares na direção da Santa Pia do Banheiro, (ah pois essas leviandades são o verdadeiro divino,) mas a voz grossa da mãe irrespondida foi irresoluta, entre valsas burguesas e boleros entorpecentes. Olhou a mulher cuja personalidade se duplicava, os olhos marejando de dúvida, em dívida consigo mesmo. Por que teve de ir à festa? Por que, se é para ir à festa, não podia passar o tempo enamorando-se aos doces magníficos? O terno duro de inutilidade e inusilidade começava a tornar-se também pasta, o que deixava a mãe ainda mais indignada, louca mulher. Empurrou a porta com o ombro e arrancou-se para dentro do banheiro, os braços dentro da pia molhavam as mangas por completo, num encharco irremediável. Saiu com todo o frescor humano, a água geladinha arrepiando-lhe a derme. Criança é gente engraçada, refletindo o mundo em si toda, num relógio alucinado de ponteiros atletas. Abraçando-se à mãe, que esperava atônita à porta do banheiro e agora já havia percebido a auto-ignorância de intransigência plena, foram juntos à mesa, embora ele tentasse conduzir, em coreografias tortas, os passos em direção à chapelaria. A tia-prima-avó dançava agora ao longe, em gargalhadinhas moçoilas, com um pobre menininho desconhecido, que provavelmente estivera distante da ilustre mesa de doces. - Mãe, vamos embora?

sábado, 14 de agosto de 2010

Dorme a cidade










Dó. Dó. Dó. Descobriu-se o dó. Em seguida vem o ré, depois mi, fá, sol, lá, si, e a dó volta. Entre as estacas de mausoléu há uns saltos pretos, de complicações maiores. O cabelo meticulosamente trançado de Carmem espanava o piano, este que se fazia mais casa que o lar em si, paredes porta janelas cama banheiro. As mãos estranhavam, ela não sabia fazer a música com o piano. Os dedos gélidos de inverno se embrenhavam e contorciam feito pernas de aranha, a mão sendo o corpo, e qualquer som que saía daquele armário de cordas percutidas era aleatório, com um existir-se cheio de vazio. Só estava, pois as férias para ela chegaram, mas aos pais ainda havia trabalho e janta fria. As unhas tortas carcomiam-se para os lados, folhas descamando, partitura na ponta do dedo: Carmem sentia-se mais pluma ao rodopiar os dedos entre as teclas, cada respiração à flor da pele, à flor da carne, à flor da digital que apropria-se do ancião piano num tocar registro geral, momentâneo. Dó. Dó. Dó. As meias não esquentavam nada, só pinicavam mais ainda o rebuliço branco que a tremedeira dos dedões causava. O banco arrastou-se para trás, e nisso os joelhos de Carmelita espreguiçavam-se, o relevo da meia tatuado na coxa esquelética da moça, que nos tempos de vento cortante acocorava-se sempre, na situação que fosse, lembrando uma coruja de exacerbados olhos.

Andou de um lado ao outro do piano, metida, de dedo arrebitado fungando aquele cheiro aranhoso de segredo ancestral, e depois tocando-o todo com as pontas dos dedos, que atuavam pertencer a uma pianista ou poetisa. Transformou o fura-bolo e o pai-de-todos em pernas do simpático hombrecito que dançava um tango cantarolado de improvisos, às margens das teclas, no braço envernizado do velho músico. O hombrecito transformou-se em sensual cantora de blues, desfilando sobre as teclas com voz de fundo piano, palhetas escondidas. E, num tique, a cantora vira uma partida de dominó entre velhos. Mas as pecinhas de madeira do dominó, Dó, fazem fila e derrubam-se de ponta a ponta, de dó a dó, rindo no Ré: um riso arrasador de fugacidade salta dos lábios despontantes de Carmem quando os dedos correm pelas teclas fazendo um som único, mundo, uma espécie de choro animado, ou triste gargalhada... uma onomatopéia maior, gigantesca, decibéica de palavras, quilométrica de passos. Um palíndromo oposto se toca quando os dedos voltam ao dó agudo, partindo da gravidade. 

