terça-feira, 27 de julho de 2010

Caleidoscópio


O sol invadia as pálpebras de Luana. De cílios tocando-se, sentia o vibrar do calor em cada laranja, amarelo, preto, roxo e azul. O dia entorpecido estava a acabar-se em seus olhos, atravessando as pálpebras cerradas, bailarinas. Luana fazia força para se segurar, aquele poente precisava ser visto de olhos fechados e pupilas abertas. As bolas coloridas eram hipermetropia máxima, pontos desfoques colados nas córneas. Mas, ah!, o pôr do sol nunca esteve tão perto, é certo! O amarelo dançava, discoteca sertanista, entre vermelhos bambolês, confetes azulados e alaranjadas serpentinas, tudo sem freio, tudo tudo, tudo tão!, tudo visto, aquele tudo tentava ignorar os sinos da igreja que batiam as seis horas, aquele tudo era quase relevo, sinestesia bifocal de estrelas cadentes antecipadas: "não, ainda não é noite, mas por favor, estrelas, venham e caiam sobre minha íris, fiquem nela e substituam aqueles tracejados vermelhos que nos ficam nos olhos quando a noite é mal dormida!"

Luana tinha papel, lápis, 36 poses na câmera, tudo ao seu lado, mas não podia registrar o espetáculo porque seu teste era manter os olhos fechados -e calmos, porque de olhos apertados e enrugados é fácil. Luana era atenta ao circo que acarinhava o escudo translúcido de seu olhar, sol que atravessa. Olhava para fora e via dentro, via -caminho que ia, estrada de festejos. Mas, como em misturas químicas, o vermelho ia dissolvendo-se, o amarelo dissipando-se, o laranja desarmando-se, e o resquício mais quente do poente era um violeta, que se transformava em roxo e começava a dar espaço a rarefeitos vagalumes azuis. A pupila desacobertou-se, mas Luana quase que nem percebeu, uma paz ia subindo, em oposta sincronia ao sol rubro que chegava ao fim, em saída de maestro que regera pontos brilhantes de luz no céu da pupila e agora descia do palco em carisma plena. As estrelas se reproduziam em instantânea sensualidade naquele céu de cidade menor, e a lua cheia era agora a dama mais elegante da boate. Mesmo sem estrelas cadentes, Luana ficou a dançar no céu, cantando na garganta e imaginando-se de beiços colados a um microfone retrô.

terça-feira, 13 de julho de 2010

O tempo não passa de mero clichê




Na velha casa morava a senhorinha. Senhorinha porque o tempo a encurtou e à vida alongou. Senhorinha porque senhora não é, não impões respeito como algumas por aí, de medonhas dentaduras desproporcionais e passos de mamute. Senhorinha porque anda em tictictictic, um pezinho atrás do outro, as pontas do sapato marrom aparecendo rapidinho para fora da enorme saia fina que casta as canelas e as veias saltadas. A senhorinha vai à quitanda, seu carrinho de feira gradeado num recrecrec quase tictictic. Vai de óculos escuros, porque tem lá seu estilo, e as lentes que lhe tapam os olhos, gigantes azul-negro, têm seu degradê - pois a senhorinha adora balançar a cabeça, para cima, para baixo, paracima!,parabaixo!, enquanto passeia pela nova e movimentada França, e vê as pessoas trocando de cor, elas podem ser tanto claras quanto escuras, elas podem ser bicolor no degradê dos óculos da senhorinha! Mas ela já aprendeu que só sentada pode fazê-lo pois, com a idade que guarda em sua caixinha de música, a queda já é experiência, ainda mais entre os paralelepípedos desencontrados das vielas que caminha.

A senhorinha se esgueira para fuçar as horas no relógio de pulso alheio, belo relógio aliás!, o vizinho tinha um idêntico, mas tenho reparado que seus braços andam meio nus, o que será que houve com o relógio do vizinho? - e, percebendo seu atraso, sai andando em tictictic mais ligeiro, senhorinha ratinha. Foi um atraso meio necessário. Imprescindível, digamos assim. Pois passou pela rua do charmoso Café des Deux Moulins, onde em belos tempos trabalhara e que, agora descobrira, estava fechado. Mas na caixa do correio havia um cartão postal, com a fotografia estampada de um bebê gargalhando, num eheheheh! quase audível, sinestesia pura, se me permite. Era um convite, primeiro aniversário, destinado à avó da criança, Georgette, antigamente a fogosa caixa do Café e amiga cujo endereço, puxa vida!, ainda se recordava. Conhecendo Georgette como conhecia, sabia que a desvairada não iria checar a caixa amarela dos correios a tempo. Aproveitaria ainda para bebericar um chá e conversar de novidades arregalantes e reparar em cada quadro colorido que enfeita as estreitas paredes de Georgette. (E assim o fez.) 

