terça-feira, 23 de agosto de 2011

Cinema brasileiro ainda existe


Semana passada a Cinemateca Brasileira estava com uma mostra de cinema silencioso e eu confesso que senti preguiça de comparecer, apesar de achar interessante. Os dias lotados, a correria, o cansaço -- achei que precisava de alguns filmes mais ágeis, por assim dizer. Mas parece que o silêncio iniciou uma perseguição às minhas últimas idas ao cinema e, não, não estou dizendo que tenham sido experiências de todo ruins. A primeira, muito pelo contrário. Para ir bastante ao cinema é preciso ficar sempre fuçando guias culturais, encontrando sessões gratuitas ou dias mais baratos. Assim cheguei em Ex Isto, filme nacional da série Iconoclássicos, que já lançou um documentário sobre o genial Itamar Assumpção e está na reta final para um longa sobre o mito vivo do teatro Zé Celso. O fato de o filme nascer de um incentivo público e por isso ter todas suas sessões de graça me fez entrar na sala com um sorriso já querendo despontar. A sensação prosseguiu durante os quase noventa minutos da novíssima obra do não muito conhecido diretor Cao Guimarães. 

Ex Isto, através de imagens lindíssimas, remonta (melhor dizendo, interpreta) livremente o livro Catatau, de Paulo Leminski, cuja história é a hipotética vinda do filósofo René Descartes ao Brasil, junto com Maurício de Nassau. O Descartes do ator João Miguel é contemplação pura, quase não abre a boca e, imóvel, parece existir na paisagem como um elemento ao mesmo tempo interno e externo. Aí brinca-se o bem pensado trocadilho do título, claramente relacionado à célebre frase "penso, logo existo" de Descartes. Aceitando a eterna mudança do ser humano através das descobertas, observações e relações com o mundo, faz sentido pensar que existir significa, ao mesmo tempo, ser algo e deixar de ser um algo passado, um ex-isto, ex-aquilo. O Brasil de Ex-Isto mistura seus tempos, passa ao futuro sem largar o passado para trás. É selvagem e vivo, e ao mesmo tempo gracioso, seja no espaço estritamente natural quanto com toda uma cidade contemporânea ao seu redor, por entre as graças e comicidades do dia-a-dia. O personagem mantém-se quieto mas diz muito durante toda a obra, recurso este que o mantém humano, ativo, como se fosse uma intervenção viva, ao mesmo tempo que o país intervém e dialoga com ele próprio e com todos os outros à sua volta.

O mesmo não se pode dizer de Transeunte, longa de Erik Rocha, filho de nosso consagrado Glauber. As pouco mais de duas horas em frente à tela de imagem preta-e-branca trziam consigo uma sequência de belos ângulos, belos closes, belos detalhes. Tudo isso no decorrer de passos da infindável caminhada de um senhor aposentado (Fernando Bezerra), que vai a lugares triviais da rotina carioca, sempre quieto e solitário. Poderia o filme ser grande coisa se conseguisse comunicar as tantas imagens capturadas umas com as outras e, acima de tudo, comunicar o personagem a qualquer coisa que não o vazio aparentemente desproposital expresso por seu não-olhar. O resultado é um filme de tédio, de pouca brasilidade apesar de tanto tentá-lo ser. Chega a ser esquisito que a produção tenha créditos a Walter Salles, pois minhas maiores recordações de seu cinema são a emoção e as vontades por necessidades. O filme Transeunte não traz o transeunte ao público -- prefere mantê-lo isolado, andando sem chegar a lugares significativos, como se pensar, criar e intervir não fossem parte de seu vocabulário. O transeunte parece, inclusive, impedir o transe da terra que Glauber Rocha mostrava. Lembro que saí do cinema cansada, os créditos rolando e um casal de pseudo-intelectuais assistindo-os até o fim, com uma expressão de grande interesse. Amanhã, saio em busca de Catatau nos sebos da cidade, transeunte de verdade, transeunte que existe e deixa o resto existir junto. E que venham os próximos Iconoclássicos!

3 comentários:

  1. E uma grande crítica desponta! É bom, já que o nosso Brasil anda tendo muito mais gente pra fazer do que para definir arte.

    Não que seja melhor do que as tuas literaturas, mas...

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  2. João Miguel é ótimo ator, né?

    Espero que o filho da Gláuber não tente ser o pai. Não tem coisa mais chata que isso - em especial nesse caso, que é o filho do Gláuber.

    E o Gláuber conseguia causar transe nos espectadores, em grande medida, por causa do contexto em que seus filmes eram assistidos. Vistos hoje, muitos deles passam a sensação de serem compostos por sequências desconexas e são cansativos. Mas isso não perdoa o filho do homi de ter feito um filme chato e ruim - comprando, nesse caso, sua análise, porque não vi o filme.

    Brasilidade, Helena? Existe isso?

    Gostei do seu texto.

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  3. ainda descobriremos Joao Miguel como um grande ator, Cao como um grande diretor (mesmo que pra mim ja seja em funcao do "O ano que meus pais ..")e Leminski como um grande polaco !!!

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