Com olhos de luneta, fuça cada nó da madeira e cada risco no verniz. Descobre atrás de vasos alguns portarretratos de careta moldura, num estilo coríntio sem dotes, sem brilhos perolados e sem a graça ocre do minimalismo seco, rio cheio. Por dentro do vidrinho sujo, fotografias em processo de desmantelação de um tempo que dela não é. Tempo de novos adultos barbados, tempo de acampamentos, fogueiras, praias e lamaçais, tempo de alegre fossa com companheiros naquelas bebidas que corroem a garganta. Tempo de barriga aventureira e útero deserto. Oh não!, uma moldura caiu no poço do piano-armário, porque raios ela abrira a porta mesmo? A ausência do passado agitado e dos contornos idosos, será que os pais reparariam? o telefone, o fogão e as banhas acumuladas diminuíam as possibilidades, que aparentavam rídiculas e de azar imenso. Era escuro lá nas profundezas mecânicas do piano. Sabe-se lá os pedais e roldanas que lá poderiam existir. Vai que. Mas e se. Já pensou se. E se for o caso de. Aí fudeu, né. A ideia transformara-se em fardo central de sua cabeça, encosto mecatrônico, o receio impedia qualquer funcionamento cabível às roldanas do cérebro. 

Dizem que, quando a água é gelada demais, a dor térmica se empequena ao combater o frio entregando-se de uma vez. É quase que um domínio do mar. No mar. Ao mar. Mar. Mi. Um amar ao mim. Tacou-se na cova clássica do enorme piano, os olhos espremidos, quase a soltar suco, a ponta do nariz ficando cada vez mais rubra, a circulação era elíptica, num formato de cabeça. Os braços longos se violentavam, com forças vindas da resistência do ar e nenhuma mais, um Newton quase ao contrário, não sei, queda livre dependendo do meio e da neblina. Caiu sobre um pedal, o som ecoou alto, fácil, Fá. Mas a escuridão complica tanto que a estrada estica. Acaba-se por carregar o fardo por mais tempo amarrado aos pés calentos quando as sombras impedem a independência. Caluda!, se não sabes onde está, não palpite! Carmem ponderou-se e agachou-se, transformando-se na coruja dos dias de céu branco. Os pés miúdos sumiam ao transformarem-se em tronco das pernas compridas da menina, estas metamorficamente transformadas em copa de árvore, coxas densa copa. Com os dedos para anéis infantis, foi esgueirando-se na espreita de si mesma, qualquer toque imbecil podia fazer-se nota, discreta nota de vida, lembrete sisnestésico. A coruja camaleava e então era lagarto, arrebitando-se por aí e no tato da cegueira entendendo o mecanismo. As cordas se ajeitavam com suas palmas da mão que transpassavam, afinação das melhores. Os pedais e as molas lembraram-na uma máquina de escrever, daquela que sua avó conservava para seus iguais adultos. 

O tempo passa e as horas não se fazem, é possível um badalar, há esperanças de um mundo lar novamente. Sai andando e se esquece de atentar, o mindinho errôneo e impaciente mantinha-se de lado, acarinhando cada parede ou sublinho de relevo existente na escuridão oca do campo pianês. Campo, interior, viagem, acampamento, barraca, fogueira. A fotografia dos beiços pecaminosos dos pais de Carmem entrelaçados era em conterrânea grama de campo deserto, campo de natureza sonora. Os passos se aceleravam, movimento uniformemente variado mas, sem pretexto, contexto ou protesto, um pé foi, enquanto o resto do corpo ficou, destroncando e por pouco não desenraizando Carmem, carne confusa: Degraus desciam, e só o pé mais adiantado percebera, o resto foi indo com a maré, vulnerável e sem bóias, nóias, jóias. Os degraus iam caindo em compasso segundante, contando horas em um cuco-menina: carmem então marcava quatro horas da tarde, piando no martelar de piano. 

