quinta-feira, 19 de agosto de 2010

De um rápido desespero infantil



Vem cá, meu querido! Quer dançar com a vovó? - Mas o que raios pensava aquela senhora de mangas bufantes? Ela estendeu o braço pelancoso e ofereceu a mão nodosa de brilhantes unhas descascadas nos cantos. Sorria. Sorria. Mantinha-se sorrindo. Sorria estatuamente, sem qualquer movimento minimamente fotográfico. O molecote hexagenário encarava atônito a sexagenária que armariava em sua frente. Os olhos foram subindo de leve, enaltecendo o contorno, e ele se empenhou na frustrada tentativa de esconder-se sob os gigantescos cílios de criança. Mas como tinha cílios lindo aquele menino, cada um deles sorrindo a todos os ângulos possíveis, todas as pessoas ao redor. - Luquinhas, por acaso um gato comeu sua língua?! - Um riso de medonha capenguice ecoou como montanha-russa nos caminhos do ouvido de Lucas. O garoto, que antes comia brigadeiros e doces de amendoins naquela festa-para-adultos-que-mamãe-obrigou-a-ir, agora retorcia os dedos atrás das finas costas. Pois afinal, tia-prima-avó não é vó. Tia-prima-avó tem casa cafona e não sabe a idade do suposto netinho. Tia-prima-avó é assim chamada porque tem nome desconhecido para infantes de encontros centenáricos. 


Lucas, com ávida esperteza inocente, espalmou as mãos no ar, mostrando toda a melequeira de chocolates e doces encocados que, sejamos sinceros antes de qualquer encucação, não foi tão sem querer assim, tão coisa de criança assim. Em pressas tontas, soltou um sorriso desengonçado de leite, esgarçou as falsas gengivas, idosamente veloz, e disparou pelo salão de tédio, entre velhas reluzentes, batons, delineadores, luzes focais, gravatas e chapéus. Um banheiro, um banheiro!, é preciso encontrar um banheiro, é preciso lavar as mãos e esconder-se no colo de mamãe! Por entre crepes e nomes, o peito em erupção, encontrou à porta metálica uma moça de longas rendas e adornos e até que um certo salto, sem cabelos desgrenhados, mas de rugas ao léu do relógio, aquela tal mamãe. De compostura bipolar, a mulher tratou de tratorar qualquer dizer ensimesmado do filho, perguntando em tom orangotango o que era todo aquele chocolate nas palmas da mão, chegando até os punhos, Lucas do céu! 


O menino foi se esgueirando com os pés quase polegares na direção da Santa Pia do Banheiro, (ah pois essas leviandades são o verdadeiro divino,) mas a voz grossa da mãe irrespondida foi irresoluta, entre valsas burguesas e boleros entorpecentes. Olhou a mulher cuja personalidade se duplicava, os olhos marejando de dúvida, em dívida consigo mesmo. Por que teve de ir à festa? Por que, se é para ir à festa, não podia passar o tempo enamorando-se aos doces magníficos? O terno duro de inutilidade e inusilidade começava a tornar-se também pasta, o que deixava a mãe ainda mais indignada, louca mulher. Empurrou a porta com o ombro e arrancou-se para dentro do banheiro, os braços dentro da pia molhavam as mangas por completo, num encharco irremediável. Saiu com todo o frescor humano, a água geladinha arrepiando-lhe a derme. Criança é gente engraçada, refletindo o mundo em si toda, num relógio alucinado de ponteiros atletas. Abraçando-se à mãe, que esperava atônita à porta do banheiro e agora já havia percebido a auto-ignorância de intransigência plena, foram juntos à mesa, embora ele tentasse conduzir, em coreografias tortas, os passos em direção à chapelaria. A tia-prima-avó dançava agora ao longe, em gargalhadinhas moçoilas, com um pobre menininho desconhecido, que provavelmente estivera distante da ilustre mesa de doces. - Mãe, vamos embora?

2 comentários:

  1. Adorei seu texto, uma gracinha :)

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  2. Encantado com os seus textos todos, viu poetisa. Adoro essas coisas que, de tão doces, são melecadas =)

    Simplesmente apaixonado ^^

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