domingo, 22 de maio de 2011

Os trens já não passam mais aqui

ao digníssimo Quarteto Fantástico & O Camarão

Éramos cinco, mais o grande relógio apontando fim de manhã. As horas eram como os muitos cães da vila, se arrastavam sonolentas pelas ruelas de paralelepípedo, perseguindo. As cores dos cabelos e casacos eram o que, de nosso, tiravam o preto e branco natural da cidade.  Caminhávamos rindo, meio em saltites meio em desleixo, apontando arquiteturas e gatos, doçuras e vontades do tato. O quinto amigo lembrava um grande ursinho e servia de aconchego para nossas friorices e maldizeres espevitados; meio desengonçado, nos aguentava com doçura. A primeira era sapeca e gostava de falar o óbvio em sotaques emprestados. A segunda sorria e prestava atenção nos quadrúpedes, enquanto contava sabedorias dos irmãos mais velhos. A terceira arregalava os olhos cor de lago e anotava, enquanto andava com pernas largas. Eu pensava que já conhecia de um tudo naquele lugar. De onde se vê o mar, o mirante embocava direto na névoa. 

Dona Francisca Contadora de Causos prosseguia de mãos atadas na varanda, vendo as flores crescerem a morte do trem. O fusca azul se recostava na mesma calçada de alguns anos atrás. Os velhos de antes nas janelas dantes. A manicure do humilde salão de beleza mantinha em dia os tititis com sua cliente sobre as desnovidades da vila quieta e nós quatro, enxeridas, nos amontoávamos na soleira da porta espiando o espelho de camarim e as perucas de palha, enquanto o quinto amigo ficava ao lado, olhando de esguelha e nos puxando pelos casacos. Então saíamos, lado a lado, braços entrelaçados e mãos guardadas nos bolsos uns dos outros. Assim nos juntávamos ao grande grupo que nos acompanhava e vezenquando fazia-nos parte, vezenquando nos era alheio. Éramos cinco e a vila era um ovo, impossível de se perder, assim pensávamos em arrogâncias desbravantes. Uns passos pra cá ou pra lá e fomos nos distanciando. Devíamos voltar ao grupo, que se bifurcara procurando arroz-feijão.

O caminho parecia álbum de fotografia e os raros moradores, do alto de suas janelas, faziam pose sem querer, que assim saía mais bonito. Benedita varria o quintal e ainda não conversara com os vizinhos, coisa que me contou em minha última visita. O gato colossal caminhava sobre as cercas e eu contava que já conhecia essa cena, e a outra, e que já conversara com aquela senhora também e na verdade eu me sentia em casa aconchegada, juntando nas mesmas lentes o presente de meus quatro amigos e as memórias dos meio-poetas de antes. As casas eram iguais, mesmas tábuas de madeira pintada, mesmo fungo pelas grades. Primeira à esquerda, primeira à direita, entra na rua da escola e segue mais um pouco, depois entra na segunda rua e acabou que nos perdemos. Éramos cinco e hesitamos. Éramos cinco e retornamos no exato caminho de gengivas ao léu, rindo de nossa própria besteirice. Imagine só, achar que Macondo não tem mistério? O tempo é quieto, mas passa, mesmo na cidade estática. Era o fim da manhã e os postes de rua alaranjavam a neblina com suas lâmpadas eternamente acesas. 

3 comentários:

  1. memória é coisa bonita como coisa, mas dolorida como vivência, já que é o que não mais se alcança. é o espaço para a reinvenção. mas, ué, quem disse que dor e beleza não se abraçam?

    [nota mental: visitar Paranapiacaba]

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  2. Lindo! (Mais palavras do que essa estragariam a coisa toda :)

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  3. Imagine só, achar que Macondo não tem mistério?

    =]

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