Quatro horas em viagem mochileira é hora do não-banho, do beijo e da arrumação de lonas e moletons, para depois tacar-se por cima dos aconchegos e descansar os queimados dos ensolarados quilômetros matutinos. Depois, empilha-se tocos em geometrias pós-modernas, fazendo nascer o fogo de terras queimadas, o fogo benzedor que acompanha o afago mútuo, muito. No resquício de luz entre meados de um breu fantasma, a ópera faz-se folclore e o regionalismo fervilha em afeições a dentes desfalcados de humildade antropomórfica. Ali deve estar o contorno e o enchimento, ali deve estar o congelamento de uma pré-gravidez em vida maior, transbordando em partitura, parteira depois. Falta encontrar o fogo. Um pontinho, que seja. Isso aqui é escuro e as pontas mecânicas me ferem como vírgulas de pernas pro ar, uma coisinha que seja. O metálico das cordas em estico máximo panoramiza-se, e reluz um brilho fraco de sumiço. Se reluz é porque há luz. O ângulo da luz se esconde na transparência, é transparência demais pra tanto breu, tanta tralha, tanto fio solto, isso aqui parece casa em construção, isso aqui parece lustre desligado em quarto isolado. 

Uma roldana vai girando, fazendo-se escudo instantâneo que gira mas parece que sobe e desce, que entra e sai, que grita cuco. O badalar das cinco horas soou no ponto desfoque e formigante de luz, no inverno o poente é mais ligeiro e o fogo faz-se necessário, faíscas vão palpitando de um amor louco e da caliência necessária para a noite ao relento. As brasas piscando incandescentes, e Carmem indo numa cegueira solitária, a única coisa que podia enxergar era o vermelho-amarelo-laranja do plasma fogoso que chama, chama. As mãos sangrando de rasgar nas cordas metálicas, os pingos daqui a pouco começariam a cair, demarcando as seis horas. Seis horas é tarde, seis horas é pouco para seis e meia, seis e meia é época de assembléia sopeira em távola mixuruca mas redonda. Os olhos brilhavam como se ressoassem também acordes e arpejos, metálicos e convexos, complexos. A faísca ia crescendo, não só pela distância como pelo encantamento do fogo em cordéis, dança bela das áfricas francesas. Começavam a marejar os olhos, a loucura mecânica esquecia-se do papel dos cílios, que Carmem tinha de sobra. Além disso, essas lunetas agigantadas de Carmem achegavam-se da fuligem fumacenta de fogueira e da água abundante em margens da maré, praia de sossegos. O líquido sal dos olhos começava a exacerbar-se, percorrendo o corpo da menina sem qualquer osmose, e unia-se ao sangue das pontas dos curiosos dedos, dissolvendo-se um ao outro e formando uma coisa só, humana ao extremo. Essa salgada groselha acentuava-se em circunflexos, onomatopeicamente mergulhando ao chão, rememorando Carmem de seu salto livre ao interior do piano. 

Carmem apressou o passo e desengatou a correr, pois os saltos acrobáticos de suas dores líquidas tinham som de tempo, ai como o tempo está passando rápido! Chegou à fogueira no terceiro badalar, e teve instante para, durante o quarto sino, ver em timidez caçula o pai com jeito de moço largar os gravetos e juntar-se à namorada, por acaso aquela que parira a menina, enrolando-se os dois num cobertor esfarrapado que agora habita sua desconjuntada cama. No quinto soar, de afinadíssimo Sol, juntou as mãos ao núcleo estelar que é cadente ao oposto, nobre fogo de gravetos desérticos. O calor calou o líquido incessante, e então soou o Lá: para lá daqui, num aqui de antes, o lá de agora. Lá onde é pra estar, onde a perspectiva e o contraste formam a imagem. Sê num Si lançado pelas teclas dos olhos metálicos, Carmem cuspiu-se para fora, um dos tacos tacou-se junto, madeira musical que concretiza a feia moldura. A foto estava afinal aos pés do piano, caiu-se quando aos mãos de Carmem por lá se esparramaram. E, se é para retratar-se a nudez de dois jovens, que pelo menos o retrato esteja também nu. Resta-me dar o Dó ao próximo que passar, pois é de sons sinestésicos que se faz o tom, o com, companheiro.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Inseto infante