A senhorinha vai à quitanda. E pode muito bem, no caminho, prestar atenção nas pessoas sérias que andam por aí, mais precisamente nas pessoas sérias que usam meias coloridas ou de ursinhos bordados. E quando encontra essas canelas, solta uma risadinha discreta, leve como ela toda, um sorriso em vermelha meia-lua, fazendo assim da boca a parte do rosto com menos rugas. E com esse jeitinho, a cabeça se joga para a frente - ela, com idade tão grande como nossa feiúra em fotos três-por-quatro, já treme toda por si só - e nesse suave balanço feliz, os óculos se jogam para a ponta do nariz. A escuridão das lentes se torna ridícula perto daquelas grandes e negras jabuticabas que riem, agora visíveis.

A senhorinha volta a armação elegante ao lugar com as pontas dos dedos, francesa como é, e vai se chegando à quitanda. As jabuticabas se alegram ao ver tanto  tomate vermelhíssimo, e bananas, e abacaxis, e maçãs e afins. E a senhorinha cumprimenta o Seu Lucien, que cuida da épicerie com a mesma boa vontade de sempre - e mesmo estabanamento, não neguemos. Mas o faz direito, sem o tardiamente falecido Monsieur Collignon ao lado feito sombra-pesadelo. Seu Lucien, pelo menos, também percebe que beringelas também têm sentimentos. A senhorinha compra meio quilo do mais vermelho tomate para fazê-lo seco no forno, especialidade que sempre torna os dias do calvo Nino, namorado de sempre, mais prazerosos, diria até mais deliciosos. A senhorinha dá um último sorriso a Lucien, vira-se ao sentido oposto e os cabelos brancos curtíssimos, à luz do sol mais forte do clima temperado francês, fazem seu batom aparentar-se mais e mais vermelho, rouge outro, velha moça. 

A senhorinha Amélie atravessa a rua com força nos braços esguios, carregando suas sacolas de prazeres da quitanda. O anão de seu jardim está por aí, rodando mundo.


segunda-feira, 5 de julho de 2010

Saga.

"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo."


Como a dinastia de Aurelianos e Arcadios de García Márquez, assim me têm sido os gatos aqui de meu quintal e afago, ciclo vicioso que vicia a mim também:


O primeiro foi Gatoní. Certamente não o primeiro para a real apaixonada por felinos da casa, anciã, avó Maria, mas o primeiro para mim, nova semente que o nomeou. Negro, pirata mal encarado, nunca me gostou. Aliás, nunca gostou de ninguém, só de Maria. A mim, unhadas e miados que paralizavam-me: e lá me ia eu, desenfreado pitoco de cabelicos cacheados, a dar a volta por toda a casa para não passar por aquele ser maligno, digno de Allan Poe. Mas à Maria ele ajudava, companheiro: dizem por aí que à Maria ronronava. E só à Maria, de um ronron que se estendeu até seu fim. Gatoní era neurótico, enorme de panças, profundeza em si. Não sorria como outros gatos, e, até certa época, o único outro felino que já vira foi seu reflexo no limpíssimo espelho de corpo inteiro que todos os dias Maria passava um pano úmido. Mas às vezes até que se aventurava a correr atrás de novelos de lã e passarinhos descuidados que pousavam na sacada do apartamento -pássaros estes que Maria, ao ver a corrida do gato, em disparada, e uma ou outra pena amarela no chão, arrancava à força da boca dentuça do felino que, afinal, era felino. Uns saíam pela janela meio capengas, mas vivinhos; outros, numa fragilidade de chave perdida, morriam, às vezes nas próprias mãos nodosas da velha Maria. Com ares de Al Pacino em Perfume de Mulher (belíssimo filme aliás!), Gatoní sofreu as dores do câncer, este sim maligno, que o espreitava sempre que as coisas estavam para melhorar. Idoso de catorze anos, fora levado ao chão de grama e aos troncos de árvore, a um quintal que, em esforços musculantes, poderiam levá-lo aos telhados, barro simétrico sinônimo de liberdade. Mas, por velhice e doença, o gato vivia num velho cesto de palha dura, encaraminhado como ilha num mar calmo de manta colorida, lã-relíquia. Maria sabia que o tempo não mais lhe pertencia. Gatoní, pobre felino mascarado estava sem ares de grandes forças. Chegou então a vez dos gêmeos.


