segunda-feira, 5 de julho de 2010

Saga.

"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo."


Como a dinastia de Aurelianos e Arcadios de García Márquez, assim me têm sido os gatos aqui de meu quintal e afago, ciclo vicioso que vicia a mim também:


O primeiro foi Gatoní. Certamente não o primeiro para a real apaixonada por felinos da casa, anciã, avó Maria, mas o primeiro para mim, nova semente que o nomeou. Negro, pirata mal encarado, nunca me gostou. Aliás, nunca gostou de ninguém, só de Maria. A mim, unhadas e miados que paralizavam-me: e lá me ia eu, desenfreado pitoco de cabelicos cacheados, a dar a volta por toda a casa para não passar por aquele ser maligno, digno de Allan Poe. Mas à Maria ele ajudava, companheiro: dizem por aí que à Maria ronronava. E só à Maria, de um ronron que se estendeu até seu fim. Gatoní era neurótico, enorme de panças, profundeza em si. Não sorria como outros gatos, e, até certa época, o único outro felino que já vira foi seu reflexo no limpíssimo espelho de corpo inteiro que todos os dias Maria passava um pano úmido. Mas às vezes até que se aventurava a correr atrás de novelos de lã e passarinhos descuidados que pousavam na sacada do apartamento -pássaros estes que Maria, ao ver a corrida do gato, em disparada, e uma ou outra pena amarela no chão, arrancava à força da boca dentuça do felino que, afinal, era felino. Uns saíam pela janela meio capengas, mas vivinhos; outros, numa fragilidade de chave perdida, morriam, às vezes nas próprias mãos nodosas da velha Maria. Com ares de Al Pacino em Perfume de Mulher (belíssimo filme aliás!), Gatoní sofreu as dores do câncer, este sim maligno, que o espreitava sempre que as coisas estavam para melhorar. Idoso de catorze anos, fora levado ao chão de grama e aos troncos de árvore, a um quintal que, em esforços musculantes, poderiam levá-lo aos telhados, barro simétrico sinônimo de liberdade. Mas, por velhice e doença, o gato vivia num velho cesto de palha dura, encaraminhado como ilha num mar calmo de manta colorida, lã-relíquia. Maria sabia que o tempo não mais lhe pertencia. Gatoní, pobre felino mascarado estava sem ares de grandes forças. Chegou então a vez dos gêmeos.


Luna, princesa celestial, era a escolhida. Longos cabelos, face transbordando candura. Bolinha branca, passava os dias janelando.  Janelar ao sol, janelar aos pássaros, janelar aos coloridos guarda-chuvas que se faziam de gente. Vivia em pequeno apartamento, com mais uma legião de gatos que se faziam companhia e esperavam o presente próximo da adoção, além do magro e tímido homem de poucos cabelos e clavículas visíveis, cujos animais eram sua devoção. Lino, frajola panterinha, veio junto por amor do caçula de nossa família, que sempre se mantinha junto daqueles a que se identificava, os bichos sapecas de pilha que nunca se gasta, aqueles que vivem em inércia de tóinhóinhóim prum lado e pro outro, festival de sacolejos pela sala! Lino e Luna me eram por nome, eu Lena, como que alteregos, diferentes personas animalescas tão humanas, que em mim cabiam os dois juntos. Juntos como sempre estavam, a pular um sobre o outro, pequenas mordidas de dentinhos afiados e chutes aos ares, que levavam sempre a miadinhos agudos de nenê que pede e pede e pede: agora! e o mundo era deles, o quintal era deles e o telhado era deles: tinham a liberdade -eu, na falta da minha, ria só de sentir a deles, liberdade tão Alexander Supertramp e tão todomundojunto!


Lino descobriu ter um pai. Gatoní, o célebre e irredutível idoso, permitira que o minúsculo nenê dividisse consigo o cesto. A tal lei do mais forte começava a sumir no mundo livre dos felinos meus amigos. Gatoní já não era mais o mais forte porque a doença o atacava e seu miado perdia a força, mórbido. Era, isso sim, o mais antigo e, portanto, mais sábio. Maria murcharia se o cesto esvaziasse. A hereditariedade era, no caso, a solução. Acho que Maria murcharia porque o tal mundo da liberdade acabaria também a ela, flor octogenária cujas vidas outras eram também dela pois com ela os felinos compartilhavam do ronron.


