sábado, 14 de agosto de 2010

Dorme a cidade










Dó. Dó. Dó. Descobriu-se o dó. Em seguida vem o ré, depois mi, fá, sol, lá, si, e a dó volta. Entre as estacas de mausoléu há uns saltos pretos, de complicações maiores. O cabelo meticulosamente trançado de Carmem espanava o piano, este que se fazia mais casa que o lar em si, paredes porta janelas cama banheiro. As mãos estranhavam, ela não sabia fazer a música com o piano. Os dedos gélidos de inverno se embrenhavam e contorciam feito pernas de aranha, a mão sendo o corpo, e qualquer som que saía daquele armário de cordas percutidas era aleatório, com um existir-se cheio de vazio. Só estava, pois as férias para ela chegaram, mas aos pais ainda havia trabalho e janta fria. As unhas tortas carcomiam-se para os lados, folhas descamando, partitura na ponta do dedo: Carmem sentia-se mais pluma ao rodopiar os dedos entre as teclas, cada respiração à flor da pele, à flor da carne, à flor da digital que apropria-se do ancião piano num tocar registro geral, momentâneo. Dó. Dó. Dó. As meias não esquentavam nada, só pinicavam mais ainda o rebuliço branco que a tremedeira dos dedões causava. O banco arrastou-se para trás, e nisso os joelhos de Carmelita espreguiçavam-se, o relevo da meia tatuado na coxa esquelética da moça, que nos tempos de vento cortante acocorava-se sempre, na situação que fosse, lembrando uma coruja de exacerbados olhos.

Andou de um lado ao outro do piano, metida, de dedo arrebitado fungando aquele cheiro aranhoso de segredo ancestral, e depois tocando-o todo com as pontas dos dedos, que atuavam pertencer a uma pianista ou poetisa. Transformou o fura-bolo e o pai-de-todos em pernas do simpático hombrecito que dançava um tango cantarolado de improvisos, às margens das teclas, no braço envernizado do velho músico. O hombrecito transformou-se em sensual cantora de blues, desfilando sobre as teclas com voz de fundo piano, palhetas escondidas. E, num tique, a cantora vira uma partida de dominó entre velhos. Mas as pecinhas de madeira do dominó, Dó, fazem fila e derrubam-se de ponta a ponta, de dó a dó, rindo no Ré: um riso arrasador de fugacidade salta dos lábios despontantes de Carmem quando os dedos correm pelas teclas fazendo um som único, mundo, uma espécie de choro animado, ou triste gargalhada... uma onomatopéia maior, gigantesca, decibéica de palavras, quilométrica de passos. Um palíndromo oposto se toca quando os dedos voltam ao dó agudo, partindo da gravidade. 

Com olhos de luneta, fuça cada nó da madeira e cada risco no verniz. Descobre atrás de vasos alguns portarretratos de careta moldura, num estilo coríntio sem dotes, sem brilhos perolados e sem a graça ocre do minimalismo seco, rio cheio. Por dentro do vidrinho sujo, fotografias em processo de desmantelação de um tempo que dela não é. Tempo de novos adultos barbados, tempo de acampamentos, fogueiras, praias e lamaçais, tempo de alegre fossa com companheiros naquelas bebidas que corroem a garganta. Tempo de barriga aventureira e útero deserto. Oh não!, uma moldura caiu no poço do piano-armário, porque raios ela abrira a porta mesmo? A ausência do passado agitado e dos contornos idosos, será que os pais reparariam? o telefone, o fogão e as banhas acumuladas diminuíam as possibilidades, que aparentavam rídiculas e de azar imenso. Era escuro lá nas profundezas mecânicas do piano. Sabe-se lá os pedais e roldanas que lá poderiam existir. Vai que. Mas e se. Já pensou se. E se for o caso de. Aí fudeu, né. A ideia transformara-se em fardo central de sua cabeça, encosto mecatrônico, o receio impedia qualquer funcionamento cabível às roldanas do cérebro. 