O ônibus balança, chacoalha pros lados sem ritmo ou melodia, só em sincronia com os buracos das ruas mal-cuidadas da metrópole. Tento ler meu livro de letras miúdas, mas a cabeça começa a explodir-me, pedacinhos de cérebro espatifando-se para os lados, em sacudidas violentas como o transporte público. Involuntários são meus olhos, às vezes até um pouco indiscretos, mas é que enquanto minha vista fica a pairar, me perco em pensamentos, e a visão se desfoca em um ponto fixo, que importuna-se. Desta vez, pelo contrário, o sem-querer de meus olhos não significou a falta de nitidez: pois, no quarto banco atrás do cobrador, de nariz colado à janela, sentindo na face o tremelique motorizado que parece pertencer ao mundo, estava uma moça aí de meus álbuns de fotografia. Era Joana, a Jô de meus velhos tempos, com quem bailava em épocas de colégio e trocava bilhetes bobinhos que deixavam enrubescidas nossas bobinhas maçãs do rosto. Separamo-nos por conta do tempo e do ginásio, que chegava com jovens moças de flores despontando e rapazes de topetes e jaquetas. Neste agora meio desconcertante, me atrevi a fazê-la recordar de seu apelido meio maldoso de infâncias, aquele com que eu e minha ganguezinha de moleques astutamente a pentelhávamos: Joani-nha!! Não saí em corrida de fuga, como naquela época, assim como Jô também não lançou faíscas dos olhos nem perseguiu-me em fúria sem estribeiras. Só travou os olhos a mim, libertando-os no relance. Sorriu como sempre, as gengivas enormes exibindo-se, hipérboles da anatomia. Há agora uma ruga na testa.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Síntese da Psicologia

Sem sombra de silêncio, soou o submisso sinal colegial às seis da matina. Sofia sonoramente selou os lábios com os de Sigmond. Sincero, singelo e saboroso, sem sussuros: som de sigla, sinfonia súbita.  Freud explica?

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Memória Engavetada












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Naquele apartamento de ácaros e mofos, havia duas escrivaninhas. De madeira verdadeira e sotaque europeu, Anita embutia-se à parede, que não era tão nojenta assim porque a janela, pequenina porém válida, carregava para fora o ar pútrido do abandono daquele muquifo, e trazia o ar também pútrido porém diverso da grande metrópole de unhas roídas e pintadas. Anita, misteriosamente estática, guardava em gavetas os livros de cabeceira, as fotografias de sessenta e nove e do colegial, as anotações arregaladas, uma fita do Senhor do Bonfim e um antigo caderno de rabiscos, que é para quando Benevides, o anfitrião a quem hospeda, atende o telefone. Em outro cômodo, não por acaso o quarto de Benevides, mantinha-se em existência espectral a outra, a suja, a que esconde os lixos nas gavetas e debaixo do próprio estofo furado e embolorado. Janette, os pregos soltando, as pernas desiguais, macambeia para os lados, mas se mantém de pé, encarando uma parede que mais se fazia muro: sem frestas de luz nem ar, segura toda a água que não cabe e se lota, manchando tudo com cor de fuligem pobre. A máquina de escrever, Simone, era carregada de um lado ao outro do apartamento, e por isso seus dedos já não mais teclavam as palavras muito bem: os ás saíam borrados, os érres renegavam o negro e acinzentavam-se, os dáblios também embestavam a empacar, mas isso não importa, pois Benevides nunca escrevia muito sobre Wilsons, Walters ou escritos estrangeiros. Simone agora estava sob guarda de Janette, desleixada Janette.