Até de meus olhos gracilianos pingou o sal, quando em confidência da noite Gatoní permitira meu singelo carinho na cabeça, anunciando morte, anunciando pedra. Pedra que chegou dias depois. Assim se foi, como livro que se fecha. Morreu no cesto. Luna nunca gostou do cesto, estabanada e manhosa que só ela: gostava mesmo era de ficar junto, roçando a cara de porcelana em nossas pernas, inquieta e com fome de estar no mundo, janelar. Lino assumiu o posto. Mas, assumindo-o demais e não por vontade própria, enquietou-se. Não mais passeava pelos telhados, capitão da areia, a audácia juvenil não corria mais em seu sangue. Envelhecera, sem qualquer sintonia com o tempo: tinha então mero meio ano de vida. Não era para ser assim.

 
Lino, outrora espevitado, estava mais idoso que a própria Velha Maria. Não mais nos pertencia: sua árvore genealógica repentinamente fez-se viva e decidiu lembrar de marcar-se. O que sobrou do gatinho pequetico antes abandonado foi a doença. A nova paternidade enlutecida de Gatoní não fez seus genes transformarem-se e combaterem a doença hereditária, cruel e verdadeiramente hereditária, que chegava (e que a seu longínquo irmão, soubemos depois, também apareceu). Lino estava imobilizado por excesso de água no cérebro. Nós, sempre tentando amparar-nos, logo inventamos, em bobinhas brincadeiras, que sua hidroencefalia era, na verdade, inteligência por demais; sua grande cabeça vinha da densidade intelectual da casa. Estávamos nós tentando nos ser em Lino -pois Lino era nosso em essência, era das noites em essência, era da liberdade em essência. Queríamos nós ser a essência da noite, dos pingos de luz chamuscados no céu, da liberdade quente. Pois de Lino nós já éramos. Dias e noites, por eternidades felinas, o pequeno manteve-se no cesto. Tentava andar, mas os membros não lhe davam forças. Maria dele cuidava, amante eterna. Não traindo a si mesmo, o espevitado ronronava e ronronava -seu ronron era maior prova de vida que a respiração. Pois creio que haja um certo heroísmo em ronronar. Pois se o ronronar era possível e nos trazia tanta alegria e choro no escuro, qual a razão para somente respirar? Um herói se é assim. Foi-se embora do cesto e da nossa gente para roubar os faixos de luz da noite e fazê-los explodir em fogos de artifícios, bloom!, correr atrás de vagalumes e borboletas, pois felino humano era.


O cesto parou. Ficou encostado na lavanderia, ao pó da roupa suja. Chegou Toni, gato de extrema brancura, superando até a leiteza de Luna neste quesito. De olhos um pouco estrábicos e cara curiosa, daquelas que até pendem para o lado quando querem entender direito alguma bobice à toa, Toni teve medo. Veio todo com um jeito juvenil. A verdade é que, nos quinze minutos em que saiu do pequeno apartamento que alojava mil gatos para doação, e foi à casa solitária com um ar de coisa demais, coisa de menos, o mundo cresceu. Cresceu cresceu cresceu CRESCEU à uma moda meio explodinte, grande demais. Naquela casa, ao olhar para cima o que se vê é céu, e não lustre, Toni querido. Naquela casa, há gente espiando mais que nunca. Naquela casa há gente querendo. Passou semanas felinas escondido ao pó da roupa suja. O cesto virou sua gruta. Escondia-se inteiro por lá, e só a mim se confiava, permitindo raros carinhos na esbelta barriga. Quando saía pelo quintal, pois os ossos lhe doíam e era preciso comer, matar a sede e cagar, ia esguio, quase encostando o peito ao chão: tentava-se fazer chão, inumana matéria sem cor sem nada. Mal sabia que disso se fazia seu mais humano ser, puro Freud, puro medo, pura afronta de mundos, pura mistura que é ser tanto si quanto os outros, Toni Gatoní do avesso. Com os tempos, foi-se esgueirando, botando a força nas pernas para levantar num tanto que Lino não conseguira, pobre. Foi-se chegando à Luna, momentânea rival de outras bandas, e passaram a brincar e morder-se no quintal que era deles, ó meiga Luna! Foi-se nos chegando, e seu ronron, audível a distâncias assombrosas, se fazia a simples toques delicados no corpo engraçado que usava, que era também de pantera: a branca pantera aos poucos começava a panterar, audaciosa, honrando o tal cesto, que resiste a gerações de machos felinos, símbolo-pilar palhoso e quente de Maria.


Há de haver uma certa semelhança entre os gatos, uma certa família. Pois, a quem disser que gatos são animais solitários, que de ninguém nunca precisam, eu sou a primeira a negar.


2 comentários: