sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Pedras


 - Qual será a de hoje?
 - Blowin' in the Wind.

E nenhuma palavra mais. Roger começou sua cantoria junto ao inseparável violão vermelho enquanto a tal moça escutava de olhos atentos às unhas sujas que se movimentavam em piscares pelas cordas e casas. A princípio era uma relação um tanto quanto bizarra: A moça caminhava pela grande avenida de metrôs, cinemas e bancas de jornal, enquanto Roger conversava com um senhor pedinte de pernas amputadas. De um salto, esqueceu-se do velho deficiente físico e, inflando o peito fraco com o máximo de garbo, apresentou-se:

 - Roger, O Músico De Rua. Prazer!

Ela, em gestos bruscos de quem fora pega desprecavida, soltava monossílabos avulsos, porém cabíveis. (Monossílabos, por mais que sem grandezas, guardam as maiores profundidades do ser humano. Resta a cada um escolher se o seu guardar é mostrado ou omitido.) Roger, O Músico De Rua, perguntava em insistência frenética que música a moça gostaria de ouvir – qual, qual, qual - deixando claro que pedia por ouvidos e não moedas. Em (como sempre) atrapalhada tentativa de mistério, a confusa moça deixou à escolha do homem. Ele que descubra, se é tão músico assim como diz. Sem meias palavras, fugiram da caixa do violão alguns acordes conhecidos, start spreading the news, I'm leaving today, I want to be a part of it, New York, New York. Observando os dentes daquela criatura, cada um com um ângulo diferente (imagine só: um mapa de senos e cossenos, diversos círculos trigonométricos, nesta boca infeliz!), seu pensamentos se voltaram à voz do homem que já beirava uns trinta anos. 


Pois não é que a moça, diante de Roger O Músico De Rua, o lendário desconhecido, o conhecedor de mundos cuja São Paulo não faz a menor ideia de quem seja, este mesmo; diante dele, a moça de cabelos sujos pelos ventos poluídos ouvia a apresentação única e exclusiva de Dylan cantando Sinatra. Roger O Músico De Rua não é algo tão distante de Bob Dylan O Músico De Vagões De Trem. A moça, em auge de miçangas e juventudes, foi-se embora antes que Roger começasse a já proposta segunda e última música do primeiro dia – mal sabiam dos próximos que viriam -, não sem antes bater palminhas com uma mescla de satisfação, simpatia e descompasso (descompasso este oposto às sabedorias musicais de Roger mas proporcional aos trilhos tortos de seus dentes amarelados.)

 - Obrigado pelo carinho e pela atenção. Nos vemos dias desses pelos aquis. - ele concluiu em ares joviais de certos pingos de rebeldia, as fuças aprumadas para sorrisos retribuíveis, transparecendo companheirismos. Ela, em passos largos de interrogações, absorta em entender a bizarrice dos ares que a mantiveram em sincronia amiga a um músico de rua de voz nasalada totalmente perdido no tempo.

Pois em outros dias de andanças e divagações se cruzaram novamente e ela, sem pestanejar, exigiu The Hurricane, cujos palpitares ecoaram ao mesmo tempo que seus conflitos internos da época, essas tais besteiras que importam, cujos mares não cabe a mim navegar. Dylan esteve novamente encarnado ao seu lado. Aplausos; sílabas; adeus; adeus não, eu diria até logo; se é assim, então até; sorrisos solitários de memória recente. Se encontravam pela hora do almoço (eles que nunca tinham hora certa para refeições), e a moça um tanto quanto sensata (talvez até um pouco demais) nunca permitira que Roger se ecoasse por mais de uma canção, em recuos e semáforos de anseio. 


Agora, frente a um pedido que conhecia e esperava, Roger O Músico De Rua, o bom, o ídolo único, o cara estranho, este mesmo; ele errara as notas, errara a letra, a tal resposta ficou pairando no vento sujo da cidade podre e ele não tentara tocar, não levantara um dedo para acalmar as trilhardárias perguntas da tal moça. Não, Roger Músico de Rua, um beijo aproveitador não ajudaria; esqueça. Tentara abandonar a canção e trocá-la por um Raul qualquer, sem ver que este não fazia jus àquela específica calçada movimentada onde estavam os dois sentados, intocáveis. Roger, para você não há como caçar respostas porque não perguntas nada. Agora nesta tentativa afobada, adivinhara errado o som que me cabe, e assim vemos que nossas desatinadas afinidades são bastante desafinadas. Ainda se sua saída fosse “don't think twice, it's all right”, ou qualquer merda do gênero. Mas não viste nada, assim com o olhos encovardados atrás de opacos óculos. Fácil olhar nos olhos dos outros quando eles não podem chegar aos teus. Pois eu mesma não acredito nem nunca acreditei em adivinhações. O que há não é nem sintonia; é, isso sim, sincronia. Diante tantas monodiscursos escuros mentais, a moça de nome desconhecido e desnecessário joga os cabelos como um lençol vermelho no varal e adeus:

- The times, they are a-changin. Sei bem, sei sempre a todo instante dessa avenida em pisca-pisca. Porém... it's all over now, Baby Blue.

4 comentários:

  1. lay, lady, lay.

    e o Dylan faz todo sentido nessa loucura toda normal, diária e súplice.

    passou I'm not there na Cultura anteontem, queria ver esse filme; talvez você tenha visto e o Dylan entrou na pauta.

    meu último texto no blog foi inspirado em Hurricane e On the road.

    stay, lady, stay.

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  2. Suave, lindo e profundo como sempre...
    (Que ótimo gosto também! Você, além de ouvir e se inspirar com Dylan, anda lendo Kafka!)

    Abraços, grande poeta.

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  3. Confesso ter visitado seu blog algumas outras vezes, mas nunca comentei, por preguiça, confesso novamente. Enfim, é lindo e viciante.
    Sobre o texto. Dentre tantas confissões, hoje eu confesso novamente que nunca fui muito ligado a "contos", entretanto, tendo Morangos Mofados na cabeceira, cujo este é bem parecido com seu blog, me motiva a ler e me encantar com contos tão bem escritos como o seu.
    Mais um fato que me intriga e me surpreende em seu texto é a grande apreciação a grandes artistas, nele expostos, artistas esses que amo. <3

    Quero deixar claro que sempre que puder comprarei novos morangos no seu blog e deixar explicito minha grande admiração pela essência tão unica.

    Beijos! http://ideologiasparaviver.blogspot.com

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  4. Que lindo (: além de lindo tem Bob Dylan, cara.

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