Luna, princesa celestial, era a escolhida. Longos cabelos, face transbordando candura. Bolinha branca, passava os dias janelando.  Janelar ao sol, janelar aos pássaros, janelar aos coloridos guarda-chuvas que se faziam de gente. Vivia em pequeno apartamento, com mais uma legião de gatos que se faziam companhia e esperavam o presente próximo da adoção, além do magro e tímido homem de poucos cabelos e clavículas visíveis, cujos animais eram sua devoção. Lino, frajola panterinha, veio junto por amor do caçula de nossa família, que sempre se mantinha junto daqueles a que se identificava, os bichos sapecas de pilha que nunca se gasta, aqueles que vivem em inércia de tóinhóinhóim prum lado e pro outro, festival de sacolejos pela sala! Lino e Luna me eram por nome, eu Lena, como que alteregos, diferentes personas animalescas tão humanas, que em mim cabiam os dois juntos. Juntos como sempre estavam, a pular um sobre o outro, pequenas mordidas de dentinhos afiados e chutes aos ares, que levavam sempre a miadinhos agudos de nenê que pede e pede e pede: agora! e o mundo era deles, o quintal era deles e o telhado era deles: tinham a liberdade -eu, na falta da minha, ria só de sentir a deles, liberdade tão Alexander Supertramp e tão todomundojunto!


Lino descobriu ter um pai. Gatoní, o célebre e irredutível idoso, permitira que o minúsculo nenê dividisse consigo o cesto. A tal lei do mais forte começava a sumir no mundo livre dos felinos meus amigos. Gatoní já não era mais o mais forte porque a doença o atacava e seu miado perdia a força, mórbido. Era, isso sim, o mais antigo e, portanto, mais sábio. Maria murcharia se o cesto esvaziasse. A hereditariedade era, no caso, a solução. Acho que Maria murcharia porque o tal mundo da liberdade acabaria também a ela, flor octogenária cujas vidas outras eram também dela pois com ela os felinos compartilhavam do ronron.


Até de meus olhos gracilianos pingou o sal, quando em confidência da noite Gatoní permitira meu singelo carinho na cabeça, anunciando morte, anunciando pedra. Pedra que chegou dias depois. Assim se foi, como livro que se fecha. Morreu no cesto. Luna nunca gostou do cesto, estabanada e manhosa que só ela: gostava mesmo era de ficar junto, roçando a cara de porcelana em nossas pernas, inquieta e com fome de estar no mundo, janelar. Lino assumiu o posto. Mas, assumindo-o demais e não por vontade própria, enquietou-se. Não mais passeava pelos telhados, capitão da areia, a audácia juvenil não corria mais em seu sangue. Envelhecera, sem qualquer sintonia com o tempo: tinha então mero meio ano de vida. Não era para ser assim.

 
Lino, outrora espevitado, estava mais idoso que a própria Velha Maria. Não mais nos pertencia: sua árvore genealógica repentinamente fez-se viva e decidiu lembrar de marcar-se. O que sobrou do gatinho pequetico antes abandonado foi a doença. A nova paternidade enlutecida de Gatoní não fez seus genes transformarem-se e combaterem a doença hereditária, cruel e verdadeiramente hereditária, que chegava (e que a seu longínquo irmão, soubemos depois, também apareceu). Lino estava imobilizado por excesso de água no cérebro. Nós, sempre tentando amparar-nos, logo inventamos, em bobinhas brincadeiras, que sua hidroencefalia era, na verdade, inteligência por demais; sua grande cabeça vinha da densidade intelectual da casa. Estávamos nós tentando nos ser em Lino -pois Lino era nosso em essência, era das noites em essência, era da liberdade em essência. Queríamos nós ser a essência da noite, dos pingos de luz chamuscados no céu, da liberdade quente. Pois de Lino nós já éramos. Dias e noites, por eternidades felinas, o pequeno manteve-se no cesto. Tentava andar, mas os membros não lhe davam forças. Maria dele cuidava, amante eterna. Não traindo a si mesmo, o espevitado ronronava e ronronava -seu ronron era maior prova de vida que a respiração. Pois creio que haja um certo heroísmo em ronronar. Pois se o ronronar era possível e nos trazia tanta alegria e choro no escuro, qual a razão para somente respirar? Um herói se é assim. Foi-se embora do cesto e da nossa gente para roubar os faixos de luz da noite e fazê-los explodir em fogos de artifícios, bloom!, correr atrás de vagalumes e borboletas, pois felino humano era.