Dizem que, quando a água é gelada demais, a dor térmica se empequena ao combater o frio entregando-se de uma vez. É quase que um domínio do mar. No mar. Ao mar. Mar. Mi. Um amar ao mim. Tacou-se na cova clássica do enorme piano, os olhos espremidos, quase a soltar suco, a ponta do nariz ficando cada vez mais rubra, a circulação era elíptica, num formato de cabeça. Os braços longos se violentavam, com forças vindas da resistência do ar e nenhuma mais, um Newton quase ao contrário, não sei, queda livre dependendo do meio e da neblina. Caiu sobre um pedal, o som ecoou alto, fácil, Fá. Mas a escuridão complica tanto que a estrada estica. Acaba-se por carregar o fardo por mais tempo amarrado aos pés calentos quando as sombras impedem a independência. Caluda!, se não sabes onde está, não palpite! Carmem ponderou-se e agachou-se, transformando-se na coruja dos dias de céu branco. Os pés miúdos sumiam ao transformarem-se em tronco das pernas compridas da menina, estas metamorficamente transformadas em copa de árvore, coxas densa copa. Com os dedos para anéis infantis, foi esgueirando-se na espreita de si mesma, qualquer toque imbecil podia fazer-se nota, discreta nota de vida, lembrete sisnestésico. A coruja camaleava e então era lagarto, arrebitando-se por aí e no tato da cegueira entendendo o mecanismo. As cordas se ajeitavam com suas palmas da mão que transpassavam, afinação das melhores. Os pedais e as molas lembraram-na uma máquina de escrever, daquela que sua avó conservava para seus iguais adultos. 

O tempo passa e as horas não se fazem, é possível um badalar, há esperanças de um mundo lar novamente. Sai andando e se esquece de atentar, o mindinho errôneo e impaciente mantinha-se de lado, acarinhando cada parede ou sublinho de relevo existente na escuridão oca do campo pianês. Campo, interior, viagem, acampamento, barraca, fogueira. A fotografia dos beiços pecaminosos dos pais de Carmem entrelaçados era em conterrânea grama de campo deserto, campo de natureza sonora. Os passos se aceleravam, movimento uniformemente variado mas, sem pretexto, contexto ou protesto, um pé foi, enquanto o resto do corpo ficou, destroncando e por pouco não desenraizando Carmem, carne confusa: Degraus desciam, e só o pé mais adiantado percebera, o resto foi indo com a maré, vulnerável e sem bóias, nóias, jóias. Os degraus iam caindo em compasso segundante, contando horas em um cuco-menina: carmem então marcava quatro horas da tarde, piando no martelar de piano. 

Quatro horas em viagem mochileira é hora do não-banho, do beijo e da arrumação de lonas e moletons, para depois tacar-se por cima dos aconchegos e descansar os queimados dos ensolarados quilômetros matutinos. Depois, empilha-se tocos em geometrias pós-modernas, fazendo nascer o fogo de terras queimadas, o fogo benzedor que acompanha o afago mútuo, muito. No resquício de luz entre meados de um breu fantasma, a ópera faz-se folclore e o regionalismo fervilha em afeições a dentes desfalcados de humildade antropomórfica. Ali deve estar o contorno e o enchimento, ali deve estar o congelamento de uma pré-gravidez em vida maior, transbordando em partitura, parteira depois. Falta encontrar o fogo. Um pontinho, que seja. Isso aqui é escuro e as pontas mecânicas me ferem como vírgulas de pernas pro ar, uma coisinha que seja. O metálico das cordas em estico máximo panoramiza-se, e reluz um brilho fraco de sumiço. Se reluz é porque há luz. O ângulo da luz se esconde na transparência, é transparência demais pra tanto breu, tanta tralha, tanto fio solto, isso aqui parece casa em construção, isso aqui parece lustre desligado em quarto isolado. 

