quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Sarau


(um presentinho de aniversário bem simplezinho pra Nicoletta.)

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Bandidagem


Tlic. Tlec.
- Vó, acabou a luz.
- ;
Tlictlectlictlec.
- Ô vó!
- ...hm?
- Cabô a luz...
Tlictlectlictlec.
- Viu?
- Hoje saiu a lua, querido. Assim grandona. A lua não tem chama, ela é de frieza brilhante, toma os flashes emprestados e fica lá bonita, só chamando a gente. De onde você acha que ela rouba a luz?
- ;
- Abra a janela, vá lá.
- Pra quê, vó?
- Não queres luz? Vá lá e pegue um pouco emprestado. Guarda nos olhos um reflexo de mundo, que assim você vive por mais tempos.
Nhec. Janela emperrada é de desuso. Pó; trincas com trejeitos de envelope.
Abriu. Cartas são coisa de beleza cursiva, beleza de fibra.
(A lua é uma rosa branca, dessas que desabrocham que nem curiosidade de menino. É jaboticaba, tal qual curiosidade de menino, que pela manhã macaqueia na árvore de raiz noturna, uma raiz gigantesca que cobre o céu e forma um ninho. Esse mundo-ninho, mundo-moinho.)
- E quando a luz volta, vó?
- Logo pela manhã, tem sol por essas bandas, iluminando casa, rua e pálpebra. Afinal, com aquele calor todo, quem você acha que assa nossos pãezinhos toda manhã até deixá-los dourados?

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Do nosso sertão rosado


A saturação cresceu. As folhas secas de mentira carregam, mascaradas, mais poeira concentrada. Isso tudo não passa de falsa pigmentação. E o céu, ah céu!, de limpeza ancestral, azul desnuveado, desnudo. Justo hoje, dia pós. Pós-fogo, pós-bichos, pós-estrela, pós-causo, pós-causa, pós-coisa, pós-chapéu, pós-gado, pós-pó - eu bem sabia que esse sertão tinha algo de ressurreição. Pós-pretérito, pré-São-Paulo . Agora, esse agora tão falado, esse mesmo, agora já foi: já foi vãn, já foi cantoria, já foi saltimbanco, já foi de leite, já foi cão, já foi alpercata, já foi charminho, já foi maçã. Na-na-não. Descobri no fundo de minha mochila sertaneja uma última maçã, vermelha feito sangue de tiro jagunço, que eu catara para uma última vereda, uma andança final nas estradiças de Cordisburgo, em algum lugar desse pontinho cartográfico que é o coração. 

Sentei-me eu meu chão de tacos paulistanos empapados de verniz (estar à burguesa cama parece agora ainda mais impossível). Cá eu rasgo dentadas de onça em minha maçã-resquicio, que sobrou de alguma trilha sem fomes. Já algumas escuridões invadiram-na, já umas sombras chafurdaram a velhice (Rosa, presente em meu fruto, já completou centenário). Mas é boa, assim dessas que dão gosto gastar mandíbula. A maçã, resquício das terras empoeiradas que tanto amei, encroquece o céu da boca, sem qualquer trejeito de areia, essas coisas que odeio mastigar. A maçã é mar em cor do sertão. Naveguemos no mar mineiro, agora já, nessa São Paulo que me devora e alimenta, edifica-me. 

Se fizeres um esforço, dá pra ver a olho nu, lá pros bandos da semente: eis que, nesse oceano do mais fresco pó, o calado homem do bote, outrora de sentidos vendados, desdiz-se, desdói-se, e descobre onde está, enquanto cantarola com grossa garganta, em tom de berrante: "Ninguém de mim, ninguém de mim, tem compaixão, tem compaixão." O bote não passa de viola; resta seguir as cordas afinadas para achar os tais caminhos. A maçã acabou e se desengoliu, enquanto a semente eterniza-se comigo, acá junto de minhas palavras de brasa, nessa tal terceira margem. O resto, a gente intui.

(07/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)


quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Berço


Tlim-tlim-tlim.
Ouve, menina
Ouve, miguilim
Essa cintilância doce
Brilhante assim
Dos penduricalhos infalhos
Em meu berço jardim


A fogueira, tua manta
Nosso manto envolvente.
Nina com a digital marcada
Dedos de céu no rosto quente
Mas não afoga-te em sol sal seu
Bóia no céu, penduricalho cadente
Abóia estrela nos fios-teia
Móbile enfim móvel, sente?


