sábado, 27 de julho de 2013

Situação de risco

Eu duvido que soltes a flecha
que a lance direto em meu peito
e, ao mesmo tempo,
também duvido que te lances,
a si próprio, sobre mim
você que tem medo
não do escuro que assombra.
Não do inverno ou da ausência das lãs.
Dos insetos bizarros a assombrar a sujeira do chão.
Você não tem medo de nada.
Mas tem medo de mim.

Eu duvido que salte e que corra
que grite na minha cara
dentro da minha boca
e, ao mesmo tempo,
que me rasgue um beijo
me tire do sério
me ponha mais louca
do que já sou.

E duvido que me olhe nos olhos
no entorno das pálpebras
na cor dos olhos semi-mortos
por horas, por dias.
Que passemos um ano inteiro
um sobre o outro.
Sendo o assunto da dúvida.
Sendo uma eterna dívida
que poderia doer e arder
e dividir cada cômodo da casa
que não temos.

Até que um de nós, o primeiro,
comece a gargalhar
ou então que chore
até não se saber mais quem exala
as lágrimas duplas
de duas pessoas
transformada em uma.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

O canto de Mariano

Estávamos conversando, esses dias, sobre a dependência da criação poética às experiências pessoais. Decidimos então fazer um desafio: Helena, mulher branca e feminista, teria que escrever um poema sobre a causa negra, e Ronaldo, homem negro e anti-racista, faria o mesmo, mas sobre a opressão por gênero. As trocas de experiência sobre as opressões que sofremos foram cruciais para que pudéssemos entender mais e apoiar às causas um do outro e vice-versa. Seguem abaixo os resultados deste desafio conjunto.



Bastaria uma noite preta
um chão preto
botas pretas
e olhos fechados,
pensavam os brancos,
para armar na festa negra
uma farra comedida e calada
sem incomodar aos caprichos
e às canecas de leite
de seus vizinhos brancos:

os que dizem fazer a ciência
em torno de si,
e fizeram da poesia
um troço branco e inexato,
poema raro,
armaram mil mecanismos
para arrancar do preto
o que é dele
roubar-lhe a música
os versos e medicamentos
roubar as salas de aula
os adereços de cabelo
os pequenos endereços
e até o barulho das festas.

Uma festa muda e camuflada,
eles pensavam,
para que ninguém desperte:
nem brancos, em sono de edifícios
nem pretos, a despertar todos juntos
sobre si mesmos.
Mal sabiam eles que a negada
já acordou unida há tempos.

Não é preciso que caia a tarde
e chegue a noite
para Mariano começar a cantar.
Mas nesta noite ele canta.
A voz sai seca, coaxando,
e ecoa entre o cimento,
pelas frestas das lajotas,
rente a cada azulejo
e passa
da festa
ao mundo
e o mundo não passa da festa dos negros
e mais um pouco,
o pouco dos brancos.

Quando Mariano abre a boca
até o fundo do seu próprio céu,
um fim de mundo na garganta,
canta
as dores de ser camuflado
ser escondido à revelia
Mariano, o sapato furado
mas por pouco tempo,
que fique bem claro.

Cantar o pão velho
não o torna macio
não coloca recheio
presunto nem queijo
mas faz o pão
ainda mais pão,
completamente pão,
duro e coberto de dias,
porém pão.

Canta-se a dor
pois a dor é ainda mais dor
para doer nos tímpanos
de quem a causa
e fortalecer cada um dos doloridos.
E vejam que a dor é muita
para a pouca porção de pão
mas a festa irá mudar,
vão haver reviravoltas,
é o que canta Mariano
e que Dona Marta chora
suspira, esfrega os olhos
calada e de ouvidos atentos,
o grande corpo de matrona,
de corajoso ventre,
posicionada em meio à roda confusa
mas plena de si.

As estrelas medrosas aparecem,
aos poucos, como gatos desconfiados,
só para ouvir Mariano cantar
e ver a festa preta dançar
nítida,
tremendo o chão da madrugada.

Ninguém dormiu naquela noite
e ninguém mais dormirá
até Mariano decidir
se a grande festa já ganhou
tudo aquilo que queria
e que lhe foi negado
durante toda a vida.

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O outro poema está neste link:
http://assimbemdepressa.blogspot.com.br/2013/07/encaminhamento-de-ana.html

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Dentro de dentro

Não escrevo
em entrelinhas.
Exponho o imaginário
num porta-retrato
de tudo que é sólido
por si só lido
sem poeta exato.

Durante a poesia
descrevo
cada incrível estrela
que não vejo
na noite nublada
e feia.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Falso eclipse

Meu amor,
e se eu te disser
que essa lua enorme
que você tanto fala
está na verdade
dentro dos seus olhos?

e brilha o reflexo
do brilho dos meus olhos
que te veem cair no sono
lentamente
como quem cai do céu
ou como um falso eclipse,
meu amor,
entre a tola corrida das nuvens.