quinta-feira, 10 de março de 2011

Jogo de espelhos


Me vejo em Buenos Aires
Nas calles de abajur
Nas infâncias de moleques
E as chuteiras de couro surrado
Cujos cadarços pendurados no fio
Fazem dois nós formando laço

Me vejo no amarelo do semáforo
Nas esquinas em cursiva
Na paixão das mudanças temporais

Me vejo, aliás,
Na paixão de velhos tangos
Na paixão dos coches rojos
Rodando asfalto em gardelices

Nos cabelos ondulados eu me vejo
Mas urbano masculino e negro
Acobertando milonga em flechas
Da mirada forte que me espera
Para só depois piscar

Nas mechas de fermento e miçangas
Sobressalente das jubas mansas
Que se achegam desdensadas
Quase fiapíssimo de luz
Até tocar os pés andantes;
Aí então eu me bejo

Nos almoços à luz fraca
Sob voz da soprana madre
Olhos esguios e braços férteis
Sob um salto alto em pedras

No azul aguado
No branco da alvorada
Nos ventos brandos almejando pátria
Toda casa, varanda, tienda e barco

Me vejo em Buenos Aires
Nos balcões de coração moldado
Tanto amor, serenata desestrelada

Na metrópole de cores eu me vejo
No caminito de poemas
Nos vitrais escondidos escombrados
E nos regalos floridos dos postes de luz
Que abrem olhos antes de poentes

Poente de cidade, poente sem carne
Um poente sem cor nem pauta;
No poente extraviado também me vejo

Nas caliências e gentilezas
Nas estrofes de Boedo
Celofânica saturação gelatinosa
Das imponências arroseadas

Na fila de meninos magrelos
Os pés sem alcanço ao chão do muro
No balanço acalorado de chuteiras
E o voo capotônico da bola

Me vejo nos furores Dieguito
Na expressão intacta como deve ser
Expressão de passos firmes
Sobre o palco de tacos infalsos
Do entrelace rígido de pernas e canelas
Na expressão de hiatos
Vozes limpas, mãos, batons
Nos muros de pixe e ideologia
Nas amizades com garçonetes estudiantes

Me vejo em Buenos Aires
Nos sorvetes de máquina retrô
Nos doces de leite
E dedos de lamber açúcar


Me vejo em Buenos Aires
Em cafés com medialuna
Ou nas hermosas buenas noches

Me vejo em Buenos Aires
E numa jovem de cabelos livres
Vestido verde cor brasil
Do outro lado, flores de praça
Num lapso de segundo, coisa ínfima
Sob o sol escancarado vi a moça
E sem mentiras pensei que, oh!
Era eu em Buenos Aires
Cá me vejo
Cá nos vivo.

(aqui encerra-se o diário de viagem "Argentchile". Besos, besos, y hasta la vista!)

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