Tlim-tlim-tlim
Pisca, menina
Pisca, miguilim
O céu móbile rodando mundo
Ciclo círculo sem fim
Se queres, és tantos bichos
Avoa junto, passarim!


Ser passarim é
Dar passo no ar,
Do maior altar
Poder bisoiar o mar.
Antes de partir, passarim
Venha cá me abraçar


(07/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Natalie

Aqui comigo do meu lado tem uma menina beirando a década, uma só. Uma menina bonita, um nome bonito, uma dupla de olhos que é boniteza só. É cor de tronco, mas carrega o mar, em formato de onda. Dedo na boca, maçãs rosadas. Esses dedinhos gordinhos, de unhas luar, mudam a idade, não sei se pra mais ou pra menos. Ela olha com os cantos dos olhos pr'essa gente esquisita que anda comigo, esboçando sorrisos envergonhados, caipirescos como ela mesma. Mexa esses teus pezinhos de unhas tutti-frutti - adereço de criança - e senta aqui comigo na varanda!, vamos juntas combinar as brincadeiras e bambolês pros minutos do agora-já, nessa tarde que se achega e aconchega.

(06/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Limbo não é vácuo

"Dorme a cidade / Resta um coração Misterioso Faz uma ilusão Soletra um verso Lavra a melodia Singelamente Dolorosamente Doce a música Silenciosa Larga o meu peito Solta-se no espaço Faz-se a certeza Minha canção Réstia de luz onde Dorme o meu irmão"


O sol desmaiou. Daqui a pouco ele volta, é só esperar mais umas dez, onze horas. Enquanto isso, tem outras faíscas por aí, para entreter e manter. No tronco em chamas, choros, histórias; no queijo abrasado, desses mineiros mesmo; no cobertor xadrez e nas mãos maternas. Nos cabelos dessa gente bonita minha. Enquanto isso as infantes moçoilas, outrora rodopiando entre frescores e grama, limpam os pés no tapete de entrada - "Bem vindo!" - e falam sem parar, entre um baralho ou outro, entre mínimos tecos de doce furtadinhos de pouco em pouco. 

Agora é tempo de rede, mas alguns ainda estão a janelar - sempre é tempo de janelar, convenhamos. Essa gente aqui gosta de contar suas histórias, ainda mais de cotovelos ao poente rural. Agora não é amarelo nem azul, agora é coisa do mais verdadeiro diabo (só pode ser), nem fotografia guarda porque os focos são múltiplos, são abertos, são a difusão de um horizonte. Espera um pouquinho, oras. Pois o fogo é feito em turnos, mas o do tal agora não atrasa, não - Sol, fogueira, humanidade. Qualquer coisinha, é só isso: a gente se agarra e vira fogo mútuo, ê amizade. O agora tem céu degradê, mas ainda esquenta. Aproveita o céu de agora, que daqui a pouco ele se esvai, o vento leva (esse vento insiste em levar prazeres, ideias, lembretes, pois é). Não te preocupes, bela moça. Do nosso fogo, esse fogo bonito e solidário, desse mesmo: fazes parte dos próximos turnos.




(06/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)

domingo, 12 de setembro de 2010

Maquiné


Só se ouve o farfalhar das patas no solo estável. (Estável é palavra que devia ter significado oposto, pois o que está não é sempre, só fica sendo frações de momentos.) No breu sem falsas luzes vagueia um cão. E elefantes. Águas-vivas, abutres, formigas, dinossauros, porcos, lobos, dromedários. Andam todos em maneiras sibilosas, sigilosas, feito cobra ou pingo d'água. A acústica é cadeia, mas de certos furos, convenhamos. Se é subterrâneo acá é porque é outro mundo. Gruta, furta fruta das gentes lá do térreo. Noutro mundo não se impões o próprio - credo. As noites na gruta eram festança, num jeitinho meio eterno de aprontar as coisas. 

Um minutinho aqui, um instantinho acolá, cadê os bichos desse mundo marmoso? E o burrinho destas pedras nossas (afirmo-me bicho das antigas também, agora), onde está ele? As resinas luxuriosas, a bebida do lago, o céu no mar, amar, o sabor suave de doce de abóbora? Fugiram todos e fiquei aqui onisciente. Os bichos sentiram medo, apego, em seguida apego ao medo, e encrustaram-se à parede - para quê roubar nosso canto, bigodudos sem questionamentos? Gruta, entrega-te a Rosas e àqueles que, como rosas, entregam-se a ti. 

