quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Relato do amor invisível

Eu amo esta criatura enquanto ser vivo e sobrevivente, como célula de resistência, e ao mesmo tempo posso nutrir amor como a pessoa que é, completamente humana. Desta soma, imersa na mesma criatura, resulta que amo e que não tenho capacidade nem vontade de amar agora e desta forma a ninguém além deste único organismo. 

De repente fiquei cego. Não tão instantâneo foi o processo mas alguns poucos meses parecem horas se comparados a toda uma vida de vista. E ainda mais esta vida. Não quero assegurar que minha dor tenha maior valor ou que seja eu o único resumo vivo do sofrimento. Embacei gradativamente, um pé depois do outro, e uma vista cansada normalíssima para a meia idade então se transformou no mais imenso infinito. Garoas se transformam em tempestades. Parece, porém, que todas as galáxias dormem, quase hibernam. E eu ando, ando, ando mais, mas não encontro o lugar de encruzilhada entre o conhecido e o nada. O espaço do nada, denso, flúido, flácido, plasma, duro, não se sabe, deve ser lindo, tanto inimaginável que até agora parece ser impossível - onde possa encontrar qualquer coisa diferente da treva tátil, ultrassonora, aos quais meus sentidos me submeteram. Ouço espirros que antes os ouvidos não alcançavam e tenho então a leve sensação de que o mundo está um pouco mais resfriado. Não é o mundo, sou eu, que vivia do contraste e da luz e sombra. Me lembro inclusive de andar pelas ruas e, ao início da noite, quando as luzes dos postes se acendem, me lembro do medo ridículo que tinha da minha própria sombra. Hoje a sombra é geral. Fez-se a luz ao meu redor, em todos os possíveis ângulos. Misteriosamente, o resultado não foi a claridade total, como se esperava, e sim o breu da sombra espalhada como um oceano ao redor da ilha. A ilha sou eu.

Me apaixonei quando vi que aquele corpo era completamente único; não só aquele como todos. Mas então já era tarde, o caminho agridoce da vida conjunta já nos tinha unido e nos feito trocar toques. Depois, em tempo recorde, amei. Agora me lembro, chorando, que éramos visualmente a beleza, e assim nos reproduzíamos em nós, de manhã, de tarde e de noite. Na madrugada nos encarávamos nos olhos falando da rotina. A última semana foi inteira uma aflição sobre a retina, e o globo ocular, membranas, nervos ópticos.

- Hoje no trabalho ouvi coisas engraçadas nas fofocas do chefe; Hoje para mim foi um pouco mais chato, o serviço estava vazio, o tédio reinando… - e por aí ia. 

Hoje eu estou em um leito até que confortável, nos primeiros dias de recuperação após o baque da cegueira total. Amanhã cedo irei para casa, sentir os cheiros específicos do meu lar e de meus sabonetes, minhas plantinhas em vaso, a bosta amanhecida dos cães no quintal, todo esse conjunto é lindo. Agora tenho em minha diagonal a pessoa que me ama, a qual eu amo/desejo/quero/jogo-me de volta. Não chega a roncar, é apenas um sussuro sonâmbulo, penso agora de forma dócil. Esta nova cegueira está me colocando uma poesia nos poros que chega a ser ridícula. Já deve ser de madrugada. Só acordará amanhã, me trazendo nas mãos um copo de café ou coisa do gênero. Penso agora que poderia, não fossem meus olhos a atrapalhar, estar na cama comigo, a de casa, o corpo macio estirado ao meu lado. Sinto saudade desse corpo, já, e choro apenas de pensar que nunca mais verei suas peculiaridades e formas tortas, sua pele fria e seus pelos espalhados. Sinto que ver o teor deste corpo será uma magia de sentidos em falta. É claro que as mãos, as bocas, as narinas e o encostar de meu corpo ao outro, há isso tudo, e há a lembrança e a capacidade de rememoração, o desejo de ter olhos bons só para ver os olhares e sorrisos do ser que amo, e que desta forma muito me dizia em momentos de silêncio. Fica na cabeça o retrato de quando começamos a namorar, bem como de meu último aniversário, e criamos rugas. O corpo é forte, e pulsa forte, e mastiga forte, digere, processa, sente dores de passagem e retorna ao equilíbrio. Parte da cabeça de pouco cabelo, desce aos olhos, ao nariz apontado como flecha, ao pescoço curto, os ombros, o peito e barriga, a cintura, coxas e pés.

Os pés, quando o corpo não dorme, vestem sempre botas de couro, e me guiarão amanhã quando acordarem, um passeio, ir ao banheiro, até que eu, como um bebê que engatinha, aprenda de novo a andar em um mundo recém possuído. Por enquanto eu não tenho mais nada. Não tenho o poder de ver o chão que me carrega, a pessoa que me guia, não posso saber nem se meu lençol está sujo. Em compensação, sinto mais força no vento que me baterá no rosto quando encarar a cidade novamente, daqui a mais ou menos três horas. O vento ninguém vê. A dança das folhas talvez, mas apenas os mais desavisados. Não tenho alcance às coisas que tenho, pois não vejo onde estão. Não tenho projetos, me desiludi. Não tenho sequer o corpo de quem amo/desejo/quero/jogo-me, mas nisso não há problema. Nós nos vemos todos os dias e agora mesmo, e nos conhecemos de cor e salteado. Largura da testa, bundas pequenas, dedos tortos nas mãos e unhas meticulosamente cortadas uma vez por semana, as particularidades do ser humano nada impedem de tornar-se, a minha cegueira, um pouco mais feliz. O médico bate na porta. Finalmente iremos para casa, contemplando a paisagem.

2 comentários:

  1. eu descobri domingo que no japonês não se flexiona gênero nem número; porque, de fato, de que nos importa que o amor seja masculino? e que bom se os dois amores também puderem ser chamados simplesmente de dois amor.

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