O dia não prosseguia para Benevides, e ele bem sabia que olhar só para uma parede inchada incha também o ser humano. Seu encher-se escondeu-se nas gavetas -suas, de Janette e até de Anita-, fingindo-se nada. Hipócrita, Benevides tinha as pálpebras molengas como jeito de ser. Anitta exigia demais dele, fazendo-o ouvir sons de trabalho e lembrar de regar as plantas do parapeito porco. Benevides mirava o muro cinza que encostava em seu nariz, os olhos em tremeliques de covardia. É óbvio que a parede não ia se mover. Que nada ia acontecer naquela parede de fracasso. Que a parede era opaca demais para se ver qualquer coisa. Que só. Se é dia nada que Benevides aceita, um dia nada Benevides terá. Janette apoia Simone sobre si, e também apoia a tosca vida de Benevides, largado ermitão em vácuo universo. Anita sussurra uma canção, mas o homem não pode ouvir: em estado ameba, fixa o olhar no não-mundo que é a sua individualidade inexistente.

Com o cinza, combina-se até o marrom: marrom flop-flop de um casulo discreto que se avoa e, jurássico, não mostra a evolução. A mariposa vem da janela e canto de Anita, um quase acalanto, e pousa no canto esquerdo da parede em pose de posse. Os dois medíocres seres vivos se encaram com escárnio de angústia. Ora, houve uma intersecção no intransigente espaço vital. Arregale as pálpebras, Benevides! Pelo menos à Mariposa, encare! Janette balança, num rangido quase relincho. E, brutal, sela-se com Simone, as letras amarradas. Do convívio diário e meticulosamente observado com Benevides, Janette já o sabe: o homem tem lá sua covardia, mas quando se empolga com uma letra ou outra, e forma palavras e orações com sujeito terceira pessoa, então a vez dela se acaba. Então o mundo renasce e, junto com ele, uma paixão meio modesta meio arrebatadora que Anita desperta.

Anita viril, Anita saudável, Anita símbolo mas também com mimo de nascença, Anita tem farto parapeito, do tamanho da metrópole. Um m sai, emperrado, da boca de Simone, que se auxilia em Janette. “Mariposas são casulos portáteis.” E, pois bem, até que Benevides não era tão fossa assim, tão forca assim. Em movimento brusco, a mão grossa do homem arranca o papel do rolo de destino de letras, Simone até que não se importa, pois sabe Benevides em tempo integral e íntegro, mais que Anita ou Janette, estas alteregos próprios, desfalcada mulher mobília. A página rasgou-se e a fibra era visível a olhos nus – a mesma fibra que, aos dedos de Benevides, se espreitam ao ser-relíquia que parou na parede. Encostar, tocar, cutucar, diálogo; remexer-se, avoar, devanear, diálogo (avoar mais, amundar-se, mesmo que seja uma imundície, mergulhar no carbônico esconderijo que é o mundo). Benevides tenta guardá-la em gaveta, as fibras salientes desfocando os predicados, os objetos diretos, mas mantendo o sujeito em paz, na memória do resquício.


Mas, ah!, as letras se embaralham, de coisas bonitas já estão cheias as gavetas-tesourinho de Anita – se Janette não se prestasse a guardar o que não presta, mais universo seria Anita, apesar de não tão bela ilha deserta. Mas, ah!, Simone tem voz forte e pinos descorcertados: a incerteza identidade Benevides, semi-nômade, acabará por desmantelar a negra mulher de palavras sábias que não mais poderá dizer o que Benevides aglomera em botões de raciocínio. Mas, ah!, as orações se enlaçam homericamente nas gavetas de extremo ser, não se sabe mais se o tal sujeito da oração é o nada, o dia, a Mariposa ou restos vagos de palavras soltas que poderiam antes fazer-se sentidas, um sentido. Mas, ah!, fonemas tão semelhantes, janette anita, janette anita, janete anitta, escrivaninha de prazeres cômodos, junção que se arrasta e se finge um completo, ser humano, nome composto. Mas, ah!, Benevides: é mais belo ver-se no refletir de vidraçais e poças do mundo que na parede coisa, onde só se é a lembrança de gaveta do que antes fora – fôra lá fóra.