sexta-feira, 15 de junho de 2012

Conto da apertação

Dinossaurava, com as mãos de unhas roídas postadas para a frente, abanando o vento e o caminho que vinha. Passava lento, complicando-se em cada pegada, e já nem mais as horas sabia ler por detrás dos longos pelos abandonados na era do preto e branco. As costas dromedárias deviam doer grunhidos no chegar cansado da tarde parda de pardais escondidos em vielas paulistanas. O amarelo nas sacadas e portas altas era o outono intocável do centro velho, entre postes de luz apagada, entre o dia que vinha à trabalho e a lua que não fazia questão nenhuma de postar-se parada vendo as vidas se cruzarem em bem-ou-mal-quereres. Ali nos víamos, amarelados pelos abajures da cidade, eu e o senhorinho, que andou tal como andava antes, parou rente à minha vista e tirou o marrom sujo dos sapatos junto com os sapatos todos, enlameados, sobrando de inteiro só o cadarço sujo. Saiu descalço, lento e doído, manchando o chão gelado com um sangue tão mirrado e tanto, nem nele cabiam adjetivos mais. A equipe de limpeza chegou naquela mesma semana e o sangue fraco, esparramado, foi-se em queda pelos bueiros, pelos cheiros do centro velho. Os pés do senhor cicatrizavam de poucos, à revelia das plaquetas precárias, enquanto (entretanto) as dores se enfrioravam cada vez mais. Passou dia, passou outro, e os cadarços, por travessura alheia, resistem segurando os velhos sapatos sobre a fiação, dependurados, espiando a todo tempo a cidade que nem mesmo a lua teve vontade de ver.

Um comentário:

  1. muito sensível a imagem de "outono intocável do centro velho", muito muito justa, precisa, difícil encontrá-las! helena lindona

    Giu

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