O cesto parou. Ficou encostado na lavanderia, ao pó da roupa suja. Chegou Toni, gato de extrema brancura, superando até a leiteza de Luna neste quesito. De olhos um pouco estrábicos e cara curiosa, daquelas que até pendem para o lado quando querem entender direito alguma bobice à toa, Toni teve medo. Veio todo com um jeito juvenil. A verdade é que, nos quinze minutos em que saiu do pequeno apartamento que alojava mil gatos para doação, e foi à casa solitária com um ar de coisa demais, coisa de menos, o mundo cresceu. Cresceu cresceu cresceu CRESCEU à uma moda meio explodinte, grande demais. Naquela casa, ao olhar para cima o que se vê é céu, e não lustre, Toni querido. Naquela casa, há gente espiando mais que nunca. Naquela casa há gente querendo. Passou semanas felinas escondido ao pó da roupa suja. O cesto virou sua gruta. Escondia-se inteiro por lá, e só a mim se confiava, permitindo raros carinhos na esbelta barriga. Quando saía pelo quintal, pois os ossos lhe doíam e era preciso comer, matar a sede e cagar, ia esguio, quase encostando o peito ao chão: tentava-se fazer chão, inumana matéria sem cor sem nada. Mal sabia que disso se fazia seu mais humano ser, puro Freud, puro medo, pura afronta de mundos, pura mistura que é ser tanto si quanto os outros, Toni Gatoní do avesso. Com os tempos, foi-se esgueirando, botando a força nas pernas para levantar num tanto que Lino não conseguira, pobre. Foi-se chegando à Luna, momentânea rival de outras bandas, e passaram a brincar e morder-se no quintal que era deles, ó meiga Luna! Foi-se nos chegando, e seu ronron, audível a distâncias assombrosas, se fazia a simples toques delicados no corpo engraçado que usava, que era também de pantera: a branca pantera aos poucos começava a panterar, audaciosa, honrando o tal cesto, que resiste a gerações de machos felinos, símbolo-pilar palhoso e quente de Maria.


Há de haver uma certa semelhança entre os gatos, uma certa família. Pois, a quem disser que gatos são animais solitários, que de ninguém nunca precisam, eu sou a primeira a negar.


sexta-feira, 2 de julho de 2010

Singer.

A agulha sobe e desce, frenético modo tuf-tuf de ser. Seu rastro não está no metal rápido e fino, invisível. Seu rastro é linha branca entrelaçada que tenta seguir caminho reto e sem deslizes, crescendo e juntando as partes da flanela que não é nada mais além de um pedaço de flanela. Faz me bem costurar. Conduzir a linha pelo labirinto da Singer até chegar à fresta da agulha, ponta afinada. Acender a pequena luz amarela, único foco no breu da casa solitária às oito horas de uma quinta-feira à noite. Acelerar, pé na tábua,  pedal da Singer que me sabe e aceita o rumo que moldo, demodê modelo sem teoria, impulso da vontade não de roupa mas de linha demarcada, sinal cabal de vidas e poesias, sinal cabal de minha existência tosca e só, soando versos desafinados e de melodia errada na casa que me lembra nós. Pois eu e minha Singer, companheira, cantamos juntas -e canto torta somente eu, pois ela segue a condução que faço da flanela mas é irresoluta, rainha rubra com jeitos de quem manda no lar. 

Alfinetes, música, livros jogados para os lados. A história é ali, em cada tuf imediato nas cores da flanela que me acompanhará. Já foi-me dito que sou de família memorialista e, portanto, memorialista sou também eu. Guardo a imagem na câmera, guardo toda história em baús que sempre abro e abro de novo para fuçar e avivar a recordação. Guardo as aventuras em tênis rasgados de marrom vermelho. Saias tortas de acabamento pobre guardam minhas noites de solidão aconchegada e boa, em cada botão uma saga em grama, chá mate e toalha xadrez; em cada arremate um debate; em cada florzinha da estampa um amigo ou ente querido. 

Corto a linha e experimento: está mais ou menos, sempre um mais ou menos. Mas talvez mais mais e menos menos. O espelho espia, curioso, cada volta no corpo errado que me serve, esqueleto sem prefixo de inseto, pois platônico e dualítico, isso seria. paralítico. A barra acabou por ficar meio retorcida, mas isso é coisa que só os olhos repressores do reflexo sujo reparam e desprezam. As pregas formam novo caimento para a nudez. Sou nua nas noites de mim. Exoesqueletos são meu baú: guardo todos com cuidado, dobrando e alisando, ajeitando de vez em quando com a Singer minha amiga, um ponto ali e outro aqui, um ajuste na cintura  também não faz mal nenhum. Às vezes, retomo e saio mostrando, pois é esqueleto que ao lado de fora pertence, mundo e gente. é? Pois tão guardo com cuidado como visto e uso com cuidado: sou eu que os faço.