Na gruta, a sombra dos bichos existe no silêncio escuro. O mar de mármore, no teto, nervoso, aquietou-se para acobertar os bichos, quando eles se esconderam dos invasores descoraçados e se tornaram animais. Há vida quando se exclama ou pinga. Os animais agora parecem eternidade, camuflados de pedra, fazendo-se coluna e muro - morte? Vez ou outra, quando não há gentes despetaladas em volta, os animais dão uma piscadela, ou pingam resina de desejo. Bichos. Os bichos da Gruta do Maquiné, pura interpretação do ser concreto. Tem quem veja e entenda, é vero, essas fantasias da humanidade, pensam outros.

É, tenho minhas dúvidas sobre a eternidade, aparenta grande por demais, do tamanho da grande gruta, mas na verdade, metida a besta: eterno se superficializa, dessas mil camadas (pois é, camarada).




(05/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)

sábado, 11 de setembro de 2010

Nascer


De olhar muito pro céu azulento, em densa gradação, os pés meio que esquecem do tchoctchoc de tocar no chão terroso, meio que trupicam nos pedregulhos descaminhados, meio que fazem avoar a boca. E é assim que se dá a luz ao sorriso.


O sol é sorriso puro, e a lua é aprendiz, dessas que pegam aspas emprestadas. E a gente aqui: dia, caminhando contra a secura dourada; noite, emplastrados na grama cor de prata, reflexo de lua e estrelas maternais. E a gente aqui: sorriso branco que reflete a luz folhada. molhada. mas de quê, uai, se o ar é de pó?


(05/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Fora da refestança


"Nessa estrada canto e gemo de verdade." O sol se põe em roldanas, com contrapeso de poeira cor de passado que, em devaneios, se integra feito molécula ao ar mineiro desse aqui aventureiro.

Fomos. Empacotados em uma van de empecilhos em vão, sem espaço para meros caprichos: uma festa regional nos esperava, alegre e amarela. Ou melhor dizendo, esperávamos chegar à tal humilde festança, entre trancos e barrancos (e escuridão noturna e torpor e receio de atravessar um raso rio sobre pneus). Forró, bandeirinhas volpianas carregando cores para a iluminação do evento, mandioca, reza desenfreada de rugas atentas (...rogais por nós, pecadores...). O retorno era garantia de sopa, banho, água, colcha, bolo de laranja. Só restava retornar, que assim fosse. Mesma direção e sentido oposto, o caminho desconhecera-se de nós, luneta com tampa, bússola desnorteada entre as tantas bifurcações de estrada. E nós, idiotas, ali sem nem conhecimento de nortes pelas estrelas - aquelas muitas e muitas estrelas da noite mineira. Os únicos vestígios do bom eram o som chacoalhado da gaita do nosso mestre, e o cochilo aos ombros amigos. Mas é que, pensemos, o bom de perder é achar em seguida. Achar-se, melhor ainda.

(04/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Tempos pra cá

"Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçôo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois." (G.R.)


E aqui eu me repartiria, se por acaso aqui estivesse há bem uns cem anos. Aqui, nesse trilho de veredas, se eu sem querer enfrentasse o trem como o mirradinho Pingolim, a história de Sorôco e mineiros tantos seria outra, com inovações inesperadas nos relógios velhos: por algum acaso o trem que parou ao passar-me sobre o corpo (e também sobre formigas) não atrasara o destino ferroviário de loucas familiares e do próprio cabra de barbas grandes? 

Estou aqui de novo, agora em objeto eu, agora em badalar de tempo meu, agora em século vinte e um, agora sem Sorôco, sem outras loucas dantes, sem lenços molhados ou burburinho de empobrecido adeus. No meio do trilho estamos eu, os restos guardados com carinho patrimonial,  as formigas e alguns cacos de vidro - pois bebedeira sertaneja é também pura contação de causo. Pois dois pensantes minutos, num aqui maior que centenários, aqui vivi, aqui morri, aqui ecoei junto à doída cantiga das loucas.

(04/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Estrada


E essa coisa toda de tradição. Pão de queijo mineiro, doce na folha de bananeira e chapéu de desbravante. É bonito esse jeito de tradução, é acreditar em um mundo de causos. 

Nós acá vamos para ali, Cordisburgo, a cidade do coração e do contista de rimas roucas. Que a etimologia é o destino do lugar, é o que está a descobrir, num além do que já é acreditado. Tradição é tradução do acreditado, e não sei bem se isso chega a ser ditado. 

Com o que me cabe em coração,
Helena
(04/09/2010, Cordisburgo, Minas Gerais)