Uma roldana vai girando, fazendo-se escudo instantâneo que gira mas parece que sobe e desce, que entra e sai, que grita cuco. O badalar das cinco horas soou no ponto desfoque e formigante de luz, no inverno o poente é mais ligeiro e o fogo faz-se necessário, faíscas vão palpitando de um amor louco e da caliência necessária para a noite ao relento. As brasas piscando incandescentes, e Carmem indo numa cegueira solitária, a única coisa que podia enxergar era o vermelho-amarelo-laranja do plasma fogoso que chama, chama. As mãos sangrando de rasgar nas cordas metálicas, os pingos daqui a pouco começariam a cair, demarcando as seis horas. Seis horas é tarde, seis horas é pouco para seis e meia, seis e meia é época de assembléia sopeira em távola mixuruca mas redonda. Os olhos brilhavam como se ressoassem também acordes e arpejos, metálicos e convexos, complexos. A faísca ia crescendo, não só pela distância como pelo encantamento do fogo em cordéis, dança bela das áfricas francesas. Começavam a marejar os olhos, a loucura mecânica esquecia-se do papel dos cílios, que Carmem tinha de sobra. Além disso, essas lunetas agigantadas de Carmem achegavam-se da fuligem fumacenta de fogueira e da água abundante em margens da maré, praia de sossegos. O líquido sal dos olhos começava a exacerbar-se, percorrendo o corpo da menina sem qualquer osmose, e unia-se ao sangue das pontas dos curiosos dedos, dissolvendo-se um ao outro e formando uma coisa só, humana ao extremo. Essa salgada groselha acentuava-se em circunflexos, onomatopeicamente mergulhando ao chão, rememorando Carmem de seu salto livre ao interior do piano. 

Carmem apressou o passo e desengatou a correr, pois os saltos acrobáticos de suas dores líquidas tinham som de tempo, ai como o tempo está passando rápido! Chegou à fogueira no terceiro badalar, e teve instante para, durante o quarto sino, ver em timidez caçula o pai com jeito de moço largar os gravetos e juntar-se à namorada, por acaso aquela que parira a menina, enrolando-se os dois num cobertor esfarrapado que agora habita sua desconjuntada cama. No quinto soar, de afinadíssimo Sol, juntou as mãos ao núcleo estelar que é cadente ao oposto, nobre fogo de gravetos desérticos. O calor calou o líquido incessante, e então soou o Lá: para lá daqui, num aqui de antes, o lá de agora. Lá onde é pra estar, onde a perspectiva e o contraste formam a imagem. Sê num Si lançado pelas teclas dos olhos metálicos, Carmem cuspiu-se para fora, um dos tacos tacou-se junto, madeira musical que concretiza a feia moldura. A foto estava afinal aos pés do piano, caiu-se quando aos mãos de Carmem por lá se esparramaram. E, se é para retratar-se a nudez de dois jovens, que pelo menos o retrato esteja também nu. Resta-me dar o Dó ao próximo que passar, pois é de sons sinestésicos que se faz o tom, o com, companheiro.

3 comentários:

  1. Gosto da música permeando o texto e a mistura que a torna sólida, em alguns momentos. Som e sentido.

    Você lê muito Guimarães Rosa e Clarice Lispector?

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  2. Obrigada!

    e como você adivinhou? hahahaha (faço parte de um grupo de estudos do Guimarães Rosa, da Clarice eu li 3 livros e uns contos avulsos, ehe)

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  3. Haha, arrisquei. Algumas coisinhas dos seus textos me chamaram a atenção pra influência desses dois. Neologismos, junções, fluxo de consciência, sei lá, várias coisas. Essa percepção em mim vai pelo gutural. Não racionalizo muito.

    Sou meio apaixonadinho por Guimarães Rosa. Menos pela Clarice, de quem li pouquíssima coisa. Não que eu tenha lido muito Guimarães. Você já leu "Uma estória de amor" (Manuelzão)?

    Você gosta de Graciliano Ramos? É um dos meus preferidos.

    Que grupo de estudos é esse?

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